Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Mercado de peixe podre


Fernando Pacheco Jordão

 

E

m sua coluna no jornal O Globo (“A tese do peixe”, 13.2.98), o jornalista Fernando Calazans levanta uma inquietante questão do noticiário esportivo. Diz ele: “Que Romário e companheiros de praia defendam a tese de que mantêm a forma jogando futevôlei, vá lá. Estão vendendo o peixe deles. Mas que nós, da imprensa, passemos a reproduzir essa bobagem como se fosse verdade, aí já é demais. (…) A imprensa é que não tem que vender o peixe dos outros. Nem que seja de jogador importante da seleção”.

Transpondo a “tese do peixe” para o jornalismo político, é exemplar o noticiário que os jornais publicaram no dia 12 de fevereiro sobre a influência do ex-prefeito Paulo Maluf na vitória do governo na reforma da Previdência. Claro que Maluf oferece muito bem seu peixe – e não é de hoje. Sabe, como ninguém, produzir fatos políticos que lhe garantem primeira página. O espantoso é que o peixe seja comprado sem nenhuma inquietação pelos jornalistas, ainda que ostensivamente podre, como aconteceu naquela semana.

Se alguém se der ao trabalho de vasculhar a coleção dos principais jornais de S.Paulo (Estadão e Folha) e Rio (Globo e JB) verá que todos publicaram exatamente as mesmas frases de Maluf, gabando-se de conseguir verbas para “virar” votos relutantes de sua bancada, e o mesmo exemplo de um telefonema dele ao ministro dos Transportes para liberar um dinheiro muito solicitado por uma deputada carioca do PPB. Houve outros? Ninguém apurou, ninguém perguntou? E quantos votos, de verdade, ele conseguiu “virar” em favor do governo?

Que resultado teve de fato todo o jogo de cena armado em Brasília – verdade que, confessadamente, a pedido do presidente Fernando Henrique? Aí a coisa fica pior, porque basta consultar a lista de votação, publicada por todos os jornais na mesma edição, para verificar que praticamente um terço da bancada do PPB (com o reforço até de meia dúzia de deputados de S. Paulo) votou contra o governo. Isto é: como já acontecera na véspera, quando dois senadores pepebistas votaram contra a reforma administrativa, e em votações anteriores (inclusive na emenda da reeleição), ficou evidente que o ex-prefeito, ao contrário do que apregoa, não tem controle sobre seus partidários.

O surpreendente é que Maluf se apresenta na cobertura de imprensa (ele é sempre a fonte de suas proezas) como o grande vencedor do dia, sem que os editores finais das matérias, como no caso de Romário e seu preparo físico, lancem para o leitor um fiapo de dúvida.

Não vai aqui nenhuma suspeita sobre intenções excusas de repórteres e editores. É simplesmente o registro de um viés comodista da nossa profissão que nem é exatamente novo. Por exemplo, na década de 70, muitas matérias sobre energia nuclear no Brasil garantiram que a temperatura da água do mar, nos arredores da usina de Angra, poderia chegar aos 40 graus – até o dia em que um almirante revelou que “chutara” aquele número para um repórter que não se mexeu para checar (como não se mexeram todos os que depois foram a algum arquivo em busca daquele dado sem qualquer rigor científico). Mais recentemente, no governo Itamar Franco, o relançamento do Fusca foi saudado por uma série de notícias ultra-otimistas sobre recordes de vendas, certamente tendo os fabricantes como fontes – sem que ninguém se abalasse a checar aquilo que, no fim das contas, parece ter sido um retumbante fiasco, ou nossas ruas estariam hoje atulhadas de fusquinhas.

Se os jornalistas não reaprenderem a usar o nariz, espertos personagens e produtos, como Maluf, Romário, fuscas e outros, continuarão a vender peixe podre impunemente, deixando para o leitor o trabalho de cuidar da indigestão.