Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ministério Público e o poder de investigação

Hugo Nigro Mazzilli (*)

 

H

á dias, integrantes do Ministério Público Federal, devidamente autorizados por decisão judicial e auxiliados pela Polícia Federal, fizeram busca e apreensão de documentos na casa de um ex-presidente do Banco Central.

A providência causou reação irada do sr. presidente da República, que a comparou aos tempos de arbítrio, enquanto um de seus ministros sustentou que o ato seria abusivo e ilegal, não devendo a polícia acompanhar o Ministério Público em tais diligências.

Aí há uma série de equívocos a desfazer. Por primeiro, a Constituição permite o ingresso na casa de qualquer pessoa, durante o dia, por determinação judicial (art. 5?, XI); ora, houve autorização de juíza federal competente para emitir a ordem de busca. Depois, o Ministério Público tem o poder de investigar, seja diretamente (CF, art. 129, III), seja por meio da polícia, cujas diligências ele pode requisitar e acompanhar (CF, art. 129, VI a VIII; Lei Compl. n. 75/93, art. 7?, II; Lei n. 8.625/93, art. 26, IV). Enfim, a autoridade judiciária competente entendeu haver indícios que justificavam a medida, e os resultados da diligência, possivelmente graves, serão conhecidos a seu tempo.

A reação imprópria de autoridades que deveriam dar o exemplo de submissão à lei parece mostrar surpresa de verem que todos podem ser investigados pela polícia e pelo Ministério Público, mesmo pessoas até então aparentemente acima da lei.

Há larga diferença entre a diligência, comandada hoje pelo Ministério Público sob autorização judicial, e os execráveis tempo do arbítrio. Nos tempos da ditadura, o Ministério Público não raro era servil ao governo, e uma providência como esta de hoje jamais poderia ter sido tomada, a não ser que conviesse aos governantes de plantão. Hoje, ao contrário, o Ministério Público e o Poder Judiciário têm garantias, oriundas de uma Constituição legítima e democrática, que lhes permitem fazer o que fizerem, sem temer atos do presidente da República contra seu livre exercício, sob pena de crime de responsabilidade (CF, art. 85, II).

E se é para lembrar dos tempos do arbítrio, naquela época é que não se precisava de autorização judicial para invadir casas ou fazer prisões. Então é que o chefe do Executivo governava unilateralmente, ditando o que entendia devesse ser texto constitucional ou lei comum, com seus atos institucionais e seus decretos-lei.

Hoje, de semelhança com o arbítrio, temos, talvez, a vontade dos governantes de voltar a manietar e amordaçar o Ministério Público, fazendo-o novamente mero apêndice do Poder Executivo; temos, ainda, a facilidade com que legislam por meio de medidas provisórias, com clara usurpação do poder legiferante ordinário.

Rebentos últimos dos decretos-leis, as medidas provisórias vêm sendo abusivamente adotadas por todos os presidentes da República depois de 1988, sem se fundarem em critérios efetivos de relevância e urgência. De tão excepcionais deveriam ser as medidas provisórias, que a Constituição exige sejam submetidas de imediato ao Congresso, com tal urgência que, estando em recesso, deve ser convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias. E, o que é mais grave, são ainda indevidamente reeditadas ad nauseam quando perdem a eficácia por falta de oportuna conversão em lei. Sua reedição é flagrantemente inconstitucional porque a não-aprovação no prazo de trinta dias significa não terem sido aceitas pelo Congresso, que apenas deveria disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes, e nunca coonestar a reedição indefinida de medidas cuja eficácia se perdeu. Mas, longe disso, acabaram se tornando meio de rotina pelo qual o Poder Executivo legisla ordinariamente, sem efetiva participação do Poder Legislativo.

Nessa tarefa ingente, que infelizmente ainda não tem encontrado devido cobro dos tribunais e da sociedade, os presidentes da República pós-1988 têm usurpado constantemente as funções legislativas do Congresso Nacional.

Esses sim, entre outros, são exemplos execráveis, que tanto deveriam combater nossos atuais dirigentes que se dizem, pro domo sua, tão incomodados com o arbítrio.

Enquanto isso, pode estar certa a sociedade de que o Ministério Público nacional, tanto o Federal como o dos Estados, por certo está honrando suas graves funções, de forma responsável mas corajosa, e fazendo jus às garantias que a Constituição de 1988 lhe conferiu, tanto que, nunca tanto como hoje, está combatendo a criminalidade e defendendo o meio ambiente, o consumidor e o patrimônio público deste espoliado País, o que, por certo, tem provocado a ira e a reação de fortes grupos econômicos e até governamentais, incomodados com empecilhos que nunca estiveram acostumados a enfrentar.

(*) Advogado, professor de Direito, ex-presidente da Associação Paulista do Ministério Público, autor do livro O inquérito civil ? Iinvestigações do Ministério Público (Saraiva, 1999).