Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Miriam Leitão


 

“Do que o presidente da República está sendo acusado mesmo? De ter H no seu nome. Serra é suspeito por se chamar José. O governador de São Paulo é culpado porque Covas se escreve com C – aliás, a mesma letra com que se escreve Collor, Coutinho, Claudio Vieira, Cláudio Humberto e que está também em PC. Outras provas podem surgir depois, mas, até agora, a única coisa concreta a que a imprensa chegou após uma semana de investigações é que uma conta com essas iniciais realmente existe num paraíso fiscal. Mas nós da imprensa ligamos o rolo compressor que empastela reputações.

As primeiras reportagens sobre o assunto tinham a consistência de fatos: uma chantagem estava sendo montada e conversas telefônicas de autoridades realmente foram gravadas. De onde saiu a informação de que a conta é destas pessoas e não de quaisquer outras? A suposição de que aquela conta tinha estes titulares foi uma ilação de quem tentou usar o PT para fazer a acusação. Mas, nos noticiários e reportagens, passamos a citá-la assim: ‘A conta milionária num paraíso fiscal, que seria do presidente Fernando Henrique, do governador Covas, do ministro José Serra e do ministro falecido Sérgio Motta…’

O truque é simples, basta usar o verbo no futuro do pretérito. Não se sabe quem disse que eles são, mas nós estamos dizendo que eles seriam. Isso nos exime de culpa. Mas o leitor que vê repetidamente a mesma informação, o telespectador, exposto à rapidez dos tempos da televisão, capta a sutileza do tempo verbal?

Talvez não haja outra fórmula para tratar um assunto em curso, de presença inevitável na pauta, mas sobre o qual não existam certezas. Talvez este seja um dilema sem solução. Mas o fato é que o ‘seria’ só é confortável para quem escreve. A Folha de S. Paulo publicou quarta-feira que a conta realmente existia. Isto foi um avanço. Quinta-feira, numa manchete de página, disse: ‘Cópia de fax liga Motta a empresa no Caribe.’ No segundo parágrafo do texto, o mesmo jornal disse o seguinte: ‘Nada comprova que o fax seja verdadeiro.’ Ora, se nada comprova a veracidade de um documento, a única coisa a fazer é não publicá-lo e aprofundar as investigações. Ainda mais porque o acusado não pode ser ouvido, para se defender.

Nós jornalistas temos de pensar mais profundamente sobre como lidamos com acusações. Temos o poder de destruir biografias. Por isso, os cuidados têm de ser extremos. Na saudável competição entre os jornais, não se pode sacrificar os cuidados mínimos estabelecidos pelo correto exercício da profissão. Assusta-me o poder que temos, e como ele está sendo exercido.

Um dos defeitos comuns nas reportagens é que basta um pequeno indício – ou nem isso, basta que alguém se refira ao nome de uma pessoa – e ela passa, nas reportagens seguintes, as suítes, a ter seu nome associado à perigosa palavra ‘envolvido’. Envolvido é outro dos truques da imprensa. Protege o jornalista e lança uma sombra sobre a pessoa da qual se fala. ‘Envolvido’ embola culpados e inocentes, suspeitos e vítimas numa mesma zona de sombras. Quem não leu o jornal anterior não saberá encontrar a fronteira entre os dois grupos: todos passam a pertencer à categoria suspeitíssima de ‘envolvidos’.

Ninguém está acima de suspeitas e todas as pistas devem ser seguidas, mas deveríamos pensar mais cuidadosamente sobre o exemplo dado pelo PT. Diante das informações, o partido as examinou, achou que eram inconsistentes e não as divulgou. Hoje o partido quer, como toda a sociedade, que tudo seja esclarecido. Mas os jornais e os noticiários passam a fazer o que o PT se recusou a fazer: dar curso a uma acusação sem provas. Para isto, estamos apenas usando velhos e surrados truques: a palavra ‘suposta’ antes da acusação, e o uso de palavras e tempos verbais que nos protegem e expõem os outros, sejam eles vítimas ou culpados.

Os jornalistas não podem escapar da própria natureza, nem da natureza do seu trabalho. A pauta hoje é esta. Dela não se pode jamais fugir. O erro não é concentrar-se no assunto. Isso está absolutamente correto. Mas temos de refletir claramente sobre técnica jornalística, procedimentos, ética. O show montado pela mídia adula as vaidades e acrescenta ingredientes perigosos. Na primeira entrevista que deu, o conhecido caçador de manchetes Vicente Chelotti começou exatamente do ponto mais sensacional: disse que chamará o presidente da República para depor. Só isto já transforma em réu o presidente da República, que entrou na história pelo fio da letra H. Por que Chelotti não pensa em começar convocando Lafaiette Coutinho, que procurou Lula e Luiz Gushiken, e pôs um avião à disposição de Márcio Thomas Bastos? Se ele demonstrou tanto empenho, se foi ele o primeiro a aparecer com cópias de documentos que pareceram fraudulentos à oposição, ele é o fio da meada.

Mas Chelotti não foi por aí, porque isto não tem tanto apelo jornalístico. O governo errou muito nesta primeira semana, como sempre acontece. Os estrategistas do Planalto avaliaram mal, reagiram atrasadamente, estão deixando sedimentar convicções. Entregou-se o assunto a um general, como nos velhos tempos do regime militar, para em seguida perceber-se o erro tático.

O porta-voz começou levíssimo no primeiro dia. Declarou: ‘O presidente não pode atinar qual seja o móvel, o motivo, desta acusação…’. E apenas no quinto dia demonstrou alguma indignação e falou na falta de respeito ao cargo. De novo, está fora do tom. Ninguém é inatacável pelo cargo que ocupa. O governo não pode se encastelar, ter melindres, ofender-se. Ele tem de entrar decisivamente no esforço de esclarecer e apagar dúvidas. Há uma dinâmica inescapável em curso. Não basta às autoridades se esconderem atrás da norma de que o ônus da prova cabe ao acusador, porque neste caso nem há acusador explícito. O que existe tentou se esconder atrás do biombo do partido de oposição – que se recusou a fazer o papel de biombo – e agora nega as mais claras provas do que fez.

Por mais inconsistentes que sejam as acusações, elas estão sendo marteladas diariamente. Não há espaço e tempo para indecisões, tibieza e amadorismo. A estratégia tem que ser mais incisiva e frontal. E seu foco tem que ser um só: olhar as dúvidas de frente.”

“O que a imprensa tem a aprender com o PT”, copyright O Globo, 14/11/98

“A Folha marcou um ponto importante ao revelar, na quarta-feira passada, que a empresa citada no dossiê contra o presidente da República, a CH, J & T, existe e tem sede nas Bahamas.

Como o jornal cuidou de frisar, a notícia não basta para conferir veracidade à acusação de que FHC, Mário Covas e José Serra teriam US$ 368 milhões depositados em um paraíso fiscal, negócio do qual também seria sócio Sérgio Motta, morto em abril.

Mas deve-se ao repórter Fernando Rodrigues o primeiro sinal de que alguém estava interessado em desenvolver, neste caso, a atividade essencial do jornalismo: investigar.

Até então, a cobertura vinha se restringindo ao repúdio contra os que teriam tentado intimidar o governo e à conclusão antecipada de que era tudo mentira.

A história veio a público no final de semana passado. Na verdade, duas histórias. O jornalista Elio Gaspari, na Folha e no Globo, e a revista Época relataram, além da existência do dossiê, a de um pacote de telefonemas gravados que teve como alvo central o ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros.

Até o momento sem ligação conhecida, os dois casos foram apresentados como uma espécie de ‘dois em um’ e caracterizados como chantagem contra o governo. O leitor soube que ambos corriam na praça havia algum tempo, e que o chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso, fora incumbido de investigá-los.

Sobre o ‘grampo’, apontou-se uma possível relação com a venda das estatais de telecomunicações.

Sobre o dossiê, revelou-se que havia sido oferecido a diversos políticos. Paulo Maluf teria tentado, sem sucesso, convencer Lula a divulgá-lo. Na véspera da votação em que foi derrotado por Covas, as filhas do pepebista visitaram Marta Suplicy com o mesmo objetivo. Novo fracasso.

Os petistas alegam ter declinado diante da fragilidade da documentação.

As duas histórias vieram à tona, ao que tudo indica, por iniciativa do próprio governo, talvez convencido de que essa seria uma boa maneira de neutralizá-las.

Tendo ou não sido assim, o certo é que as interpretações iniciais foram bastante convenientes aos tucanos.

Segundo Época, ‘os chantagistas querem atingir Mendonça de Barros e inviabilizar o poderoso Ministério da Produção’, para o qual ele é cotado. A reação do ministro ao ouvir as fitas ‘foi surpreendente – não se intimidou’.

Ao tomar conhecimento do dossiê, FHC ‘deu pouca importância a esse enredo produzido por autores desconhecidos’. Quanto a Maluf, ‘está pedindo para virar ministro. Dificilmente conseguirá’. ‘Grampo’ e chantagem, se ela de fato ocorreu, são crimes. O esclarecimento de sua autoria merece toda a atenção da imprensa.

O viés original da cobertura não teria sido problema maior se, na esteira das reportagens do fim-de-semana, os jornais tivessem ao menos dividido sua energia entre a revolta contra os ‘chantagistas’ e a obrigação de apurar se procedem ou não as informações veiculadas.

Predominou, no entanto, o primeiro enfoque, aliado a um coro, também este em sintonia com o Planalto, de elogios à ‘postura digna’ do PT (o partido viveu seus 15 minutos de ‘bom selvagem’, encerrados no momento em que passou a defender que as denúncias fossem levadas ao Congresso).

Acima de tudo, faltou disposição para fazer o básico: reportagem. Assim como o governo não demonstrou urgência em desvendar a identidade dos que tentaram desmoralizá-lo, a imprensa também não se incomodou muito em tirar a limpo o conteúdo do dossiê ou das gravações. Algo como ‘não vale a pena ir atrás porque está claro que não é verdade’.

Quem adotou essa linha procurou ampará-la no confronto entre as biografias dos personagens envolvidos. De um lado, os cardeais do PSDB. Do outro, Maluf e um trem fantasma carregado de gente da era Collor, a começar do próprio ex-presidente.

Acontece que não é possível simplesmente decidir que determinados políticos, à diferença dos demais, pairam acima de qualquer suspeita.

Nesse cenário, a Folha merece elogio pelo furo da quarta-feira. Menos do que uma reviravolta, ele é um passo na investigação. Mas valeu muito porque, em meio à assunção generalizada de que nada havia a apurar, foi como se o jornal tivesse dito aos concorrentes: ‘talvez fosse o caso de pelo menos tomar uma providência tão simples quanto checar se existe a empresa citada’.

Depois disso, a Folha trouxe, nas edições de quinta-feira e de ontem, trechos do dossiê que reproduziam papéis da CH, J & T. No primeiro deles aparecia o nome de Sérgio Motta. No segundo, os de FHC, Covas e Serra. O material, como de resto todo o calhamaço, não é comprovado.

O fato de o jornal ter dado ampla visibilidade a essa ressalva não impediu que dois leitores protestassem à ombudsman. ‘A mim incomoda o uso ostensivo de uma informação que não pôde ser comprovada’, escreveu um deles.

Concordo. Embora enxergue legítimo interesse jornalístico na revelação do conteúdo do dossiê, penso que não se deve dar o mesmo destaque a um papel cuja autenticidade a Folha tem como sustentar e a outro que pode mostrar-se forjado no dia seguinte.

O jornal deve cuidar para não ficar refém dos interesses das partes envolvidas – qualquer uma delas. E investir em diferentes linhas de investigação – entre elas a perícia dos papéis. Não que o assunto se esgote na verificação de sua autenticidade. É essencial esclarecer as questões despertadas pelo dossiê. E outras. Na sexta-feira, por exemplo, os jornais relataram uma ‘conversa informal’ de Mendonça de Barros com jornalistas durante jantar em Brasília. Nela, o ministro adiantou temas que teria abordado nos telefonemas gravados.

Como se fosse a coisa mais normal do mundo, declarou ter estimulado, quando presidente do BNDES, a formação do consórcio que concorreu com a Votorantim na disputa pela Vale do Rio Doce. Ou seja, o responsável pela privatização afirma ter influído na formação do grupo que ficou com a estatal.

Há muito a ser discutido com o leitor. Que seja dada a ele informação para avaliar até onde vão as duas histórias.”

“Dossiê tucano”, copyright Folha de S. Paulo, 15/11/98

“Na semana passada, Brasília ficou paralisada diante de um pacote de denúncias constituído por cópias de seis documentos – cinco em português e um em inglês – e gravações clandestinas de telefonemas, cujas passagens principais estão reunidas em duas fitas. As denúncias envolvem cinco autoridades, inclusive o presidente Fernando Henrique Cardoso. Na acusação mais pesada, feita por meio de uma carta apócrifa ao ministro José Serra, da Saúde, diz-se que o presidente seria sócio de uma empresa, a CH, J & T, criada em janeiro de 1994 nas Bahamas, um dos paraísos fiscais do Caribe, cuja conta bancária guardaria a espantosa quantia de 368 milhões de dólares. Nessa empresa, ainda segundo a carta, Fernando Henrique seria sócio do ministro Serra, do governador de São Paulo, Mário Covas, e do ministro Sergio Motta, morto em abril passado – ou seja, só a nata do tucanato. A história provocou perplexidade geral, atiçou políticos aliados do governo e oposicionistas, produziu pedidos de criação de uma comissão parlamentar de inquérito no Congresso, levantou considerações sobre qual órgão deveria investigar o caso e mobilizou a imprensa.

O ministro José Serra, um dos alvos do dossiê, foi o primeiro a tornar públicos os fax que recebeu:

Chantagem – Na quarta-feira, depois de quatro dias envolto por essa fumaça, o governo resolveu despachar fitas e papéis, que até então estavam sob investigação da Casa Militar, para o Ministério Público e a Polícia Federal. Na sexta-feira, durante uma viagem ao Rio de Janeiro, o presidente falou pela primeira vez sobre o episódio. E foi duríssimo. Chamou as pessoas associadas às denúncias de ‘farsantes, falsários e pessoas que o Brasil custou a expulsar da vida pública’. Aos jornalistas que o acompanhavam fez uma exigência: ‘Peço aos senhores que não ousem me perguntar sobre o que não deve ser pensado e muito menos respondido por alguém que tem dignidade, tem decência, como eu’. O presidente acha um desrespeito com ele e com o cargo que ocupa ser conduzido à posição de suspeito sem que uma única prova consistente tenha vindo a público até o momento. Foram distribuídos até agora alguns poucos documentos notoriamente fraudados. Há comentários sobre a existência de uma montanha de outros papéis comprometedores. Mas até a noite de sexta-feira esses documentos não tinham vindo a público.

Por mais infundadas que possam ser as denúncias, o governo, naturalmente, está preocupado, porque elas tomaram uma proporção inesperada. Ficou tão atordoado que se referiu às denúncias como ‘chantagem’ e a seus fabricantes como ‘chantagistas’. Chantagem, na verdade, pressupõe a existência de um fato real que dá ao chantagista a oportunidade de pressionar a vítima. O governo também desenvolveu uma síndrome de paranóia nos últimos dias. Na sexta-feira, uma alta autoridade do Planalto ligou para o diretor da Polícia Federal, Vicente Chelotti, encarregado das investigações. Queria saber se é possível alguém abrir uma conta no exterior em nome de outra pessoa – no caso, o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso – sem que ela saiba ou autorize. A resposta do delegado foi clara e preocupante: é possível, sim, abrir uma conta no exterior apenas para comprometer outra pessoa.

Mário Covas fez pouco da insinuação de que seriam suas as iniciais de uma empresa nas Bahamas: ‘Esse ‘C’ pode ser de ‘Cebola’, ironizou.

‘Medroso’ – A balbúrdia toda acontece num momento delicado. O Brasil acaba de fechar um acordo com o FMI, luta para reconquistar a confiança dos investidores internacionais e estancar a sangria de dólares. Empresários estrangeiros que têm investimentos no Brasil se movimentavam na semana passada para saber se a história das contas no exterior tem potencial desestabilizante para a moeda nacional. Até esse ponto iam as preocupações nos últimos dias. Em tese, a cúpula tucana pode ter ou não uma ou mais contas no exterior para abrigar dinheiro não declarado à Receita brasileira. Se ao fim dessa novela se descobrir que havia uma conta dessas para guardar sobras de campanha, o episódio irá causar um mal profundo ao Brasil, na forma de desconfiança, frustração, perda de credibilidade e risco de turbulência política e econômica. Caso se descubra que não havia nada, que tudo não passava de calúnia, então o país terá vivido um terremoto por absolutamente nada.

As denúncias, em especial o papelório caribenho sobre empresa e conta secretas, não têm autor conhecido. O dossiê, de acordo com o que se especula em Brasília, poderia ter saído das mãos do senador Gilberto Miranda, do PFL do Amazonas, ou do ex-prefeito Paulo Maluf, de São Paulo. Poderia, ainda, ter sido reunido pelo empresário Lafaiete Coutinho, ex-presidente do Banco do Brasil no governo Collor. Ou, comenta-se, o pai seria o próprio Fernando Collor de Mello. Procurados, todos negam que tenham sabido de algo. Na semana passada, um ex-funcionário da Kroll Associates, empresa que faz investigações internacionais e descobriu uma parte do dinheiro de Paulo César Farias no exterior, contou a VEJA que a empresa foi contratada para levantar o dossiê. ‘O contrato foi feito direto na Kroll de Nova York, e não passou pela filial de São Paulo. Quem contratou foi um escritório paulista de advocacia’, diz.

A curiosidade que existe nesse caso é que os primeiros papéis vieram a público não por iniciativa de qualquer acusador, mas pela vontade de um dos acusados – o ministro da Saúde, José Serra, que vazou uma coleção de cópias xerox à imprensa. Com isso, o ministro conseguiu antecipar-se à publicação do dossiê, talvez com a intenção de mostrar, já na divulgação dos primeiros papéis, que tudo não passava de grosseira falsificação. Mas, em vez de dissipar o interesse pelo assunto, só conseguiu aguçar ainda mais a curiosidade das pessoas. Um dos resultados: o presidente Fernando Henrique Cardoso ficou muito irritado com seu auxiliar José Serra. O presidente ficou, na verdade, tão contrariado com a atitude do ministro que, na semana passada, não teve nem o cuidado de esconder o seu humor de alguns dos líderes governistas no Congresso. ‘O Serra é um medroso’, desabafou o presidente, para mais de um deles. Para o presidente, Serra precipitou-se desnecessariamente. Alguns papéis do suposto dossiê ou provavelmente o dossiê inteiro já haviam chegado a pelo menos um órgão de imprensa. Até o momento em que Serra divulgou as acusações grosseiras feitas contra ele em cópias xerox, esses papéis permaneciam na gaveta de seus destinatários, que não se animavam a divulgar coisa tão duvidosa. Depois que o próprio ministro tomou a iniciativa, as cópias xerox começaram a pipocar e o caso se alastrou.

Mendonça de Barros, ministro das Comunicações, teve várias conversas grampeadas: ‘Acho um absurdo que isso aconteça’. O dossiê sobre uma empresa caribenha dona de uma milionária conta em dólares já circulava nos meios políticos havia pelo menos dois meses. Antes do primeiro turno das eleições, em 4 de outubro, o PT recebeu um intermediário no Rio de Janeiro que propunha um negócio com os papéis. O homem que tentou vender a papelada ao partido de Luís Inácio Lula da Silva se chama Caio Fábio, é pastor evangélico e amigo do governador eleito Anthony Garotinho. Aos interlocutores que contatou, Caio Fábio informou que um amigo seu, morador da Flórida, tinha documentos e estava disposto a vendê-los por 500.000 dólares. Caio Fábio também ofereceu os papéis ao pessoal do PPS, do então candidato presidencial Ciro Gomes, só que por um preço mais alto, de cerca de 1,5 milhão de reais. Propôs um pagamento de 500.000 à vista em troca de cópias e, depois, 1 milhão de dólares, a ser pagos nos Estados Unidos, dessa vez em troca de todos os originais da papelada. Para se ter uma idéia da ousadia do pastor, ele tentou passar os documentos aos partidos de esquerda na surdina e, sem conseguir realizar o negócio, mudou de estratégia. Dias atrás, Caio Fábio apareceu no Palácio do Planalto à luz do dia para falar com o secretário-geral da Presidência, Eduardo Jorge, que já tinha ouvido comentários sobre o dossiê. Pois bem, desta vez Caio Fábio se mostrou preocupado com a existência de um dossiê que comprometeria figuras do governo, como se nada tivesse a ver com os papéis.

O senador Djalma Falcão, do PMDB de Alagoas, é outro que esteve perto da denúncia. Diz ele que, numa reunião em Maceió, Collor lhe pediu para denunciar o caso. Djalma Falcão respondeu que o faria desde que os papéis tivessem algum tipo de autenticação que garantisse sua veracidade. Collor teria prometido tentar reunir documentos nessas condições, mas não voltou a procurá-lo. Na semana passada, sem que nenhum exame de paternidade dos documentos tenha sido feito, os comentários apontavam o ex-prefeito Paulo Maluf como uma boa aposta para chegar aos papéis. Cardeais do PT informaram que, às vésperas do segundo turno, em 22 de outubro, Lafaiete Coutinho, o banqueiro que atuou no governo Collor e é sogro de um filho de Maluf, procurou Lula pedindo que o PT bancasse a denúncia publicamente. Suspeitam os petistas que Lafaiete Coutinho fez essa tentativa a pedido de Maluf. O ex-prefeito nega veementemente qualquer proximidade com o dossiê. ‘Se tivesse os papéis, eu os teria usado contra Mário Covas durante a campanha’, argumenta Maluf. Em seguida, duas de suas filhas procuraram a então candidata do PT ao governo de São Paulo, Marta Suplicy, com o mesmo objetivo, segundo a candidata. A diferença é que, conforme Marta, elas só disseram que era coisa pesada, mas nada detalharam. Maluf afirma que as filhas foram à casa da candidata sem seu conhecimento e movidas pela preocupação com os ataques que o pai estava sofrendo na campanha eleitoral.

Os enviados do PT para o encontro com Lafaiete Coutinho, o deputado Luiz Gushiken e o advogado Márcio Thomaz Bastos, examinaram os papéis durante meia hora. Segundo Gushiken, a pasta continha algo como trinta folhas de papel. Havia contratos, certidões e extratos de movimentação de dinheiro nas Ilhas Cayman – e nas Bahamas, onde está registrada a CH, J & T. Um dos documentos indicava janeiro de 1994 como data de abertura da conta bancária movimentada por essa sigla. Outro papel continha um diagrama manuscrito, cujo desenho parecia sugerir uma descrição do fluxo de dinheiro. Esses rabiscos indicavam que parte do dinheiro seria usada para o financiamento eleitoral (vinha batizado de political money) e outra parte iria para o bolso dos participantes (private money). A criação de documentos com tais detalhes espanta pela forma simplória com que apresenta as operações, um traço dificilmente associado a políticos como os que o dossiê tenta envolver.

Quatrocentas páginas – Entre os que examinaram o tal dossiê, ninguém acha que, por si só, ele prove algo. Mesmo que os papéis sejam falsificados ou montados, é compreensível que venham a público, pois o governo tem seus inimigos e a imprensa costuma esmerar-se na busca de informações relevantes para seu público. Até agora, no entanto, nada se esclareceu. Poucas pessoas viram os papéis e, mesmo tendo visto, não se animam a falar deles publicamente. O que há de concreto até o momento são seis papéis, divulgados pelo chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso: quatro cartas enviadas a Serra, um papelucho de um luxuoso hotel em Paris, o Pavillon de la Reine, mandado para Covas, e uma carta que, conforme o dossiê, teria sido remetida por Sergio Motta ao ‘prezado Howard’, que ninguém sabe quem é. Esses papéis indicam que existe uma CH, J & T nas Bahamas, Cayman e Zurique. Dizem que um tal de Ray Terrence é o procurador de Serra e depois, num tom ameaçador, alertam que a tentativa do ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, de ‘apagar o rastro’ da empresa em Madri não deu certo e encerram informando que a Eucatex, empresa da família Maluf, está interessada em conhecer o ‘projeto’ da CH, J & T. E nada de contas, nem de 368 milhões de dólares.

Além desses, outros dois papéis vieram a público, em reportagens do jornalista Fernando Rodrigues, da Folha de S.Paulo. Um deles era uma certidão oficial, obtida num cartório de Nassau, capital das Bahamas, mostrando que a empresa CH, J & T realmente existe. O outro dizia que Motta era um dos diretores da companhia, embora o papel, neste caso, não trouxesse nenhuma assinatura do falecido ministro. O próprio jornal, ao divulgá-los, encarregou-se de informar que não provam nada. Sabe-se, no entanto, que flutua por aí um dossiê muito maior, com algo em torno de 400 páginas. Dessa pilha, surgiu uma versão para seu conteúdo. Na semana passada, VEJA ouviu quatro pessoas que tiveram esses papéis em mãos. São dois senadores, um do PFL e outro do PMDB, um deputado da cúpula do Congresso e um amigo íntimo do PFL. Os quatro afirmam que os papéis mostram a existência não de uma, mas de duas contas bancárias, ambas em paraísos fiscais. Uma delas estaria no nome de Sergio Motta, para os tucanos. A outra, no nome do ministro Serra. As quatro pessoas ouvidas por VEJA afirmam que os papéis trazem esses registros. O que eles não afirmam nem poderiam afirmar é que os papéis são verdadeiros, porque não há na documentação nenhuma característica que lhe dê validade como elemento de prova. Os papéis não têm autenticação. Como as cartas apócrifas enviadas a José Serra, podem ser meramente uma fabricação criminosa para envolver cidadãos e políticos íntegros que nunca tiveram um único centavo a mais do que aquilo que declaram ao imposto de renda. Nada do que se conhece da biografia dos quatro tucanos autoriza a suspeita de que os documentos sejam verdadeiros e de que eles não estejam sendo apenas vítimas de uma tentativa criminosa de desmoralização.

Até agora, o que há de certo é que a empresa CH, J & T de fato existe. E só. O ministro José Serra desmentiu a denúncia, acusando Maluf e Collor de ‘estarem por trás disso’. O governador Mário Covas até desprezou o caso. Especulou-se, inclusive, sobre as iniciais da empresa – seria C de Covas, H de Henrique, J de José Serra e T de Terrence, o tal procurador de Serra. A existência comprovada da empresa e a coincidência das iniciais são dados interessantes, mas nem de longe formam uma prova sobre a sociedade dos tucanos. O governador Covas ironizou que C talvez fosse de cebola. E pode até ser. É mais do que ingenuidade supor que alguém abrirá uma empresa no Caribe, com o intuito de manter-se em sigilo, e, logo no nome da companhia, irá estampar iniciais identificando cada um dos sócios. Além do mais, as letras não querem dizer nada. Afirmar que H é de Henrique tem a mesma força que dizer que é de Homero, e J, em vez de José, é de James Joyce e T, talvez, de Tolinho. Essas especulações, porém, só acontecem porque não se tem uma conclusão sobre as acusações. Para cortá-las pela raiz só mesmo uma investigação séria e eficiente. Só depois de concluído esse trabalho é que se poderá medir o tamanho exato da denúncia – se é que existe algo a denunciar. Pelos papéis que vazaram até agora, o conjunto do dossiê pode sofrer da mesma inconsistência.

Grampo – Há boatos de que novos documentos surgirão – e o que não faltou em Brasília na semana passada foram boatos -, mas a melhor compreensão do dossiê foi divulgada logo no início do episódio. É do advogado Márcio Thomaz Bastos, que foi convidado pelo PT a examinar os documentos e concluiu que não há o que concluir. ‘Eu não falei que os documentos eram falsos’, explica o advogado. ‘O que eu disse é que não havia condições de dizer se eram falsos ou verdadeiros, pois não tinha nenhum papel original.’ Uma leitura atenta dos xerox que vieram a público mostra uma série de esquisitices. Ray Terrence, suposto procurador de Serra, faz assinaturas idênticas em dois documentos – coisa que, ensinam os grafólogos, não existe. Fica claro que a mesma assinatura foi colada nos dois documentos. As pessoas têm características gerais de traço e caligrafia, mas jamais produzem duas assinaturas perfeitamente iguais. Outro dado é que Serra recebeu carta em 1994 endereçada ao ‘ministro da Saúde’, época em que nem ministro era.

Ao mesmo tempo que o país ouvia as histórias do tal dossiê, desabou nos atônitos brasileiros outra novela complicada – as conversas grampeadas na diretoria do BNDES. No sábado 7, o jornalista Renato Fagundes, do Jornal do Brasil, publicou reportagem dizendo que o general Cardoso confirmava a existência de grampo e que o próprio presidente, num telefonema ao BNDES, acabou sendo gravado. Nas fitas, tem-se outro cenário. Nelas, não se fala dos mesmos tucanos mas refere-se igualmente a gente graúda no governo. A escuta pegou conversas do presidente do BNDES, o economista André Lara Resende, e do ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, das Comunicações. A mecânica é parecida com a do já famoso – mas ainda secreto – dossiê. As fitas circulam há mais de um mês, gerando comentários e boatos, e são tantas que se levaria um dia inteiro para ouvir todas. A diferença é de ambiente. As fitas, ao contrário do dossiê, não pretendem enlamear cardeais do tucanato. Elas fazem parte, na explicação mais lógica que se pode dar ao episódio, de uma guerra comercial: a privatização do sistema de telecomunicações do Brasil, um negócio gigantesco, concluído em julho, que movimentou 22 bilhões de reais e envolveu dezenove empresas nacionais e estrangeiras.

No caso das fitas, a criança também nasceu órfã – o que parece ser uma característica desse ‘escândalo’, pois tudo o que vem à tona não tem origem, nem prova. Bem. Ninguém se responsabiliza pelas fitas, até porque o grampo telefônico é crime. Desde que soube delas, o governo começou a tentar identificar o grampeador. No início, os arapongas tinham uma lista de oito suspeitos. Foram eliminando um a um, e sobrou um: é Eduardo Cunha, ex-presidente da Telerj, a telefônica do Rio, no governo Collor. ‘Só não temos convicção de que foi ele porque não colocamos a mão na prova definitiva. Mas só temos 10% de dúvida’, diz um assessor da área de inteligência do governo. Cunha nega qualquer envolvimento com o grampo. ‘Eu não fiz esse grampo, não mexo com esse tipo de coisa e vou processar qualquer pessoa que me acuse de tais indignidades’, diz ele. Na semana passada, o ministro Mendonça de Barros fez questão de garantir que o grampo fora colocado na Telerj. Mas tudo indica que foi colocado no próprio BNDES, dada a impossibilidade técnica de fazer um grampo numa central telefônica e pegar exatamente a linha do presidente do banco.

Há pelo menos um mês, a Casa Militar do Planalto vem investigando o autor do grampo e seu mandatário. Mas até agora não teve sucesso. Comenta-se, no entanto, que o empresário Carlos Jereissati, dono do grupo La Fonte, um dos sócios do consórcio Telemar, que arrematou por 3,4 bilhões de reais dezesseis teles, teria ouvido as fitas. O senador Gilberto Miranda – olha ele aí de novo – também conheceria o conteúdo das gravações, segundo os comentários que se ouviam na semana passada. O ex-presidente José Sarney é outro que teria ouvido. Sarney, suspeita-se, teria obtido as gravações com a ‘área militar’. O deputado petista Aloizio Mercadante também ouviu e foi o primeiro a levá-las para Lara Resende. ‘Não escutei as fitas, apenas soube de trechos e estou revoltado com o crime do qual fui vítima’, diz Lara Resende, que, devido ao imbróglio todo, já anda pensando em deixar o governo. Teria até comunicado isso ao presidente Fernando Henrique. Lara Resende recebeu as duas fitas com um resumo das gravações das mãos de Mercadante e levou-as ao Planalto. Foi assim que o governo obteve as cópias que examinava nos últimos tempos. Enquanto não se sabe a origem, destino e conteúdo completo de todo o conjunto das fitas, abre-se uma avenida para o livre curso de versões e mais versões sobre as conversas. Na semana passada, VEJA ouviu as duas fitas que o governo enviou para o Ministério Público e a Polícia Federal (Veja reportagem). Com base nisso – e nas conversas com uma dezena de pessoas que tiveram acesso a outras fitas -, se sabe, com certeza, que elas contêm um palavreado baixo e negociações estranhas.

Com seu linguajar despojado, para dizer o mínimo, o ministro Mendonça de Barros aparece chamando o consórcio Telemar de ‘telegangue’ e, a certa altura, refere-se a um defeito físico que o empresário Sérgio Andrade, dono da empreiteira Andrade Gutierrez, também sócio da Telemar, tem na perna. É uma alusão deselegante a um problema físico que o empreiteiro tem numa das pernas, que o faz mancar. O ministro também faz citações críticas ao ministro da Fazenda, Pedro Malan, um dos seus desafetos no governo. Na quarta-feira, num jantar na casa da governadora Roseana Sarney, em Brasília, o ministro comentou sobre suas conversas que poderiam estar nas fitas. Falou tanto que é bem possível ter falado até mais do que o grampo captou. Entre várias especulações, todas mornas e inofensivas, disse que chamava o secretário executivo do Ministério da Fazenda, Pedro Parente, de ‘babaquinha’, mas – para a crença geral e pia de todos os presentes – explicou que essa era uma forma ‘carinhosa’ de tratá-lo.

Hemorragia – No capítulo das negociações, existe uma conversa de Mendonça de Barros em que o ministro pede a fundos de pensão que socorram financeiramente o frigorífico Chapecó, empresa de Santa Catarina cujo conselho de administração já foi presidido pelo ministro e que estava em situação financeira difícil. Lara Resende, numa conversa com seu ex-sócio Persio Arida, hoje um dos donos do banco Opportunity, do Rio de Janeiro, diz ao amigo que aumentasse o ágio que pretendia oferecer no leilão das teles, contribuindo para que sua oferta se tornasse mais competitiva. A conversa pode ter mais de uma interpretação. Pode-se imaginar que Lara Resende estava passando uma informação privilegiada para seu amigo e ex-sócio. Também se pode entender – e assim entende o Palácio do Planalto – que não há nada mais natural que Lara Resende, interessado no sucesso do leilão, quisesse levar os concorrentes a aumentar seus preços, valorizando o patrimônio público que seria vendido. Há margem para as duas interpretações, porque fitas de conversas telefônicas abrem um espaço grande para o componente psicológico de quem as escuta. Há quem as ouça com malícia, querendo encontrar indícios de irregularidades, e há quem o faça sem essa intenção.

Mesmo adornado por documentos fajutos, fitas desconhecidas, denunciantes anônimos e muito interesse político obscuro, o caso caiu feito um raio na cabeça do governo e chegou ao seu coração. Há quinze dias, o coração do tucanato começou a sangrar com a desavença sobre os cortes de verbas sociais, com o presidente Fernando Henrique, numa hora de desabafo, afirmando que iria demitir o ministro José Serra pelas críticas que fez à navalha do Orçamento. Na semana passada, esse sangramento começou a evoluir para uma hemorragia. O presidente não gostou da decisão de Serra de vazar os documentos do Caribe, mesmo que fosse para mostrar que nada provam, e foi surpreendido com a repercussão. Fernando Henrique e Serra são amigos de longa data, mantêm uma relação tumultuada mas íntima e têm, no fundo, uma relação de lealdade que se parece com a de um pai com um filho. Tanto que sempre combinavam os movimentos do governo, incluindo aí até os atritos, que em público pareciam graves quando, na verdade, não passavam de acertos de bastidores entre os dois. Agora não houve nenhuma conversa prévia.

No episódio das fitas, há uma guerra comercial, mas também uma disputa por espaço no governo. Mendonça de Barros começou a divergir de seu velho amigo Ricardo Sérgio de Oliveira, diretor da área externa do Banco do Brasil e mandachuva da Previ, o maior fundo de pensão do país, que, por seu gigantismo, costuma atuar como bússola para os demais fundos. O problema começou no leilão das teles. Mendonça de Barros pediu ao amigo Ricardo Sérgio, que chegou ao posto onde está por indicação do ministro José Serra, para que formasse um consórcio para concorrer à compra da Telerj. O amigo arregaçou as mangas, formou o grupo Telemar, com o empresário Carlos Jereissati, a Andrade Gutierrez e outros sócios. Era um consórcio de brincadeirinha, feito às pressas para estimular a concorrência, mas não para ganhar. Acabou, pela dinâmica própria do leilão, concorrendo sozinho à área da Telerj e levando dezesseis teles, com ágio de apenas 1%. Mendonça de Barros não gostou, porque não gosta da ‘telegangue’, e começou a articular uma forma de jogá-los para escanteio. Aí, seu amigo Ricardo Sérgio se irritou. Afinal, este se empenhara em montar o consórcio, reuniu empresários que toparam o teatro e, depois, teria de expulsá-los do negócio. Com isso, Ricardo Sérgio sentiu-se traído pelo ministro.

Nos últimos tempos, Ricardo Sérgio tem trabalhado em sintonia de orquestra com Jereissati. Mendonça de Barros articula vender a parte do BNDES no Telemar à Telecom Italia, mas Jereissati não quer e Ricardo Sérgio o apóia nesse particular. Até conseguiu dinheiro, por meio da Previ, para que Jereissati pudesse pagar a primeira parcela da compra da Telemar. Amigos há mais de três décadas, o ministro e o diretor do BB também brigam por nacos de poder. No projeto do governo, o futuro Ministério da Produção, que deverá ser entregue a Mendonça de Barros, abrigará sob suas asas um pedaço do Banco do Brasil, justamente o pedaço que está aos cuidados de Ricardo Sérgio de Oliveira. Vem aí mais um descompasso no batimento cardíaco dos tucanos. Essas brigas internas, aliadas a denúncias que podem ter pé mas não têm cabeça, ou têm cabeça mas não têm pé, ou não têm nem uma coisa nem outra, só complicam ainda mais o governo e a tranqüilidade do país. Numa hora em que se precisa muito disso.

Dossiê? Eu?

Na semana passada, todas as pessoas apontadas publicamente como sendo ligadas ao dossiê faziam questão de dizer que não tinham nenhuma relação com ele. O que é uma atitude bastante sintomática. Lafaiete Coutinho, ex-presidente do Banco do Brasil na gestão Collor, procurou a direção do PT oferecendo os documentos. Agora, diz que não havia levado papéis a ninguém.

Segundo o senador Djalma Falcão, de Alagoas, o ex-presidente Fernando Collor procurou seu sobrinho, o ex-deputado Cleto Falcão, pedindo que divulgasse as denúncias do dossiê. Collor diz que não tem os papéis. ‘Não falo com o Lafaiete há três anos. Se eu tivesse os documentos ou acesso a eles, eu mesmo faria a denúncia’, disse na semana passada.

O senador Gilberto Miranda, do Amazonas, e seu irmão Egberto Baptista, ex-secretário de Desenvolvimento Regional do governo Collor, também foram apontados por várias pessoas como os proprietários da papelada. Na semana passada, procurados para falar sobre o assunto, os dois negavam possuir qualquer documento.

Paulo Maluf foi apontado pelo PT como responsável pelo dossiê. O coordenador da campanha de Lula, deputado Luiz Gushiken, diz que o ex-prefeito de São Paulo falou com ele ao telefone e pediu a divulgação dos papéis. Maluf nega. Ele diz que não pediu a ninguém para espalhar o dossiê: ‘Se tivesse os documentos, teria esfregado na cara do Covas durante o debate na TV’.

Sinais de montagem

Os papéis ao lado são trechos da correspondência que o ministro José Serra, da Saúde, teria recebido por fax. De acordo com o ministro, esses papéis se referem a documentos falsos. O perito em caligrafia Celso Ribeiro Del Picchia, de São Paulo, comprovou a avaliação de que não passam de montagem – e malfeita ainda por cima. Em uma das cartas há três assinaturas que se parecem com as do ex-ministro Sergio Motta, do governador Mário Covas e do presidente Fernando Henrique Cardoso. ‘Não são. As três foram falsificadas’, diz Picchia. Em duas cartas assinadas por um certo Ray Terrence, as assinaturas são idênticas. ‘É impossível que alguém assine da mesma forma duas vezes’, diz Picchia. A conclusão lógica é que alguém fez uma colagem, usando duas xerox de uma mesma rubrica. Há erros ainda mais crassos. Uma das cartas tem data de 1994, quando Serra era deputado federal. No cabeçalho, porém, o remetente se dirige ao ‘ministro da Saúde’, cargo que ele só assumiria quatro anos depois. O principal indicador de fraude é que três dos documentos, aparentemente de origens diferentes, foram datilografados seguindo um mesmo padrão de espaços e parágrafos, além de cometer os mesmos descuidos ortográficos.

Fitas? Eu? Não ouvi nada

Todas as pessoas que ouviram as fitas do grampo faziam questão de negar isso em público. O empresário Carlos Jereissati, um dos sócios do consórcio Telemar, foi mais radical. Não deu nenhuma declaração sobre o assunto. Ele é apontado como o homem que possuía as gravações originais. Inimigo do ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, foi insultado nas gravações.

O deputado eleito Aloizio Mercadante, coordenador da equipe econômica do PT, ouviu as fitas que lhe foram entregues por um amigo. Achou que devia levá-las para André Lara Resende, presidente do BNDES, um dos grampeados, que também é seu amigo. Perguntado sobre o assunto, ele diz que escutou apenas um pequeno trecho de conversa.

Um político próximo ao ex-presidente José Sarney garante que ele ouviu todas as fitas do grampo, mas só tem comentado o assunto com seus amigos mais próximos. Quando eles lhe perguntam de onde vieram as gravações, diz que obteve a cópia das fitas com amigos ‘da área militar’. Sobre o conteúdo das gravações, Sarney limita-se a responder por sua assessoria: ‘Não quero falar nada sobre esse assunto’.

Quem desconfiou do que leu

Ao ser informada sobre a existência do dossiê, a deputada Marta Suplicy telefonou para o ministro José Serra, um dos alvos da denúncia. Ela havia sido procurada pelas filhas do ex-prefeito Paulo Maluf. ‘Elas falavam que eu tinha de fazer uma denúncia. Fiquei desconfiada. Sugeri que o pai delas fizesse a denúncia. Elas disseram que o pai não sabia da nossa conversa.’

O candidato derrotado à Presidência da República pelo PT, Luís Inácio Lula da Silva, recebeu Lafaiete Coutinho para ouvir sobre as denúncias. Ficou desconfiado do relato. ‘Por que eles queriam que o PT acusasse o governo tucano se Paulo Maluf poderia denunciar tudo no debate com Covas, no dia seguinte? Não é possível uma pessoa dizer que tem documentos tão graves e não mostrá-los.’

O advogado Márcio Thomaz Bastos checou o dossiê a pedido de Lula. Acha que os papéis contam uma história que faz sentido. São semelhantes a documentos que viu em operações desse tipo. Como o dossiê possui só fotocópias, diz ser impossível saber se é legítimo.

‘Isso só falo pelo Celestino!’

Ser alvo de ouvidos compridos e indiscretos sempre preocupou quem lida com informações privilegiadas. A escuta no BNDES só agravou a neurose do grampo em políticos, banqueiros e empresários do país. Desde a divulgação do escândalo, várias empresas contrataram especialistas em varreduras para verificar a confiabilidade de suas linhas. A Telecom Italia, operadora da Tele Centro-Sul, promoveu uma ‘faxina’ no seu escritório de Brasília. A empreiteira baiana OAS e o banco Opportunity também passaram um pente-fino em seu sistema de telefonia.

Mas o auge da síndrome do grampo se deu na privatização da Telebrás. Com receio de ter sua proposta de compra revelada e com medo de vazamentos de dados estratégicos para o leilão, os empresários praticamente abandonaram os telefones celulares que estão registrados em seus nomes. Continuaram usando o celular oficial apenas para negociar com a patroa quem pega o filho na escola. Para conversas sérias, só usavam o celestino, o celular clandestino. Na semana passada, um empresário carioca ligou para um amigo banqueiro para se informar sobre as fitas do BNDES. Queria saber se eram de fato graves. O banqueiro interrompeu a conversa e disse: ‘Um momento. Isso só falo pelo celestino. Desliga que eu te chamo num minuto’.

Para rastrear ligações celulares basta saber o número do aparelho que se quer escutar e colocar um receptor de rádio portátil nas imediações de onde está a pessoa. Para evitar isso, os banqueiros e empresários tiveram a idéia de usar um celular em nome de terceiros, um porteiro do prédio ou um garagista. Esse número, conhecido apenas por um seleto grupo, passou a ser usado para assuntos sigilosos. Os mais cautelosos trocam seus celestinos com alguma freqüência. Fala-se que um empresário graúdo de São Paulo muda de aparelho toda semana. ‘Mesmo assim, ninguém quer tratar mais nada por telefone’, diz um alto executivo de empresa carioca.

Muitas reuniões importantes estão sendo feitas pessoalmente, mesmo que para isso seja preciso fazer uma viagem internacional. Na semana passada, alguns gestores de fundos de investimentos do Citibank voaram de Nova York para a sede do Opportunity, no Rio, para uma reunião antes feita por telefone. ‘São informações importantes e os telefones não estão confiáveis’, diz um executivo do banco. Em tempos de grampo, o melhor é seguir uma das máximas do falecido presidente Tancredo Neves: ‘Telefone, só para marcar encontro e, mesmo assim, em lugar errado’.

De quem se fala nas fitas

Em uma das conversas grampeadas no BNDES, o secretário executivo do Ministério da Fazenda, Pedro Parente, é chamado de ‘babaquinha’ pelo ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros. O ministro telefonou a Parente para se explicar e disse que estava usando apenas uma ‘expressão carinhosa’.

Persio Arida, do banco Opportunity, manteve conversas por telefone com o presidente do BNDES, André Lara Resende. Numa delas, Resende sugere que o Opportunity aumente o ágio para a compra de uma fatia do grupo Telebrás. Os dois dizem que conversas assim são normais entre alguém do governo que quer vender uma estatal e alguém que quer comprar.

Em várias conversas gravadas no BNDES, o assunto é a privatização da Telebrás. Mendonça de Barros e Lara Resende falam sobre empresários interessados na compra da empresa. Sérgio Andrade, sócio da empreiteira Andrade Gutierrez e participante do consórcio vencedor do leilão da Telemar, é alvo de comentários deselegantes sobre um defeito que tem numa das pernas.

Grampo interno no BNDES

Segundo técnicos em telecomunicações e ex-agentes do Serviço Nacional de Informações, é forte a possibilidade de que o grampo no telefone de André Lara Resende, presidente do BNDES, tenha sido realizado a partir da própria central do edifício do banco. Os especialistas garantem que ele não poderia ter sido feito a partir da telefônica carioca, a Telerj, ou da rua. Essa informação não é apenas uma curiosidade técnica, mas um dado importante, já que a central de telefones do BNDES é área de segurança do banco. Sendo assim, o serviço não poderia ser executado sem ajuda interna. Quando se resolve grampear o telefone de uma residência, basta conectar um fio à linha da casa, e a ele um gravador. Assim são feitos 90% dos grampos. A escuta de uma linha direta também pode ser realizada a partir da telefônica. No caso de um edifício repleto de ramais é diferente.

Cada vez que um funcionário do BNDES vai fazer uma ligação, ele disca ‘zero’ e ‘pega’ uma linha. O computador da central libera as linhas aleatoriamente. Como são dezenas de linhas e centenas de ramais, é impossível para o araponga saber que linha será usada naquela ligação. Por segurança, seria necessário grampear todas as linhas do banco e colocar um gravador em cada uma. É tecnicamente impossível. Com o grampo na central de ramais, basta conectar o gravador aos usados pela vítima, no caso os do gabinete do presidente.”

“Fitas, papéis e crise”, copyright Veja, 16/11/98.

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Na semana passada, Veja ouviu as duas fitas que o governo enviou para a Polícia Federal. Cada uma com duração de noventa minutos, elas registram 34 conversas grampeadas no BNDES. As fitas têm má qualidade de som, barulhos ao fundo e longos espaços em silêncio, sugerindo que pode ter havido trechos apagados. Comenta-se que existem quase três dezenas de fitas. Não se sabe se as duas às quais a revista teve acesso contêm uma seleção dos melhores momentos do grampo ou se são fitas escolhidas ao acaso. Nas 34 conversas, os personagens que mais aparecem são o ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, das Comunicações, e o presidente do BNDES, André Lara Resende. A tônica das conversas é uma só: eles discutem formas de prejudicar a participação do empresário Carlos Jereissati, dono do grupo La Fonte e membro do consórcio Telemar, que concorreu no leilão com outros quatro sócios (Andrade Gutierrez, Macal, Aliança do Brasil e Brasilveículos) e acabou comprando, com ágio de apenas 1%, a Telerj e outras quinze teles.

Além disso, as fitas deixam clara a intenção de Mendonça de Barros e André Lara de ajudar o Opportunity, um banco de investimento do Rio de Janeiro, que tem Daniel Dantas e Persio Arida como sócios e concorreu no leilão ao lado da Telecom Italia. Os dois queriam que a Tele Norte Leste, que vai do Rio de Janeiro ao Amazonas, ficasse com um grupo sólido e tecnicamente bem formado, como o do Opportunity. E não com o consórcio Telemar, formado por franco-atiradores e que nem operador técnico tem. Apesar da boa intenção, é no mínimo estranho ver duas autoridades, que deveriam comportar-se como juízes do leilão, manobrando, nos bastidores, para favorecer um dos lados. A seguir, os principais trechos das duas fitas:

Na primeira conversa da fita, ouve-se Mendonça de Barros, André Lara Resende e Persio Arida, juntos, negociando com a Previ, o fundo de pensão do Banco do Brasil, para que se una ao Opportunity a fim de formar um consórcio e arrematar a Tele Norte Leste. Eis o diálogo:

‘O importante é que vocês montem com o Persio, evidentemente chegando a um acordo, e tudo o que precisar nós ajudamos’

Luiz Carlos Mendonça de Barros, ministro das Comunicações

– Estamos aqui eu, André, Persio e Pio (Borges, vice-presidente do BNDES) – diz Mendonça de Barros, informando Jair Bilachi, presidente da Previ. – Mas estamos muito preocupados com a montagem que o Ricardo Sérgio está fazendo do outro lado (refere-se ao consórcio de Carlos Jereissati). Porque está faltando dinheiro, doutor. E a gente está sabendo que uma das alternativas (do outro consórcio) é fundir as empresas com a holding. Aí, o negócio não fica limpo e a minha primeira preocupação, e o presidente já me ligou, é que a gente ponha em pé esse negócio. Senão, o que aparentemente for um p… sucesso pode ficar um negócio amargo.

– Ministro, nós estamos concentrando forças e a nossa proposta é bem diferente – responde Bilachi. Mas é justo na linha dos nossos negócios. Nós estamos cacifando aqui. Mas essa questão do outro negócio (do apoio de Ricardo Sérgio de Oliveira, diretor do Banco do Brasil, ao grupo de Jereissati) acho que vocês deviam conversar com o Ricardo Sérgio.

– Tudo bem – diz Mendonça de Barros. Mas o importante para nós é que vocês montem com o Persio, evidentemente chegando a um acordo, e tudo o que precisar nós ajudamos. Temos um probleminha agora que é a carta de fiança. E é chato chegar agora, no meio da tarde, e o Banco do Brasil dizer que não vai dar.

– Vou falar com ele (refere-se a Ricardo Sérgio) – diz Bilachi.

– Sei que ele (Ricardo Sérgio) está falando com a Telefónica de España, um negócio meio esquisito.

Mendonça de Barros liga para o diretor do Banco do Brasil, Ricardo Sérgio de Oliveira, para informar que o Opportunity iria participar do leilão da Tele Norte Leste, mas dependia da concessão de uma fiança do BB:

– Está tudo acertado, diz o ministro para o diretor do Banco do Brasil. – Mas o Opportunity está com um problema de fiança. Não dá para o Banco do Brasil dar?

– Acabei de dar – responde Ricardo Sérgio.

– Não é para a Embratel, é para a Telemar. (Refere-se na verdade à Tele Norte Leste.)

– Dei para a Embratel e 874 milhões para a Telemar (Tele Norte Leste). Nós estamos no limite da nossa irresponsabilidade. São três dias de fiança para ele – diz Ricardo Sérgio, com um tom meio sorridente.

– É isso aí, estamos juntos – diz Mendonça de Barros.

– Na hora que der m… – fala o diretor, numa referência ao elevadíssimo valor da fiança. – Estamos juntos desde o início.

Mendonça de Barros liga para André Lara Resende e discutem uma forma de facilitar o caminho para o banco Opportunity comprar as dezesseis teles e tentar bloquear o sucesso do grupo de Carlos Jereissati. A estratégia é informar o grupo de Jereissati que o ágio será pequeno e, na hora H, o Opportunity entraria com um ágio maior, previamente combinado com o BNDES:

– Discute primeiro um número mais baixo (refere-se a informar ao consórcio de Jereissati um ágio baixo) e na última hora… – fala Mendonça de Barros

– Na última hora, sobe – completa André Lara.

– É isso aí.

– Falei com ele (refere-se a Persio), concentra nisso. Esquece o outro.

O presidente Fernando Henrique liga para Mendonça de Barros, que estava no BNDES, para saber em que estágio estava o encaminhamento do leilão das teles:

– Estamos aqui praticamente com o quadro fechado – informa o ministro. Tem uma notícia ruim. A Bell South não vai entrar (no leilão).

– Eu sabia, o rapaz… Como é que se chama? Me telefonou – diz o presidente.

– Ele (o rapaz da Bell South) estava querendo mais tempo. A boa notícia é que a MCI vai entrar na Embratel, que é uma empresa grande. Entra com os espanhóis e com isso cria competição.

– Ótimo, ótimo.

– Nós estamos com um consórcio também para a Tele Norte Leste. É capaz de as (telefônicas) fixas saírem em torno do preço mínimo. A Embratel vai ter competição, e vai ter competição grande nas celulares.

– Sei, sei – diz o presidente. – Mesmo a Telerj sai com preço mínimo?

– Sai, porque a Bell South é que seria a contraparte lá. (…)

– Você acha que, no conjunto, vai dar o quê? – pergunta o presidente.

– Vai dar uns 16 bi, que é o que eu tinha dito – responde Mendonça de Barros. O nosso preço mínimo é de 13 bi e 400, e nós chegaremos a uns 16 bi, que é muito dinheiro.

– Ajuda, né, as reservas… – diz o presidente.

– Mais do que isso A gente fica com uma empresa sólida. Tem aí um monte de loucura que nós bombardeamos (refere-se à estratégia para escantear o consórcio de Jereissati). Não adianta criar competição e depois criar problema para a frente.

– Não, tem que ter coisa que funcione depois, que atenda a população – diz Fernando Henrique (…)

– A imprensa está muito favorável, com editoriais – comenta o ministro.

– Está demais, né? – brinca o presidente. Estão exagerando até.

Numa das últimas conversas antes do leilão, André Lara telefona para Mendonça de Barros:

– Falei com o Persio. Está tudo certo – informa André Lara.

– Falei com a Previ também – diz o ministro.

– Os inimigos estavam lá reunidos. Eles vão entrar – lembra, referindo-se ao grupo de Jereissati

No dia do leilão, André Lara liga para Persio Arida e diz que, caso haja chances de uma vitória do consórcio de Jereissati, ele poderá até acionar o presidente Fernando Henrique, pois está convencido de que o consórcio não tem condição de gerenciar dezesseis teles. O aviso:

– Não vou para a bolsa – diz André Lara – porque quero falar com você antes. Se precisar vou ter que detonar a bomba atômica (refere-se ao presidente Fernando Henrique). Qualquer coisa você me fala no meu antigo celular.

– Tá legal. Eu tenho o número.

O fim da história é conhecido. O grupo do banco Opportunity, junto com a Telecom Italia, acabou ganhando as regiões Sul e Centro-Oeste. Pelas regras do leilão, nenhum consórcio poderia comprar dois grupos diferentes de teles. Como já ganhara as regiões Sul e Centro-Oeste, o grupo do Opportunity não pôde concorrer à região da Telerj. Assim, o consórcio Telemar, do empresário Carlos Jereissati, concorreu sozinho à Tele Norte Leste, que inclui a Telerj, e ganhou pagando um ágio de apenas 1% sobre o preço mínimo – 3,4 bilhões de reais.”

“Manobra pelo forte”, copyright Veja, 16/11/98.

 

“O presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), André Lara Resende, disse ontem à Folha que o governo ‘vai dar um basta’ na história das fitas gravadas com grampo telefônico durante a privatização do Sistema Telebrás. Não explicou como.
Ele conversou com o presidente Fernando Henrique Cardoso na noite de segunda-feira e ontem de manhã, no Palácio da Alvorada. Considerou ‘um lixo’ e ‘uma espécie de seleção dos melhores momentos’ os trechos das gravações publicados pela revista Veja.
Na sua opinião, a imprensa está confundindo ‘imparcialidade com ambigüidade’, e ‘só os bandidos se beneficiam quando tentam criar a sensação de que todo mundo é farinha do mesmo saco’.

Leia, a seguir, um resumo da entrevista:

(….)

As fitas – Os trechos das fitas que saíram na Veja são, segundo ele, uma espécie de ‘edição dos melhores momentos’.

’Dizem que as fitas têm horas e horas de conversa, mas tudo o que consideraram comprometedor é aquilo que não tem nada demais. São conversas dos vendedores com compradores’, disse.

Ele, entretanto, afirma que não teve acesso às fitas e jamais as ouviu.

FHC – Depois de conversar com o presidente na noite de segunda e na manhã de ontem, no Palácio da Alvorada, ele disse que o governo ‘vai dar um basta’ nas denúncias das fitas e da suposta conta no exterior. ‘Não tem nada. É tudo espuma que fica sendo alimentada pela imprensa’, considerou.

Só não explicou como vai ser o ‘basta’, lembrando apenas que ‘fita clandestina não tem valor legal’.

Vazamento – Para ele, ‘é um delírio’ imaginar que o próprio Palácio do Planalto tenha vazado os trechos publicados pela Veja, nos quais FHC aparece falando no interesse do usuário e fazendo perguntas pertinentes sobre o processo.

(….)

Complô – Na opinião dele, a papelada sobre supostas contas de FHC, do ministro José Serra (Saúde) e do governador Mário Covas (São Paulo) ‘não passa de uma farsa primitiva com objetivos escusos’.

Já o grampo faz parte de “uma espionagem comercial, econômica e industrial para tirar vantagens financeiras”.

As duas coisas, as fitas e as supostas contas, são embaralhadas “com objetivos políticos, para confundir a opinião pública”.

Opinião pública – Contou que o motorista que o conduziu até o aeroporto de Brasília, ontem de manhã, já tirou uma conclusão da confusão toda: “Ele ouviu tudo o que o Luiz Carlos disse e pensou: “Ah. Então, o culpado é o Mercadante (deputado eleito Aloizio Mercadante, do PT)'”.

Para Lara Resende, esse motorista deu uma “demonstração de como a população está confusa”.

(….)

BNDES – Na sexta-feira passada, o jornalista Paulo Henrique Amorim (TV Bandeirantes) anunciou que Lara Resende estaria demissionário. Por telefone, o próprio Lara Resende disse naquela mesma noite à Folha que a versão era ‘absolutamente inverídica’.

Ontem, repetiu que não pretende sair do governo e acrescentou: ‘Fazer isso agora seria uma loucura. Falar nisso é outro delírio’.

E contou: ‘Não entendi por que o Paulo falou aquilo. Naquela mesma hora, a filha dele estava com a minha filha, lá em casa, no Rio’.

Quanto à sua ida ao Alvorada, desconversou: ‘O que há de especial nisso? Eu falo com o presidente toda semana’.

Imprensa – Ele atribui boa parte da ‘confusão armada’ à imprensa. Disse que ‘90% dos jornalistas são bem intencionados, sérios, apuram a verdade’. Mas fez uma ressalva: ‘Não se pode confundir imparcialidade com ambigüidade’.

Explicou que a imprensa, na tentativa de mostrar imparcialidade e isenção, acaba dando o mesmo espaço para coisas verdadeiras e coisas inverídicas, ou para personagens que merecem crédito e para outros que não merecem.

Questão política – ‘Ao optar pela ambigüidade, a imprensa alimenta a dúvida, a incerteza, coloca bandidos e mocinhos no mesmo nível. Isso confunde a opinião pública, é nocivo para o processo político’, disse.

Depois, acrescentou: ‘Só os bandidos se beneficiam quando tentam criar a sensação de que todo mundo é farinha do mesmo saco’.

Ensaio – Há cerca de um ano, André Lara Resende vem amadurecendo a idéia de escrever um ensaio sobre ‘a vida pública, a vida privada e a mídia’. Ontem, disse que havia chegado a hora: ‘Este é o melhor momento’.”

“Para Lara Resende, governo dará ‘basta’”, entrevista a Eliane Cantanhêde, copyright Folha de S. Paulo, 18/11/98.