Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Mitos de uma profissão inglória

DEVER DE CASA

Juliana Santana (*)

Compreender o desenvolvimento da imprensa é penetrar num dos mais fantásticos mecanismos do nosso mundo. Fazer parte desta história, que é a história não da verdade dos fatos, mas da verdade produzida por diferentes visões, é como ser um mecanismo vivo dentro desse mundo. Pode até significar ser apenas um fragmento, mas um dos fragmentos do cérebro do mundo.

A carreira de jornalismo é uma das mais disputadas no vestibular. A entrada no universo dos adultos coincide com o ingresso na faculdade, quando normalmente a carreira almejada é carregada de utopias na mente de cada um. Se assim é com todas as profissões, qualquer um que apostasse na profissão de jornalista como uma das mais mistificadas certamente ganharia.

Eu mesma decidi fazer Jornalismo porque sou muito comunicativa e adoro ler, escrever e viajar. Pensava numa profissão que fosse instrumento para que pudesse rodar o mundo. Se era pura ilusão só o futuro bem posterior a estes meus 20 anos poderá dizer. Mas, além desta minha idéia, duas outras poderiam ser ressaltadas como as principais mistificações em torno da profissão de jornalista.

A primeira é a do super-herói à "la Clark Kent", que vai denunciar todas as mazelas e injustiças da sociedade. Se de boas intenções o inferno está cheio, um jornalista um dia certamente já pensou que a sabedoria popular não poderia estar mais certa ao ver suas intenções imprensadas por um título sensacionalista ou uma foto além da força representativa de uma imagem. Cabeça deitada sobre o travesseiro, a consciência repete que palavras podem ser erros ou exegeses do pensamento.

Mas o mito mais perigoso é o que desperta o lado egocêntrico do ser humano. Opta-se, como porta para o estrelato, por uma profissão em que a realidade de um mundo volúvel e instável é mais cruel.

Anônimos kitsch, os futuros operários da informação se iludem com registros históricos que se transformam em embrulho de peixe, ou nomes que da condição de "fazedores" da notícia passam à própria notícia. Não são a realidade do mundo concreto dos homens, mas de um sistema que precisa de encarnações humanas para seus símbolos. No nosso caso, o homem ou a mulher belos e bem-sucedidos na profissão.

Status a qualquer preço

Mitos são necessários e nocivos. O encantamento sempre fará parte do imaginário social, pois é a mais humana tentativa de superar na cotidianidade a realidade crua do mundo dos homens. O mundo regular e lógico dos mitos supera no cotidiano o imprevisto que é a vida. Mas, para viver, é necessário desprender-se deles e abraçar a realidade, uma vez que os mitos também integram o discurso do poder. É necessário entender com o corpo que a história é construída com a carne e o sangue de gente que chora, ri, sofre, sua, sente dor, luta, pensa e simplesmente… faz. Gente como é gente o próprio jornalista.

Jornalistas não são heróis ou artistas de telenovela. São atores sociais que captam o movimento do mundo para transformá-lo em signos. Corpo, emoção e mente são as ferramentas do ator. Os olhos são a porta através da qual ele atinge o mundo que deve espelhar.

Não deixa de ser semelhante ao caso do jornalista, que traduz no corpo a realidade atingida pelos olhos através da mente e filtrada pela subjetividade da emoção. As representações vêm através das palavras, das imagens, da voz, do olhar, do modo de ver que permeia tudo isso.

O historiador do tempo real crava através de si e dos signos a humanidade que no futuro se defrontará com o que foi em si mesma. Livros de história traçam panoramas, jornais trazem o cotidiano de uma história que se constrói por homens de carne e osso. E sentem e fazem o tempo correr na concretude de seus atos. Porque são a matéria de que é feito o próprio tempo.

O primeiro mito cria um herói habitante do mundo platônico das essências, que desistirá de travar uma batalha inglória se preferir habitá-lo ou buscará seus "jeitinhos" dentro da compreensão da linguagem de uma empresa ou instituição que faz parte da realidade do mundo dos homens.

O aspirante a artista do segundo mito esquece que é o mundo dos homens ? que tem o poder, para ser mais exata ? que escolhe seus símbolos, não são as pessoas que batalham obstinadamente até ascender a este patamar como recompensa. Fosse assim, todo trabalhador se tornaria um símbolo e nenhuma pessoa que buscasse a fama de maneira fácil seria escalada para receber o troféu do sucesso. O perigo deste mito é a criação de profissionais que buscam o status a qualquer preço e atropelam a gente do mundo dos homens por um objetivo que é menos a notícia do que a projeção pessoal.

Vontade de lutar

O sertanejo é, antes de tudo, um forte, nas reflexões de Clarice Lispector sobre a personagem nordestina Macabéia em A hora da estrela. Poderia o mesmo ser dito sobre os operários da informação? Se é isto, que sejam as palavras certas para os anônimos atores que captam e são o próprio movimento do mundo. O mundo que através deste movimento pára e se diz para então se compreender através de suas representações.

Ser jornalista é a arte de transitar entre vários mundos e dizê-los sem agredir o que são ao traduzi-los para outros mundos a partir de si mesmo e da própria bagagem cultural. Todo registro é uma forma de interferência, mas não precisa ser necessariamente uma agressão. A compreensão deste "fazer jornalístico" fundamenta a ética no exercício do jornalismo. Esta ética não é isolada e nem específica, porque nasce da compreensão do que se é como ser humano e agente social dentro de uma teia de relações humanas.

Num dos trechos do livro Minha razão de viver, Samuel Wainer, um dos mais importantes nomes da história da imprensa brasileira, diz que todo jornalista deveria viajar pelo menos uma vez na profissão, pois é uma maneira de penetrar em outros mundos que não o dele. Wainer explica, no entanto, que esta "viagem" do jornalista pode ser feita no próprio país, na própria cidade, até no próprio bairro. Interpretando as palavras dele, talvez seja simplesmente aguçar o olhar para estranhar os mundos dentro do próprio mundo. Neste sentido, pode-se também dizer que o jornalista deve ter um quê de antropólogo.

Muitos atributos para quem deseja unicamente subir uma escada para o sucesso. Ser um "cidadão do mundo" não é fácil, e é esta expressão que melhor define o jornalismo para mim. É o que recria as vontades da juventude, impulsionando o espírito para continuar travando a batalha inglória, porém gratificante, de mergulhar na "carne, no esqueleto e no espírito" dos vários "outros" dentro da complexa teia do mundo dos homens.

Não se trata de um ideal descolado da realidade, pois parte-se do princípio de que ideais nascem da cabeça de homens que habitam a Terra, e não o mundo das idéias. Trata-se apenas de vontade: vontade de lutar, de traduzir o mundo em signos, de viver e ser o próprio movimento do mundo se dizendo e se recriando. É como uma futura "cidadã do mundo" que falo. Ou como simplesmente… gente que chora, ri, sofre, sua, sente dor, luta, pensa e simplesmente… faz.

(*) Estudante de Jornalismo da Universidade Gama Filho