Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Milhões para poucos, tortura para muitos

HORÁRIO "GRATUITO"

Antônio Brasil (*)

A campanha eleitoral pela TV está chegando ao fim. É uma época de "tortura" para quem gosta de assistir TV. Também tenho sérias dúvidas sobre a sua necessidade e utilidade. Da forma como são produzidos e veiculados, os programas dos partidos políticos são caros, pouco eficientes e muito autoritários. Deveriam servir para algo mais nobre do que tornar anônimos em celebridades, enriquecer uns poucos profissionais e empresários, tudo isso ao custo do sacrifício e do tédio de tantos telespectadores insatisfeitos.

Assim como a nossa jovem democracia, a propaganda eleitoral tende a confundir um direito com mais uma obrigatoriedade. Exigir que um cidadão vote mesmo que ele não queira, por quaisquer motivos, participar de uma eleição é tão pernicioso como a ilusão de garantir uma audiência televisiva compulsória para os programas eleitorais. Trata-se de uma imposição pouco democrática. Ninguém pode escapar desse direito obrigatório. Confunde-se democracia com algo muito mais importante: liberdade. Liberdade de não participar de uma eleição assim como o direito de não se assistir aos programas dos partidos políticos.

A propaganda eleitoral transmitida pela TV diariamente em doses maciças, além de muito ruim, parece não acreditar na capacidade do telespectador de decidir o que lhe é melhor mais conveniente. É como se todos nós, por uma decisão do governo ou do Congresso, fôssemos obrigados a assistir sempre aos mesmos programas, ao Jornal Nacional, às novelas da Globo ou ao programa do Ratinho. Hoje, a propaganda eleitoral, na forma que é produzida (um grande comercial que não diz nada para não arriscar nada), não possui qualquer conteúdo ideológico que justifique a sua obrigatoriedade e imposição a todos os brasileiros. Tornou-se num mero festival de técnicas e formas audiovisuais. Um laboratório para todos os tipos de truques de marketing televisivo que são avaliados e traduzidos somente nos resultados das pesquisas eleitorais. Tem uma utilidade duvidosa e seguramente só interessa a uns poucos que ganham milhões com uma audiência insatisfeita, passiva e, infelizmente, silenciosa.

"Paraíso" televisivo

Defendo a convocação de um plebiscito entre os brasileiros para decidir se participação em eleição deve ser obrigatória, assim como se o telespectador brasileiro está interessado em trocar a sua programação costumeira por um festival de bobagens e insultos bancados com os seus próprios recursos. É isso mesmo: se você ainda não sabe ou não percebeu, de gratuito o horário eleitoral pela TV não tem nada. Quem paga a conta pela perda de receita publicitária das "pobres" TVs brasileiras somos todos nós, na forma de isenção de impostos. Não faltam empresários caridosos com doação de grandes recursos para que os partidos políticos possam produzir programas caros e sofisticados, mas a veiculação pela TV tem que ser bancada por todos nós.

A campanha eleitoral pela TV se parece muito com a famigerada Voz do Brasil, transmitida pelo rádio. Mais uma herança das nossas ditaduras, o Estado Novo de Vargas, que insiste em sobreviver e continua a infernizar a vida daqueles que apreciam e precisam do rádio na hora do rush. Você não tem escolha e é tratado como fosse criança. Ou você ouve ou, simplesmente, desliga. Ninguém pergunta se quero ou como deveria ser essa programação. Assim como a propaganda eleitoral, a Voz do Brasil só serve para aqueles que adoram falar bem de si próprios e de seus feitos. Um Diário Oficial rádiofônico que não tem autonomia, credibilidade ou "liberdade" para deixar de ser um desperdício de recursos preciosos para ser um verdadeiro serviço de utilidade pública. Informa pouco e beneficia uns poucos poderosos.

A cada eleição me pergunto para que servem tantos recursos gastos nessas campanhas publicitárias eleitorais milionárias bancadas de forma sempre muito nebulosa por empresários tão caridosos quanto anônimos? A quem interessa as campanhas eleitorais pela TV?

Segundo O Estado de S.Paulo, em matéria publicada no suplemento "Telejornal" (domingo, 20/10), além de beneficiar os próprios políticos, seus egos e seus partidos, temos um setor que está comemorando a revoada de telespectadores dos canais de TVs abertas durante o horário eleitoral. São as claudicantes e quase falidas emissoras de TV por assinatura. Pelo menos durante o mês de agosto elas demonstraram um crescimento inédito e surpreendente de 152%. Inédito? Tudo bem. É a primeira vez que uma pesquisa dessa natureza é feita durante um ano eleitoral no Brasil. Mas "surpreendente"? Não deveria ser. Pelo menos para aqueles que se interessam pelo meio televisivo. Essa migração forçada reafirma, por um lado, a baixa qualidade da propaganda eleitoral e, por outro, confirma a força de um hábito ou mesmo do "vício televisivo". A TV certamente cria hábitos e provoca dependência. A pesquisa comprova que os telespectadores insatisfeitos com a ditadura do horário eleitoral buscam canais de TVs por assinatura que repetem os padrões preestabelecidos. Ou seja, quem estava assistindo ao Jornal Nacional e foi bruscamente interrompido pela imposição da propaganda eleitoral procura um canal de notícias, e assim por diante.

O telespectador que tem opção migra para o mesmo lugar, para o mesmo tipo de programa. Agora, imagine se todo o brasileiro tivesse dinheiro para pagar pelas caríssimas TVs por assinatura? Como seria a audiência dos programas eleitorais se o público tivesse alternativas de programação?

Democracia, assim como boa TV, não deveria ser somente mais uma palavra ou idéia incompreensíveis para a maioria dos brasileiros. Devo ter o direito de assistir ao que quero, quando quero e não ser obrigado a participar de uma propaganda eleitoral tão chata, inútil e ruim. Se não consigo ver um bom filme numa TV paga, navegar na internet ou desligar a TV, devo ter pelo menos o direito de continuar assistindo ao programa que quiser. Democracia, assim como boa TV, não se impõe: conquista-se.

Mas apesar de tudo ainda tem muita gente com motivos para comemorar, não reclamar e lucrar muito com mais essa "obrigatoriedade" em nosso país. Num espaço cada vez mais estreito entre o proibido e o obrigatório, o brasileiro sobrevive e é forçado a assistir a longos comerciais que não dizem rigorosamente nada. A propaganda eleitoral pela TV é sempre um festival de belas imagens editadas em seqüências rápidas e desconexas que informam pouco e explicam menos ainda. Um show de imagens "clichês" com brasileiros felizes dançando ou cantando, paisagens turísticas de um país maravilhoso, com cenas surrealistas que incluem dezenas de "barrigas grávidas" em revoada pelas colinas com textos poéticos recitados em off com tom dramático, e com muita, muita emoção. Como qualquer comercial de cerveja, nada faz muito sentido mas conta-se sempre o poder de o ser humano ser movido por atitudes emocionais irracionais.

Durante os programas dos partidos políticos, todos estão sempre elogiando a si próprios e a suas propostas. Pouquíssimas explicações são oferecidas sobre como devemos proceder para alcançar mais esse "paraíso" televisivo. Mas muito já se falou e se criticou sobre as novas técnicas de marketing para vender candidato à presidência como se fosse "sabão em pó", que lava mais branco; ou pilha, que dura mais. Não há razão para discutir ainda mais o óbvio. Publicidade não é jornalismo. Mas publicidade ou propaganda obrigatória é pauta para um jornalismo que ainda possui um objetivo social voltado para os interesses do público. Não devemos ser obrigados a assistir a comerciais pela TV. Ainda mais se eles forem sobre produtos ou propostas duvidosas.

Refletir e agir

O grande problema das novas campanhas eleitorais pela TV é que, ainda por cima, todas elas passaram a ser muito parecidas. Segundo as novas tendências de marketing, conteúdo e ideologia estão fora de moda e entediam o telespectador. Logo, a solução é não dizer nada e fazer das imagens um verdadeiro caleidoscópio de uma realidade fictícia e inusitada. Quanto mais imagens, melhor. De preferência colocadas sempre fora de contexto para confundir o pensamento e evitar a necessidade de respostas para as inevitáveis perguntas. Segue-se o preceito máximo do meio televisivo. Assiste-se a um programa, vota-se num candidato ou compra-se um produto pela emoção e não pela razão ou pela informação.

No horário eleitoral pela TV, esse preceito é levado a extremos. Não existe nenhum compromisso com os fatos, números, dados ou outras informações mais úteis. Isso deveria ficar por conta da imprensa e pronto. Fazemos publicidade e não temos que comprovar nada. Todos os programas, partidos, propostas e candidatos se confundem. A forma se impõe ao conteúdo e tudo fica muito parecido. Vender cerveja e candidato à presidência é tudo a mesma coisa. O importante é não dizer muito sobre a qualidade do produto. Não chega a ser somente uma campanha eleitoral de TV mentirosa e produtos de qualidade duvidosa. É, provavelmente, bem pior. Quem não consegue mais desligar a TV e buscar alternativas de informação está sujeito a acreditar no que vê por falta de opção.

Num processo de lavagem cerebral diário, que confunde sabão em pó com propostas políticas, o telespectador tende a acreditar igualmente em pesquisas de opinião que tanto garantem que o sabão lava mais branco como que o candidato vai ser eleito ou vai governar melhor. Uma atitude condicionada por um processo de repetição que não admite análises ou críticas. Aceita-se a propaganda como se aceita a fé ou a verdade. As imagens e os slogans que nada dizem se repetem e sempre garantem os votos. Éneas Carneiro é um bom exemplo…

A estratégia de não dizer nada só é interrompida na campanha eleitoral pela TV pelo horário reservado para os "insultos obrigatórios". Aí é um outro festival de baixarias. Além de não dizer nada e colocar efeitos especiais de última geração em belas imagens, os marqueteiros adoram receber denúncias e acusar seus oponentes. É quando a publicidade, como num passe de mágica, se transveste em jornalismo investigativo ao utilizar a linguagem mais agressiva e sensacionalista. Não há necessidade de incorporar a essência dos objetivos de um jornalismo de qualidade. Qualquer jornalista serve. O importante é a forma, é parecer jornalismo. Não se perde tempo ou recursos para apurar e investigar as procedências e conteúdos de denúncias ou acusações. O importante é parecer bem jornalístico para obter alguma credibilidade do público.

Mas se, por acaso, os marqueteiros não receberem denúncias, tanto faz. É só apelar novamente para a emoção ou o medo. Chama-se uma atriz meio decadente com título de namoradinha de país, escreve-se um belo texto que se parece com novela, que não explica muito, mas que certamente causará a maior polêmica, e depois é só sair por aí comemorando a audiência conquistada. O público não tem alternativa mesmo e a imprensa, com poucos recursos e ainda menos notícias, garante a repercussão no próximo dia.

Considerando que horário eleitoral pelo rádio e TV é bancado por todos nós, creio que, nas próximas eleições, deveríamos fiscalizar com maior rigor como o nosso dinheiro é gasto no horário "gratuito". Exigir um conteúdo menos publicitário e mais informacional nas propagandas eleitorais na TV é um direito de qualquer cidadão. Garantir uma veiculação obrigatória universal, mas não impor condições à produção dos seus conteúdos, é uma atitude irresponsável com os recursos públicos. Financia-se a veiculação mas ninguém controla ou banca a produção dos programas dos partidos políticos. Confunde-se liberdade de conteúdo com falta de qualquer conteúdo. É muito parecido com a nossa saúde pública, que oferece consultas gratuitas nos hospitais mas não fornece os medicamentos necessários para o paciente. Veiculação gratuita sem uma produção televisiva adequada e devidamente avaliada é pura perda de tempo, dinheiro e audiência.

Quanto à obrigatoriedade de exibição universal, sou contra. Os programas dos partidos deveriam ser veiculados gratuitamente somente nos canais públicos. Em países como os Estados Unidos, a produção e veiculação de programas políticos pelas TVs são consideradas "peças publicitárias" e, como tal, devem ser pagas e assistidas pelo público.

E no Brasil? Como os pequenos partidos políticos sobreviveriam? Deveríamos, então, criar alternativas mais apropriadas às nossas condições, que preservassem e estimulassem um conteúdo político melhor e mais apropriado, mas que também preservassem os direitos dos telespectadores das TVs abertas. A forma atual de propaganda eleitoral pela TV não garante informação e é autoritária. O atual sistema também é injusto com os pequenos partidos. Os grandes têm mais tempo no horário gratuito, logo possuem uma grande chance de continuarem sendo grandes. E os pequenos partidos? Vão precisar de muita sorte, boas propostas, criatividade ou de chamar sempre alguém com o nome e a cara do Enéas, é claro!

Tem muita gente que adora se promover e lucrar com a propaganda eleitoral obrigatória pela TV. Ao pobre do telespectador brasileiro não é dado o direito de escolha ou o direito de reclamar. Ele assiste a tudo insatisfeito, migra para as TVs pagas ou é obrigado a desligar a TV. Entre todas as opções, esta pode ser a mais perigosa. Ao desligarem os aparelhos de TV, as famílias brasileiras podem voltar a conversar entre si, dúvidas podem surgir, perguntas podem ser feitas e, o que é pior: as pessoas podem voltar a pensar, refletir e começarem a agir!

(*) Jornalista, coordenador do Laboratório de TV, professor de telejornalismo e doutorando em Ciência da Informação pelo convênio IBICT/UFRJ