Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Mercado neurótico, finança nervosa

JORNALISMO ECONÔMICO

Deonísio da Silva (*)

Talvez nosso jornalismo econômico pudesse inovar um pouco mais e ceder definitivamente ao coloquial, explanando suas apreensões e conselhos em formas de tiras, como nas histórias em quadrinhos. Com efeito, à semelhança dos comic books, também na banca da praça os personagens são tipos fixos, sempre com os mesmos problemas ou tiques, de que é exemplo o menino Linus, que contracena com o cachorro Snoopy na tira "Charlie Brown", desenhada por Charles Monroe Schultz (1922-2000). Apesar de inseguro, Snoopy, o intelectual do grupo, hoje nome popular de cachorro em vários países, inclusive no Brasil, insiste em citar a Bíblia e filosofar sobre a vida.

Tiras, sucesso de crítica e de público

O cãozinho simpático apareceu em tiras traduzidas para 21 idiomas e publicadas em 2.600 jornais de 75 países. Schultz chegou a ter 355 milhões de leitores e suas criaturas lhe rendiam 1 bilhão de dólares por ano. Às vésperas de morrer de câncer, dia 13 de fevereiro de 2000, ainda desenhou sua última tira, despedindo-se de seus milhões de leitores, conseguidos depois que as histórias em quadrinhos foram industrializadas em escala mundial, refletindo as neuroses modernas e contemporâneas, às vezes figuradas em animais. O cachorro Snoopy, por exemplo, tem como confidente um pequeno pássaro amarelo chamado Woodstock, ambos, porém, vivenciando problemas humanos. Esses personagens de Schultz nasceram em conversas no café da manhã com seu pai, um barbeiro de Minnesota.

Na Folha de S.Paulo de segunda-feira (1?/7), Fernando Gonzales apresentou um rato criticando uma pulga, mas era óbvia a referência à luta que uma minoria de humanos gordos trava para emagrecer num planeta em que a fome ainda mata mais do que o excesso de comida: "Pulga de regime só come escondida de noite".

Maiorias vs. minorias

Gonzales aludiu em perfeita síntese a um problema que afeta as bem conhecidas minorias que sofrem para controlar a gula, definido como pecado capital na Idade Média. Schultz explorou com a conhecida verve e delicadeza os impasses de um mundo apressado, fixando tipos.

Já nossos jornalistas econômicos foram constituindo, menos críticos e mais a serviço do capital, uma linguagem estranha à ciência (?) que dizem praticar, provavelmente com o intuito de alcançar maior público, buscar o homem comum pelo rebaixamento ou mesmo recusa da linguagem praticada por economistas e assemelhados, já consolidada em jargão, quase sempre merecedora de um "Curso Madame Natasha de Piano e Português", a vinheta com que o jornalista Elio Gaspari escarmenta os que, não tendo o que dizer, disfarçam o vazio num emaranhado de palavras que não dizem nada, sobretudo porque vitimadas pelo desarranjo sintático que é próprio a quem, não sabendo o que pensar, escreve ainda pior.

As chamadas em portais da internet e os gráficos dos jornais parecem refletir uma obsessão com o dólar. Sim, nossa economia está atrelada à moeda norte-americana, pois, apesar de tudo o que escrevem sobre globalização, sabemos que o mundo tem donos, chamem-se G-7, G-8 ou qualquer outro agrupamento de privilegiados. A linguagem intentada pelo colunistas especializados nas finanças públicas e privadas está recheada de palavras que a rigor nada têm a ver com o analisado. O dólar sempre dispara. E nos gráficos parece que o dólar não subiu alguns pontos, mas escalou o Everest.

Uma estranha linguagem

E a estranha linguagem continua.

Os preços explodem. Será que os que vendem, seguindo a etimologia, afinal a raiz dos verbos é a mesma, aplaudem quando os compradores implodem?

O valor dos títulos brasileiros despenca. No caso, o que eles recomendam? Novos sutiãs do tipo wonderbra ou uma cirurgia plástica?

O mercado fica nervoso. Há psicanálise para mercados? O presidente Fernando Henrique Cardoso ironizou: "O mercado está nervoso? Dá calmante que passa!" Ninguém jamais soube, entretanto, de um calmante que custasse bilhões de dólares. E alguns ainda vacilam entre declarar se o dólar subiu ou se houve forte desvalorização do real.

Os investimentos estrangeiros no país desabam. Os investidores devem trocar de chapéu, pegar alguns com abas mais fortes ou a metáfora desjeitosa aludia a marquises ou prédios que ruíram?

Parecendo pilotos, alertam para turbulências, quando não avisam dramaticamente que o caso é de pane. E o piloto? Onde está o piloto? O piloto sumiu?

Falam também que há tensão nas bolsas. No caso, aumentará a demanda de ansiolíticos? A saúde das empresas inspira desconfianças. Mas não seria a doença, ao menos, a inspirar cuidados? E o que está acontecendo nas empresas? A alimentação é incorreta? Há desnutrição, fome, doença?

Já e Enron e a WorldCom parecem ter trocado de ramo, passando a empresas de cosméticos, pois o que mais fizeram foi maquiar balanços. Não informam o creme utilizado, mas empresas menores certamente usam pó de arroz, ruge, batom, pois não? E devem completar a maquiagem indo ao cabeleireiro onde poderão encontrar perucas a bom preço, feitas com os cabelos perdidos de seus investidores.

Os investidores, já desconfiados e obrigados a cortar gorduras nos orçamentos, estão estressados. Por outros motivos, os leitores também. Não seria o caso de passar logo à lingerie, com vistas a aumentar a atração de certos títulos, da dívida como das páginas?

A volatilidade desta linguagem, aqui referida em rápidos exemplos colhidos em nossos grandes jornais, semelha a de certos mercados. Então, das duas, uma: ou o jornalismo econômico seja feito em tiras de histórias em quadrinhos ou que seus colunistas ajustem (eles adoram o verbo ajustar) a linguagem.

A metáfora foi uma conquista da literatura. Escritores do mundo inteiro levaram séculos para consagrar este tipo de transporte. Assim, mesmo depois que a Física demonstrou que é a Terra que gira o redor do Sol, continuamos a dizer que o Sol nasceu ou se pôs. Quando, porém, não se tratando de obra de romance ou conto, nem de poesia, analistas econômicos não usam as metáforas como exceções, mas como normas, há indícios de que alguns deles devam ser indiciados em crimes de lesa-língua, lesa-estilo, lesa-leitor. Ou ao menos submetidos a averiguações. Suspeitas? De não informar nada, analisar pouco, andar a reboque das entidades cujos poderes sobrenaturais apregoam sem cessar.

(*) Escritor e professor da UFSCar, Deonísio da Silva é Doutor em Letras pela USP. Seus livros mais recentes são o romance Os Guerreiros do Campo e De Onde Vêm as Palavras.