Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Miguel Sokol

RELANÇAMENTOS

"Apocalipse quando?", copyright Época, 4/02/02

"Agora, o clássico de Francis Ford Coppola está reeditado com 53 minutos a mais no cinema; o que, convenhamos, não é exatamente uma novidade. É, talvez, o melhor filme de guerra de novo em cartaz, de novo sendo elogiado. Sintomático. Sintoma de ?re-greatest?. Eu explico: nossa memória agora é incessantemente refrescada com tudo o que já foi reconhecido voltando à tona relançado (por isso o ?re?, prefixo que indica repetição, e greatest, o melhor de todos).

O filme agora se chama Apocalipse Now Redux. Disfarçar de novidade um sucesso antigo não é descoberta de Coppola. Ridley Scott reeditou seu Blade Runner, de 1982, transformando o personagem de Harrison Ford num replicante, exatamente dez anos depois da estréia do original.

George Lucas resolveu filmar o restante da saga de Luke Skywalker depois de relançar o primeiro filme da série com novos efeitos especiais. Funcionou. Daqui a três meses estreará o quinto e, ?reconvenhamos?, não será exatamente uma novidade. Será, sim, mais um capítulo daquela história escrita no meio dos anos 70. Mas quem se importa, este é um re-greatest inédito. Lucas conseguiu o impossível, um clássico inédito, e pela segunda vez! A prova está em Seattle, nos Estados Unidos, onde, neste exato momento, dois fãs estão acampados diante de uma sala de cinema, esperando para ver Guerra nas Estrelas: Episódio II – O Ataque dos Clones. ?Avisamos que os ingressos serão vendidos só duas semanas antes da estréia (marcada para 16 de maio)?, diz o gerente do cinema aos rapazes.

Novidades antigas não são exclusividade do cinema, muito ao contrário – as prateleiras das lojas de disco estão aí abarrotadas de títulos como O Melhor de Fulano ou A Arte de Beltrano, que, além de ter o objetivo de resumir a obra de um artista, conseguem evaporar com a discografia original deles e não me deixam mentir.

No começo do ano passado, uma banda que acabou em 1970 estava no primeiro lugar das paradas com o re-greatest dos re-greatests: a medalha de ouro foi dos Beatles, pela coletânea 1, que compilava todas as músicas do quarteto que chegaram ao primeiro lugar americano e ao inglês. Um ano se passou e o primeiro lugar da parada britânica nesta semana é do relançamento do disco que inaugurou a carreira-solo do ex-beatle George Harrison, All Things Must Pass, de 1970.

Sermos orientados pelos clássicos é sadio, mas sermos governados pelo passado não. Os re-greatests vão além dos produtos: a morte de Cássia Eller foi parar nos 20 anos da overdose de Elis Regina, comparação que despertou um sentimento de ?já vi esse filme?. Provavelmente o Apocalipse Now e os fãs inconsoláveis de Cássia não passem de uma reedição dos fãs de Elis.

Nada mais é autêntico, então? O guitarrista Jimi Hendrix, autor da frase ?Uma vez morto, você está feito para o resto da vida?, vende 20 mil discos por semana, mais de 30 anos depois de sua morte. Quem mais vende discos de reggae no mundo ainda é Bob Marley. O que isso significa? Significa que a coleção de discos de alguém de 15 anos é praticamente a mesma que a de alguém de 30; com uma diferença: o que era novo agora é cultuado. A grande novidade é a celebrização do passado. Lembrando do que está no melhor de Cazuza, é no museu que ficaremos a par das ?grandes novidades?. (Miguel Sokol é produtor da MTV)"

 

CINEMA & CENSURA

"Filmes que o Brasil não viu", copyright no. (www.no.com.br), 2/02/02

"Hoje o Brasil sabe muito sobre a censura nos anos de chumbo. Mas agora poderá saber melhor o que exatamente foi censurado, e mais, com que humor os censores decidiam seus cortes. Em 1972, o cineasta José Mojica Marins, o Zé do Caixão, por exemplo, não foi alvo só da tesoura, mas também da ira de sua censora. ?Se não fugisse à minha alçada, seria o caso de sugerir a prisão do produtor pelo assassinato à Sétima Arte, pois não foi outra coisa que ele realizou ao rodar o presente filme?, escreveu a chefe da turma da censura cinematográfica da época, em seu parecer sobre o filme À meia-noite encarnarei em teu cadáver.

Trinta anos depois, Mojica Marins é um cult do terror nacional e sobreviveu para conhecer melhor quem o assombrava. Estes registros estão disponíveis no Arquivo Nacional, que catalogou e higienizou filmes examinados pela Censura Federal entre 1968 e 1988. O trabalho é da equipe da Coordenação de Documentações Audiovisuais e Cartográficos do Arquivo Nacional, onde está guardado esse acervo. Os processos com os pareceres dos censores se encontram na Superintendência Regional do Arquivo Nacional em Brasília, liberados para consulta.

Até a extinção do Departamento de Censura e Diversões Públicas da Polícia Federal, em 88, cerca de 25 mil filmes foram submetidos ao exame da Censura Federal. As curiosidades são muitas, e o próprio filme de Zé do Caixão chegou a merecer algumas ressalvas da censora (cujo nome está ilegível no documento): ela louva ?o esforço dos técnicos que colaboraram neste ?filme?, pois em som e imagem são muito bem apresentados, ao contrário de outras películas nacionais que vemos aqui neste Serviço de Censura?. Mas o aplauso da censora/cinéfila dura pouco e ela decide pela ?não liberação? do filme: ?Nus, cenas de ataques sexuais, terror, etc. são a constante que, a meu ver, não possibilitam a liberação da referida película?.

Os documentos do Arquivo Nacional mostram que o regime militar não considerava o cinema o meio mais perigoso para propaganda subversiva. O ambiente da sala escura é descrito como ?estranho ao espectador?, o que acionaria o seu ?autocontrole?, tornando-o menos ?receptivo às imagens negativas que chegam ao seu subconsciente.?

Segundo José Ivan Calou, coordenador substituto da seção de audiovisuais do Arquivo, nem sempre os pareceres expunham o motivo da censura. ?Os censores seguiam critérios técnicos. O que tornava a censura ainda mais arbitrária eram as interferências das camadas superiores.? Ivan ilustra o que diz com o filme Queimada, do italiano Gillo Conte Corvo, que foi liberado pelos censores, mas ao ser visto por um general no cinema foi imediatamente interditado a pedido dele. O motivo eram referências ao colonialismo na América latina e alusões ao Brasil da monocultura.

Sexo, caratê e Tom & Jerry

Cortes feitos em filmes que ficariam famosos, como A Dama do Lotação, de Neville D?Almeida (1977), podem parecer hoje mais obscenos do que a cena que se quis esconder. No parecer que determina os 13 minutos proibidos no filme, assinado pelo diretor da DCDP, o censor Rogério Nunes, está escrito: ?Cena do interior de um ônibus – cortar desde o momento em que a câmera detalha os movimentos do homem comprimindo o sexo nas nádegas de Solange, até que os dois são focalizados da cintura para cima.?

Apesar do corte, o filme foi um sucesso. ?Com esse filme Deus me deu de volta tudo o que perdi. Só não recuperei os 10 anos de sofrimento e privação material?, diz Neville D?Almeida, que tem vários produtos inéditos aparecendo na peneirada do Arquivo Nacional. Um deles é Jardim de Guerra, de 1967, com roteiro dele e de Jorge Mautner, estrelado por Hugo Carvana, Antônio Pitanga, Glauce Rocha, Dina Sfat e Nelson Xavier. Nelson Pereira dos Santos fazia uma ponta.

No filme, um homem é contratado para levar uma mala até um navio no cais. A valise contém armas e ele é preso, torturado e enviado a um campo de concentração como uma pessoa de esquerda. ?Quando o filme ficou pronto veio o Ato Institucional n? 5 e ele foi considerado premonitório, pois antecipou tudo que estava por vir?, conta Neville. ?Era um filme político que falava de Che Guevara, Mao Tse Tung e guerra fria.? Piranhas do Asfalto e Mangue-Bang também permaneceram inéditos (o segundo ele confessa que nem chegou a mandar para a Censura).

Os censores eram treinados para ler nas entrelinhas. E mesmo que elas não existissem, eles as encontravam. A exibição do desenho Tom e Jerry, por exemplo, ensejou longo debate. A polêmica terminou com o veredito emitido pela censora Lenir de Souza, que em seu parecer concluiu que a dupla não oferecia maiores ameaças. ?Seu objetivo principal é motivar a criançada a defender os mais fracos e a repelir a desonestidade.?

O bom e velho personagem careca do Kung Fu também não parecia politicamente inocente para alguns. Em 1974, o general Antônio Bandeira, então diretor da Polícia Federal, disse numa palestra que o seriado de TV sobre caratê, estrelado por David Carradine, poderia criar uma associação subliminar com o ato de se fazer justiça com as próprias mãos. Do ponto de vista do risco social o perigo dobrava. Segundo ele, o filme generalizava a desconfiança no governo/autoridade.

Ainda na TV, outro herói que teve a implicância dos militares foi o americano Bat Masterson, cuja bengala sempre em riste chegou a ser entendida como símbolo fálico. No cinema, esse tipo de sutileza interpretativa barrou artistas como Sam Peckinpah, autor da obra-prima Meu ódio será tua herança – classificado pela turma do Departamento de Censura e Diversões Públicas (DCDP) como ?especialista em violência subversiva?.

Censor recomenda artigo de Marighela no ?JB?

Na proibição de Guerra dos Pelados, de Silvio Back, em 71, o censor hesita quanto ao real perigo do filme, mas é firme na agressão à gramática. Roberto Antônio Coutinho escreveu tratar-se de um filme ?de mensagem duvidosa e conteúdo perigoso, por conter tortura, violência e ainda talvez de fundo ?subversivo?, sem nenhuma solução passífica?. A paz não parecia ser sua especialidade.

A esta altura, o distribuidor Livio Bruni já havia experimentado a interdição, em 1968, do documentário do italiano Gillo Pontecorvo, A Batalha de Argel, sobre a luta pela independência na colônia francesa. O processo de interdição mostra que o filme rodou por quartéis e centros de formação de agentes de todo o país, onde era exibido para ilustrar as aulas. O censor Wilson de Queiroz Garcia escreveu que o filme, se liberado, ?seria o estopim que falta ser aceso para a luta terrorista no Brasil?. Quem achasse um exagero, que lesse o ?JB? da véspera: ?A título de ilustração para o que dizemos, leia-se ?Algumas Questões Sobre a Guerrilha no Brasil?, do comunista Carlos Marighella, publicada no Jornal do Brasil de ontem, domingo, dia 15 de setembro de 1968.?

Os censores às vezes mostravam seus cacoetes de críticos de cinema. Com sotaque próprio, evidentemente. José Mojica teve o seu Quando os Deuses Adormecem liberado em 28 de janeiro de 1972 pelo censor Osmar Fialho, para maiores de 18 anos e com cortes. No parecer, ele justifica a falta de qualidade: ?O filme apresenta imagens negativas de miséria, favelas, bordéis, traições, etc., inclusive cenas sexuais excitantes, que o exime da exibição aos menores de 18 anos. Por conter cenas desprimorosas para o Brasil e pela ausência de uma técnica mais perfeita (excesso de representação – falta de autenticidade), opino pela liberação sem as chancelas de ?boa qualidade? e de ?livre exportação.?

Mais sorte teve Tenda dos Milagres, de Nelson Pereira dos Santos. Caiu nas mãos das censoras Marlene R. Celani e Isabel Maria Martins de Carvalho, que abrem o parecer classificando-o como ?de boa qualidade? e ?livre para exportação?, além de tecerem rasgados elogios: ?Um filme que honra a indústria cinematográfica nacional, tanto pelo enredo como pela técnica e atuação dos atores.? E prosseguem entusiasmadas: ?o filme torna-se uma obra digna de ser vista pelos nossos jovens, considerando-se entretanto, algumas cenas de cama com pequeno erotismo, assassinato por um policial sem motivo e alguns palavrões que se encaixam devidamente no contexto.? Levando em conta o valor das ?mensagens positivas da película? elas decidiram pela ?liberação com impropriedade para menores de 16 anos, sem cortes?.

Censura vê deboche contra Cristo

Unir sexo e religião era meio caminho para a gaveta. O filme Sexta-Feira da Paixão, inscrito por Livu Norbert Spiegler no Festival de Brasília em 1971, categoria curta metragem de 35mm, sequer chegou ao destino. Foi apreendido no Aeroporto de Congonhas pela Polícia Federal e, desde então, passou a existir só para os ofícios e memorandos.

Os censores o descreveram assim: ?É deprimente como se pretende, com este filme, aviltar a religião, denegrir a Igreja, debochar com as mais caras tradições cristãs. O autor faz, no filme, o relacionamento da Paixão de Cristo com a paixão carnal, o ato sexual praticado naquele dia reverenciado pela Igreja. E como se isso não bastasse, o texto narrado no curso do filme – durante o qual são mostradas pinturas de atos sexuais e de nus – é todo ele debochativo, insultuoso. Isto posto, opino pela interdição deste filme, seja para o VII Festival do Cinema Brasileiro, seja para o circuito normal, por ferir às coletividades e à religião.? Sexta Feira da Paixão continua inédito.

Um dos caminhos encontrados no período pelos produtores nacionais foi a indústria da pornochanchada, que não assustava o regime. Mas também sofria. Bacanal de colegiais, por exemplo, produzido por Ruan Bajon, sofreu uma pequena intervenção cirúrgica da censora Solange Maria Teixeira Hernandes, a severa D. Solange, em agosto de 83: ?Suprimir enfoque do órgão sexual masculino, eliminando a tomada em que o rapaz carrega a mulher para a cama, expondo o falo.?

Mas mesmo com a tesoura, o bom cinema brasileiro encontrou suas brechas nesses vinte anos. A produtora Lucy Barreto recorda que ele ocupou, entre 1968 e 1988, 45% da fatia interna do mercado exibidor, com obras como: Guerra conjugal e Macunaíma, ambos de Joaquim Pedro de Andrade; Como era gostoso o meu francês, de Nelson Pereira dos Santos; A Dama do lotação, de Neville d?Almeida, e Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto.

?Por um lado foi um momento muito sofrido, quando o Glauber se exilou, o Cacá Diegues se exilou, o Neville, e outros duramente atingidos na sua produção. Por outro, tivemos um momento rico, quando precisávamos buscar uma linguagem cheia de metáforas para driblar a censura?. Lucy diverte-se agora, ao lembrar que esse exercício era tal, que levou o filme Um Asilo Muito Louco, de Nelson Pereira dos Santos, ?a ficar tão louco a ponto do espectador não entender nada.?"

 

CRIME & CENSURA

"Censura na terra da liberdade", copyright no. (www.no.com.br), 2/02/02

"Quem entra na Tattered Cover, a maior livraria de Denver, no estado do Colorado, logo vê o letreiro: ?qualquer forma de censura, seja feita por indivíduos, grupos de interesse ou pelo governo, é extremamente prejudicial a cada um dos cidadãos desse país?. A proprietária da Tattered, Joyce Meskis, não expõe os dizeres para posar de politicamente correta. Ela honra o significado de cada uma daquelas letras. Joyce ocupa hoje o epicentro de uma das mais polêmicas disputas judiciais em trâmite nos tribunais americanos. Eis a questão: as autoridades podem quebrar a privacidade de consumidores para tentar relacionar seus hábitos de leitura a crimes que eventualmente tenham cometido? Joyce considera que abrir os arquivos de sua livraria neste caso seria um ataque aos princípios de liberdade de expressão e de privacidade garantidos pela Constituição americana. Proprietários de outras livrarias e autores renomados engrossam o coro, temerosos de que seus clientes fujam em debandada ante a ameaça de serem expostos publicamente. ?Livrarias são um barômetro que mede a saúde da democracia. Quando temos liberdade de vender os livros que nossos clientes querem, as idéias circulam facilmente e o debate floresce. Infelizmente, as experiências da Tettered Cover nos últimos anos alertam que a tempestade está por vir?, escreveu Joyce ao jornal local Denver Rocky Mountain News.

A empresária referia-se à sentença proferida em primeira instância pelo juiz Stephen Phillips, que deu ganho de causa às autoridades policiais, contra as quais ela vem resistindo, em outubro do ano passado. O caso começou em abril de 2000. A proprietária foi procurada por cinco agentes policiais que portavam um mandato judicial. Eles investigavam um trailer onde eram produzidas metafetaminas (uma droga estimulante conhecida como Cristal ou Speed). Lá foram encontrados dois livros que ensinam como elaborar tais substâncias e um envelope da Tatterd Cover sem a etiqueta do destinatário. Os policiais supuseram que os livros haviam sido encomendados na livraria de Joyce (que de fato os comercializa) porque o tamanho dos exemplares coincidia com as dimensões do envelope da Tattered. Queriam saber o nome do cliente ou clientes e a data da compra para localizar os autores do crime. Joyce discordou desde o começo. Disse que os dois livros não continham os adesivos que identificam os produtos vendidos na Tattered e que os policiais tinham outras formas de localizar os suspeitos. Mas concordou que metafetaminas são um perigo para a sociedade (além dos danos à saúde do usuário, o processo de fabricação de tais drogas pode provocar explosões e incêndios). Todos essas ressalvas, porém, são questões secundárias para Joyce. Para ela, o mais importante está na assertiva de que ler um livro não é um crime. ?O fato de alguém ler sobre um crime ou comprar um manual com explicações passo-a-passo de como práticá-lo não significa, necessáriamente, que a pessoa chegou às vias de fato?, disse à no. Chris Finan, presidente da Fundação de Livrarias Americanas em Prol da Livre Expressão.

Não será uma batalha fácil. A chefe da Suprema Corte do Colorado já anunciou que trata-se de uma causa onde há interesses – e direitos – conflitantes. ?Essa é uma marca fundamental da nossa Constituição?, explicou à no. Robert Berring, professor da Escola de Direito da Universidade de Berkeley, na Califórnia. ?A lei nos garante o livre acesso à informação, mas também diz que todos nós temos direito à privacidade?. É por isto que todas as disputas relacionadas à questão vão bater às portas dos tribunais. ?Como trata-se de uma empresa privada, acho que a livraria irá perder a causa?, arrisca Berring. ?Neste caso, não se trata de discutir a liberdade de ler livros, mas é fato que as informações contidas nesses livros serviram de insumo para a prática de um crime. Seria como ir a uma loja de dinamite para inquirir quem comprou os explosivos. O proprietário está moralmente obrigado a fornecer os dados?.

A decisão da Suprema Corte estadual deverá ser anunciada nos próximos meses. Se perder novamente, Joyce ainda poderá recorrer à Suprema Corte federal, mas não há garantias de que o caso seja examinado (ao contrário do STF E STJ brasileiros, a Suprema Corte americana seleciona apenas os casos que deseja julgar). Temendo a derrota, lideranças de opinião em sintonia com Joyce resolveram agir. No começo do mês, uma manifestação de apoio em uma livraria de São Francisco reuniu autores renomados nos Estados Unidos. Eles fizeram contribuições em dinheiro para ajudar nos custos processuais e expressaram o temor de que a liberdade de expressão seja abalada. Em Denver, onde a Tattered Cover é um marco, lideranças também se mobilizaram. Denise Campbell, coordenadora de literatura das escolas do distrito de Cherry Creek (uma região de Denver) é uma das principais articuladoras locais. ?Eu detestaria pensar que ao ajudar um aluno a pesquisar um assunto polêmico eu poderia estar criando evidências capazes de ameaçar meu emprego ou minha credibilidade pessoal?, analisa.

O precedente mais conhecido de casos semelhantes ao da Tattered nos Estados Unidos ocorreu durante o escândalo Bill Clinton-Monica Lewinsky. Na época, o promotor Kenneth Starr tentou levantar informações de Monica em uma livraria de Washington para saber se ela havia comprado o romance Vox, de Nicholson Baker, que trata de sexo por telefone. O processo, no entanto, não foi adiante por peculiaridades legais de então. Há um ano, dois casos semelhantes foram registrados na rede de livrarias Borders, nos estados de Massachussets (uma ação civil sigilosa) e em Kansas (um caso também relacionado a drogas). Apenas um dos casos veio à público e a livraria venceu já em primeira instância. Borders e Barnes & Nobles, as duas mairoes redes de livrarias dos Estados Unidos, confirmaram à no. que não revelam dados sobre os clientes mesmo estando sujeitas a um mandado judicial. A orientação é buscar uma solução legal para cada caso.

Os moradores de Denver consideram a Tattered um orgulho para a cidade. ?Pessoas dirigem milhas e milhas para ir até lá em busca de raridades?, diz Denise. Joyce está por trás do sucesso da empreitada. A primeira loja abriu as portas em 1974, depois que ela acumulou experiência trabalhando em livrarias da região para custear os estudos. A livraria era acanhada para os padrões locais. Desde então, não parou de crescer. Hoje tem meio milhão de livros, duas lojas, sofás espalhados entre as estantes para lembrar uma sala de estar, um espaço que abriga 600 conferências de autores convidados por ano, um restaurante charmoso e dois cafés. A veia contestadora de Joyce já se expressava na infância. Quando cursava a quarta série, ouviu que o livro que desejava ler era destinado apenas a adultos. Contra-argumentou. ?Mas minha mãe não se importaria se eu lesse.? Foi a organizadora e líder de vários movimentos em favor da liberdade intelectual, entre eles Cidadãos do Colorado contra a Censura. ?A diversidade acentua a criatividade, fortalece o caráter, a filosofia e a tolerância?, gosta de frisar. A empresária dá expediente diário na Tattered, onde pode ser vista carregando caixas de livros para preencher as estantes. Aos amigos costuma reclamar que o negócio é menos lucrativo do que aparenta e que a decisão de vender livros polêmicos afasta os clientes mais conservadores. É tida pelos editores como uma das executivas mais talentosas do ramo.

Mesmo que vença esta disputa, Joyce e os consumidores que ela quer resguardar não estarão livres da ameaça à privacidade pessoal ao comprarem livros (a não ser que paguem em dinheiro vivo). Desde outubro do ano passado, o governo Bush tem em mãos o poderoso USA Patriot Act, uma série de medidas aprovadas pelo Congresso a toque de caixa sob a justificativa de facilitar o ataque aos terroristas. A seção 215 do ato confere poderes de tirar o fôlego a agentes do FBI. Eles terão autoridade para obter um mandado judicial para solicitar informações sobre qualquer pessoa ou organização. Donos de livrarias de todo o país foram orientados a telefonar imediamente para a Fundaçao em Prol da Livre Expressão antes de abrir os arquivos. ?Mas sabemos que a atuação do FBI tem sido muito agressiva, e duvido que a maioria dos empresárisos do setor tenha tempo sequer de nos consultar?, diz Finan. Atenta a estes e outros reveses, Joyce pergunta-se. ?Será que poderemos continuar oferecendo a diversidade de livros e autores que provocam o debate e que nos permite governar a nós mesmos? Temo quanto a isso e prevejo tempestades adiante para a democracia.?"