Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Midiagate, ou com o rabo entre as pernas

Alberto Dines

 

O

mais recente vilão da série James Bond não é o Kremlin, a China, um cientista maluco ou o crime organizado. Trata-se de um barão, ou tubarão, da mídia, combinação do falecido Robert Maxwell com o vivíssimo Rupert Murdoch, dominado pela paranóia de dominar a humanidade.

Hollywood faz as cabeças do mundo há mais de meio século, mas, embora controlada por uma poderosa corporação (a Motion Pictures Association), jamais alcançou o monolitismo total. Nem a Comissão de Atividades Antiamericanas, do fascista Joe MacCarthy, obteve anuência e obediência absoluta. Aquele bando de produtores, a maioria formada por pobres imigrantes ou filhos de imigrantes, tinha suas próprias idéias sobre o sonho americano. O cinema norte-americano tem sido um dos mais constantes críticos da imprensa desde os tempos dos filmes de dois rolos (como aqui foi mencionado em 18 de outubro de 1997). Hoje Hollywood faz parte da mídia por meio de conglomerados que começam com filmes e acabam na Internet, passando pela TV e revistas. E, se Hollywood resolve agora diabolizar a mídia, ou um pedaço dela, num filme destinado ao público mais rastaqüera, é porque chegou àquele ponto da competição em que é indispensável a diferenciação. Em outras palavras, as leis de mercado, se levadas às últimas conseqüências, impõem a individuação, a diversidade e, principalmente, o confronto.

A luta continua, é um moto que tanto serve aos irredentistas como aos que apostam na competição comercial. Mussolini e seus adeptos fascinaram-se pelas corporações porque eram estáticas, indivisíveis e impermeáveis ao debate.

Os dez dias que abalaram o jornalismo norte-americano começaram como zippergate e acabaram em midiagate (conforme a última edição do Observatório da Imprensa, ().

A bandeja de excrementos que a mídia norte-americana aproximou do ventilador, a serviço do sensacionalismo e de escusos interesses eleitoreiros, fez o percurso do bumerangue e atingiu em cheio e de forma indelével o chamado Quarto Poder. Às anotações do último sábado (concluídas na quinta anterior) posso acrescentar que o New York Times continuou sua saneadora cruzada até a última terça, 3 de fevereiro, sendo que, na gigantesca e nobilíssima edição de domingo, 1º de fevereiro, publicou matéria na primeira página e outra na de opinião.

Na história do jornalismo norte-americano neste século, a imprensa -e não Bill Clinton- jamais foi pilhada em posição tão vexatória. Entre os autores das novas peças, cito o grande Russel Baker e um veterano repórter, James Naughton, hoje presidente do Poynter Institute, de Miami, que não chega a ser considerado liberal (com incursões desastrosas na imprensa brasileira). A mais surpreendente reação ao midiagate veio de onde não se esperava, a CNN. Graças ao furacão Monica, conseguiu níveis de audiência só igualados pela não menos viciosa cobertura do julgamento de O. J. Simpson. Talvez incomodada por isso organizou um debate ao vivo, de duas horas, na noite de quarta-feira, 28 de janeiro. Denominado "Media Madness" (Loucura da Mídia), foi impressionante espetáculo de autoflagelação com a participação de algumas estrelas do jornalismo, entre elas Dan Rather. O veterano âncora da CBS ofereceu a nota melancólica com a sua candura e fragilidade. Rather confessou que teria preferido continuar em Havana cobrindo Fidel e o papa no lugar de acompanhar os concorrentes Tom Brokaw e Peter Jennings na discussão sobre as calcinhas da estagiária. E, quando lhe indagaram por que não seguiu o seu instinto de jornalista, respondeu: "Não seria prático dizer não… Estamos falando de circulação e níveis de audiência… Pressões competitivas…" (reproduzido do NYT de 3 de fevereiro de 98, texto de Walter Goodman).

Que diabo, onde é que se enfiou a mídia brasileira, tão sensível ao que se passa nas esquinas de Manhattan, que não conseguiu levar para o público brasileiro momento tão relevante da história política norte-americana?

Nossa cobertura do midiagate foi impressionantemente pálida. Quase omissa, irresponsavelmente distorcida, ofuscada pelas futricas e fofocas sexuais do Salão Oval da Casa Branca, agora batizado como Salão Oral.

Além do já citado JB, o prestigioso Estadão, que tinha na gaveta pelo menos sete textos fundamentais do New York Times, publicou apenas uma peça (e outra do Baltimore Sun). A Globo, no Jornal Nacional, aderiu ao coro dos detratores do sensacionalismo da mídia somente quando já estava desmascarado (segunda, 2 de fevereiro de 98).

Esta Folha, tão sensível e tão transparente nas questões relativas ao jornalismo, comeu mosca ou foi picada pela mosca azul: resolveu derrubar Clinton tão logo começou a rolar a bola de neve, por meio de uma manchete sugerindo sua renúncia (segunda, 26 de janeiro). Encerrou a participação no caso convidando um psicanalista para comentar o distanciamento entre a mídia e o público norte-americano (domingo, 1º de fevereiro, com chamada na primeira página). Como o autor deve ser leitor deste jornal, e este jornal não publicou até o dia anterior nem uma linha sequer sobre o midiagate, a tese do eminente psicanalista foi a seguinte: o público norte-americano está tão idiotizado que não consegue ser motivado pela imprensa. A verdade, segundo as vozes mais respeitadas nos EUA, está no extremo oposto: a mídia idiotizou-se de tal forma que o público disse basta.

Não estou sugerindo a existência de uma conspiração de silêncio para abafar nestas plagas o desastre do novo paradigma norte-americano de jornalismo.

Tenho absoluta certeza de que Ruy Mesquita não telefonou para Octavio Frias de Oliveira ou Otavio Frias Filho e que estes também não ligaram para Roberto Marinho ou João Roberto Marinho, que também não procurou Roberto Civita e M. F. do Nascimento Brito ou J. A. do Nascimento Brito (a maioria não tem relação entre si, o que é uma lástima -um dia penso em convidá-los para uma feijoada, como faz a senadora Benedita da Silva com figadais adversários, sem efeitos perniciosos aos respectivos fígados).

O que existe, sim, em nossa mídia, é uma confraria às avessas, processo inconsciente de imantação para ocultar as falhas, deficiências e vícios de um sistema que já foi incomparavelmente melhor e hoje está perigosamente comprometido.

Com o rabo preso no leitor, de repente, nossos magníficos mediadores ficaram com o rabo entre as pernas. Ou não querem dar o rabo a torcer.

 

Copyright Folha de S. Paulo, 7/2/98.