Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Metafísica da imagem e os chavões da decadência

REALITY SHOWS

Filipe Ceppas (*)

O que parece ser a decadência da cultura é o seu puro caminhar em direção a si mesma. T.W. Adorno

Sartre assim inicia o seu clássico ensaio A imaginação: "Olho esta folha branca posta sobre minha mesa: percebo sua forma, sua cor, sua posição. (…) De nada serve discutir se esta folha se reduz a um conjunto de representações ou se é ou deve ser mais do que isso. O certo é que o branco que constato não pode ser produzido por minha espontaneidade." Para tentar entender o reality show, pode-se iniciar seguindo os passos preliminares da análise sartreana. Você olha para a tela escura da TV, aperta o power e lá estão eles, os participantes dos reality shows. Você não sabe se eles se reduzem a um mero conjunto de representações ou se devem ser mais do que isso.

Tal como os personagens das novelas, eles têm seu comportamento mediado por uma dinâmica que obedece aos índices, espontâneos ou não, de audiência, o que não quer dizer que sejam sempre previsíveis. Mas podemos prever que, entre quatro paredes ou em acampamentos no limite, quanto mais o tempo passa mais e mais cada participante constata na pele que o inferno são os outros. Muitos críticos, por sua vez, acham que o inferno é a fonte de mediocridade que alimenta esse laboratório pseudo-existencialista. O que essa condenação superficial deixa de lado é a simples compreensão do caráter aparentemente supérfluo do acontecimento, enquanto epifenômeno da geração autônoma de novas formas de legitimação de uma ordem social que, paradoxalmente, há muito sequer tem, verdadeiramente, necessidade de ser legitimada.

Foco na cópia da coisa

Em comparação com a folha em branco que Sartre observa, a inércia do reality show, sua dinâmica autônoma e chinfrim, escapa a uma consciência que pretende reconhecer nela apenas a crise pressuposta em tudo o que vê. Sobre a folha já em parte preenchida, Sartre continua a escrever: "É, com efeito, na medida em que são inertes que as coisas escapam ao domínio da consciência; é sua inércia que as salvaguarda e que conserva sua autonomia." O reality show é um experimento humano em que nos deparamos com muita banalidade e mediocridade, é verdade, mas seu sentido inercial global é um pouco mais complexo do que o da folha de papel onde o crítico midiático transforma tudo numa crise que já conhecemos de cor. Para começar, seria preciso desconfiar das reações indignadas à mais recente versão do reality show entre nós, o Big Brother Brasil (BBB), programa incomensuravelmente menos agressivo e estúpido do que aqueles em que pululam pegadinhas e humilhações consentidas, como os de João Kleber (Rede TV) e Sérgio Malandro (Gazeta), ou mesmo tão estúpido quanto Xou da Xuxa e Faustão. Essa desproporção da crítica fortalece a desconfiança de que a indignação bem pensante faz parte do jogo.

Um crítico, por exemplo, chamou a atenção para o fato de que todos os participantes do BBB, de um modo ou de outro, são profissionais da imagem ? como se a homogeneidade artística e corpulenta imposta pela produção do programa reduzisse tudo a uma busca por audiência, o que seria ao menos explícito na Casa dos artistas do SBT. E como se não o fosse, desde sempre, também na Globo. Qual a novidade? Qual propaganda não é, em certa medida, sempre enganosa? Cabe citar Sartre, mais uma vez: "Uma coisa (…) é apreender imediatamente uma imagem como imagem, outra formar pensamentos sobre a natureza das imagens em geral." Para formá-los, e elaborar uma crítica à imagética global, seria preciso "… sujeitar-se rigorosamente a nada avançar a respeito dela que não tivesse sua fonte diretamente numa experiência reflexiva". E, para forçar ainda mais a apropriação da letra sartreana, "é preciso sobretudo que nos desembaracemos do hábito quase invencível de constituir todos os modos de existência segundo o tipo da existência física".

O crítico, em sua defesa pouco refletida, diria que as observações sobre a mediocridade dos seres sarados não revelam preconceito e limitação que imputam fixidez a uma imagem; que tal mediocridade é, antes, inerente ao esforço de bambans e pedritas reais por se apresentarem ao mundo, de modo infantil e iletrado, como imagens à venda, em troca de 500 mil e outros ganhos laterais no universo trash da fama. Mas o que está em questão, além da justificação dos meios pelo prêmio e do próprio prêmio, é precisamente essa estrutura da percepção da imagem como cópia da coisa, ponto de partida para o crítico só enxergar naquilo que critica derivações de um culto à imagem que degenera a sociedade.

Pouco além da pobreza

A metafísica ingênua da imagem consiste, como bem a definiu Sartre, em "fazer da imagem uma cópia da coisa, existindo ela mesma como uma coisa". Ao fazê-lo, logo se lhe acrescenta um estatuto de inferioridade: "… Pelo fato de ser imagem, recebe uma espécie de inferioridade metafísica com relação à coisa que representa. Em uma palavra, a imagem é uma coisa menor." Mesmo que filiados a essa tradição da metafísica ingênua, seríamos obrigados a ponderar que, no mercado, algumas cópias valem mais do que seu "modelo real"; que a imagem da Xaiane-Pedrita vale mais do que qualquer parâmetro de civilidade que a moça pudesse exibir a milhões de telespectadores. Mas isso nós já sabemos muito bem, e o que não pode deixar de escapar a essa abordagem ingênua da imagem-cópia é o que explicaria a ponderação, a total inversão de perspectiva, que o investimento na imagem ajuda a modelar e a esconder: precisamente a determinação de seu reinado desejante como modelo do suposto real.

É sintomático, portanto, que, após meio século de subversão do estatuto epistemológico e ontológico da imagem (onde Sartre, Deleuze e Virilio, por exemplo, se destacam), a crítica midiática, na qual se incluem alguns intelectuais habitués da imprensa, continue, em grande medida, cultuando essa metafísica ingênua. Primeiro sintoma, o da impotência: discurso que pouco esclarece e irrelevante para as decisões das empresas e o gosto do público. Segundo sintoma, o da prepotência: ensaística que não presta contas a ninguém e faz pouco da teoria, em nome do bom entendimento do público, é claro. Terceiro sintoma, o da sujeição, que já Adorno havia muito bem caracterizado em 1949, ao tratar da crítica cultural: "A insuficiência do sujeito que pretende, em sua contingência e limitação, julgar a violência do existente" e que "…torna-se insuportável quando o próprio sujeito é mediado até a sua composição mais íntima pelo conceito ao qual se contrapõe como se fosse independente e soberano".

O surgimento da febre do reality show em todo o mundo traduz um esgotamento das fórmulas televisivas tradicionais na busca por audiência, mesmo aquelas que, segundo critérios cultos ou pseudo-acadêmicos, cairiam sob a qualificação de "baixo nível". É grande a tendência a aceitar, aqui, explicações psicológicas secundárias. Mas assim como estas não dão conta do estatuto sempre problemático da ficção, elas têm igualmente limites no que se refere ao consumo de massa das narrativas e interações midiáticas. Constata-se, por exemplo, que o desejo de ver as coisas levadas ao extremo, em contexto onde, supostamente, a intimidade dos outros está em questão, deve se contentar com muito menos. Ora, a descrição-explicação desse desejo, de sua realização e suas frustrações, no consumo pseudo-interativo do show midiático, será forçosamente uma parte menos escandalosa da explicação para o porquê de a mesma tendência se impor em todo lugar. Seja no esporte ou na política, a pureza na liberação da adrenalina é a simulação do irremediável: quando, no body jump, o corpo encena seu esborrachamento final, ou quando, na política, a explicitação da violência vem bagunçar nossa percepção distanciada e conformista.

Assim, a potência da explicação psicossocial do reality show está na sua impotência, isto é, ao revelar o que resta para ser explicado. Com relação à expectativa do confronto, podemos entender por que, seja o que for que tenha a ver com tipos psicológicos de um contexto cultural qualquer, nada de importante aí apareça. Que o "barraco" nos programas brasileiros, por exemplo, não chegue a níveis intoleráveis e antes desmorone em meio a uma tempestade de banalidades significa simplesmente que os produtores armam, de antemão, uma miríade de pequenas regras para evitar o pior, que os participantes já as têm introjetadas, ou ambos. Mas a aceitação da banalidade e da monotonia, por parte do público, pode ser parcialmente explicada por um mecanismo de reforçamento da ideologia do brasileiro no fundo sempre boa praça, cuja negação evidente é reforçada pelo sadismo da própria expectativa dos telespectadores, satisfeita quando vêem os participantes numa situação constrangedora e humilhante ? realidade dolorosa que estes mal conseguem disfarçar: a consciência contratual estampada na conduta profissional que a artificialidade do comportamento aparentemente despojado revela. Por tudo isso, antes de culpar os participantes pelo vocabulário empobrecido para lidar com tal situação, o crítico deve reconhecer que não vai muito além com seus chavões da decadência.

Páginas que valem milhões

Prato cheio para análises psicológicas de segunda categoria sobre o voyeurismo amador, a monotonia do reality show é uma oportunidade única para a crítica cultural poder justificar seu voyeurismo profissional, ou seu distanciamento bem comportado a tudo que seja "de baixo nível". Se ela quer, muito sinceramente, elucidar e ajudar a superar o parasitismo cultural daquilo que alimenta a mediocridade e dela sobrevive, poderia começar por desarmar as falsas polêmicas, que são a condição necessária desses programas "de realidade".

Enquanto crítica imanente não-dialética, ela permanece presa aos limites que Adorno já havia denunciado. Mesmo sob perspectivas mais radicais ? na subversão da linguagem, na desmistificação do modelo imagem-cópia e de seu reinado, assim como na exigência do conceito ?, todos nós, produtores, consumidores ou comentaristas culturais, somos coadjuvantes, ainda que residuais, críticos e de elite, do reality show midiático total. Melhor faria uma análise pós-moderna, que tentasse identificar virtudes insuspeitas no aparecimento dessas gaiolas humanas televisionadas, do que a crítica ranzinza tradicional, que não consegue reconhecer a precariedade de sua sempre idêntica identificação do mesmo.

Exemplo: em praticamente todas as abordagens jornalísticas sobre os reality shows, mal se disfarça o pressuposto de que haveria um modo "correto" de realizá-los. Aqui, a obtusidade da distinção entre aparência (cópia) e realidade (modelo ideal) é tamanha que a óbvia inadequação da premissa grita histericamente diante do nariz, mas o comentarista prefere arrancar seus próprios olhos para expiar a quase-cópula pecaminosa transmitida ao vivo entre um bambam e uma pedrita quaisquer. Onde, afinal, os comentaristas encontram evidências para supor que um programa da TV brasileira pudesse ser realmente desafiador, com pessoas heterogêneas e críticas podendo falar e fazer o que quisessem, diante das câmeras, sem censura, 24 horas por dia?! De onde vem a idéia de que, ao entrar num reality show, uma pessoa pode permanecer sendo uma pessoa, sem tornar-se, imediatamente, profissional da imagem, sob o risco de romper com a própria lógica do entretenimento? No limite, poderíamos imaginar uma "casa dos políticos", com FHC, Lula, Jáder e ACM, sem esquecer as popuzudas e tchutchucas (Marta Suplicy? Roseana Sarney? Benedita?), brigando pelo poder de decidir sobre a ordem da casa. E precisa? Não é a esse reality show precário que grande parte do jornalismo impresso e televisivo, se não a própria postura da maioria dos políticos, dia após dia, procura reduzir a vida pública nacional?

Haveria que se falar, sim, em culto à imagem, mas para além da óbvia constatação do padrão que as emissoras tendem a impor na escolha dos participantes. Não é irrelevante que, no BBB, os primeiros a serem eliminados do programa tenham sido os que mais se aproximam do modelo "culto à imagem". Se o fato não deve levar a qualquer conclusão apressada sobre os atributos intelectuais e afetivos (ou sua ausência) dos cultuadores da imagem, serve ao menos para demonstrar a precariedade da crítica genérica da degeneração. Para não dever nada a uma metafísica ingênua da imagem, mais valeria reconhecer que a imagem que de fato vale é a da propaganda: 200 milhões de reais faturados até agora com os reality shows no Brasil, "o suficiente para a construção de 200 escolas, 20 hospitais de 150 leitos ou 250 creches…", segundo os cálculos de Luiz Costa Pereira Júnior, da Folha de S.Paulo (16/2/02). Para os patrocinadores, que um comentarista ignore o fato e gaste, sem investimento adicional, meia página de um jornal para criticar o caráter regressivo dos participantes, ou mesmo o formato global do show, é, no dialeto dos big brothers, tudo de bom.

(*) Professor de Filosofia, com mestrado pela PUC-Rio, e doutorando em Educação pela mesma universidade; e-mail: <fceppas@terra.com.br>