Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Monte de bobagem

Carlos Vogt

“Se o lobo compreendesse os carneiros, morreria de fome.”
Henri Michaux

 

N

o dia 14 de janeiro deste ano, sexta-feira, foi ao ar pela Rede Globo de Televisão o último capítulo – reprisado no sábado, como de praxe – da novela Torre de Babel, de Sílvio de Abreu e mais um elenco de autores auxiliares.

No dia 18 do mesmo mês, segunda-feira, como de praxe, começou a ser transmitida “a nova novela das 8”, de autoria de Aguinaldo Silva e mais um elenco de autores auxiliares, que ninguém é de ferro.

Mas que é preciso ter um pouco de consistência do dito metal para agüentar tanta bobagem junta e tanta repetição de arquétipos e esquemas narrativos suados e surrados da nossa “tradição popular”, lá isso, de fato, é indispensável. Isso sem falar da gratuidade ética e da leviandade moral com que tratam crimes hediondos e monstruosidades criminosas.

No início do monte de bobagens com que se edificou a torre de babel da TV, um dos protagonistas principais da novela, José Clementino, vivido na telinha por Tony Ramos, mata escandalosamente a golpes de pá sua mulher, num acesso de fúria e num espetáculo de sangue que deixaram os pacatos telespectadores das oito confundidos com o tempero ácido do jantar e desarrumados com a invasão do horário nobre pelas destemperanças das madrugadas. Um empresário – César Toledo, vivido por Tarcísio Meira – testemunha o crime e ajuda a Justiça a pôr o assassino na cadeia. Este, cumprida a pena de 20 anos, nos quais, dia após dia, mastigou rangendo o amargo pudim da vingança, assim que voltou ao convívio social começa a pôr em prática o intento que acalentou a longa vigília de sua reclusão: explodir o shopping de quem o denunciou.

E por aí vai. Aparecem várias personagens povoando de ódio, de rancor, de alegria, de tristeza, de sucesso, de frustrações, de comédia, de drama e sobretudo de bobagem a torre impudente e o atrevimento de babel.

A novela televisiva fixou-se, de certo modo, no modelo mais tardio do folhetim, aquele em que o bandido-delinqüente já está mais socializado e em que a mistura do folhetim com o melodrama e o fait divers promove, como bem diz Marlyse Meyer no seu fundamental Folhetim – Uma História, uma “democratização do crime e dos criminosos”, distribuindo “igualitariamente os bons e os maus, vítimas e agressores, estupradas e estupradores, assassinos e assassinados, incestos e crianças raptadas ou abandonadas, pais e mães virtuosos e carrascos”.

É nessa torre de babel de paixões desenfreadas que se movem os protagonistas de absurdos cotidianos que estatisticamente, como bem apontou Otávio Frias Filho, acabam por gerar, não a ilusão de realidade, que é própria do realismo, mas a ilusão do seu próprio realismo. A esse propósito, vale a pena ler o breve comentário de Fernando de Barros e Silva – Suave miséria – no caderno TV Folha, da Folha de S. Paulo, edição de domingo, 24 de janeiro de 1999, sobre o decantado realismo de nossas novelas.

Hoje, mais do que antes, em virtude da instantaneidade da mídia, a participação do leitor-espectador na definição do destino das personagens e do desfecho da ação é total. Vários são os casos em que o público-autor intervém e interfere na trama desenhada pelo autor-elenco. Em Torre de Babel ninguém estava gostando de ver o bom-moço Tony Ramos enfurecido distribuindo pazadas, rachando cabeças e destilando o veneno da vingança em cada capítulo; ninguém queria jantar ou fazer a digestão da janta engolindo, antes da cama, o antidigestivo caso das personagens de Cristiane Torloni e Silvia Pfeiffer. Era preciso arrumar a casa e repor as coisas nos seus devidos lugares. O autor-elenco, levado é claro pela força sensata dos argumentos de bom senso (e pelos números do Ibope) não teve dúvidas: matou o casal de lésbicas e redimiu Clementino, transformando-o numa espécie de Raskolnikoff-órfão-de-Dostoievski.

Daí por diante é uma sucessão desenfreada de cenas e diálogos em que o drama de consciência da culpa e do arrependimento vai criando, pela repetição e pelos chavões e clichês repetidos, a atmosfera de empatia que permitirá erigir a subjetividade necessária ao perdão, que se contrapõe à objetividade da justiça, que levou o herói a purgar 20 anos pela monstruosidade do crime que praticou.

O truque é simples mas eficaz. O autor-elenco sabe que a plena compreensão leva ao pleno perdão: Tout comprendre c’est tout pardonner, dizem os franceses. É preciso, pois, para a redenção do assassino furioso, levar o público telespectador, juntamente com os outros protagonistas-chave da história, a compreender a alma e as motivações humanas que levaram o herói ao desatino do ato. Para tanto, é preciso relativizar a excepcionalidade do impulso que o levou ao crime. Nesse sentido, é antológica a cena em que o advogado bom-moço de Clementino é levado, no limite da frustração, do orgulho ferido e do escárnio a que é exposto pelo comportamento espevitado da esposa sirigaita, a avançar sobre ela, pá em riste, num gesto que o tira fora do sério mas que colabora seriamente para a remissão dos pecados de Clementino, que, aliás, é pai da moça ameaçada que, por sua vez, pode ser filha de seu avô, com quem explode o shopping por ódio e vingança do pai presumido, pelo assassínio comprovado da mãe, no começo da história.

É um verdadeiro rolo compressor de gratuidades que, no entanto, funcionam como chips de comunicação constante com o telespectador, tornando-o, pela empatia, não só parceiro conivente da trama e da moral que ela edifica mas também autor-parceiro do autor-elenco da novela.

A novela, desse modo, constitui-se num melodramático elogio da frouxidão ética e moral e um trágico salvo-conduto para a permissividade e a compreensão mole da sociedade diante do crime e da banalização da hediondez e da monstruosidade.

É longa a tradição literária constituída em torno dos grandes debates éticos e dos grandes combates morais. Dentro dela, certamente, têm destaque Crime e Castigo, de Dostoievski, O Estrangeiro, de Camus e, mais perto de nós, as planuras secas de São Bernardo, de Graciliano Ramos.

Não é um debate simples e tampouco de conclusões claras. Autores importantes como Melville, Pascal, Montaigne, Nietzsche, Thomas Mann, Goethe, La Rochefoucauld, Hannah Arendt, Italo Svevo, entre tantos outros cuja lista seria quase infinita, confrontaram-se com a questão crucial do crime, da culpa, da condenação, da expiação, do perdão, do arrependimento e da justiça.

Entre compreender e perdoar e compreender e condenar constitui-se toda uma estética da sensibilidade e da razão no ocidente. Por isso, é claro, a questão não é banal. Mas pode ser banalizada, trivializada. Não como a percorre Meursault, o “herói da autenticidade”, que em O Estrangeiro faz tremer, pelo “silêncio”, nossas convicções bombásticas de justiça, mas pelo código lamuriento e piegas do folhetim eletrônico, cuja autoria, autenticidade e realismo querem nos fazer crer – e se vai conseguindo – seja antes do povo que a ele assiste do que do autor-elenco assistido pelo povo. Retórico? Não, real. Ou melhor, virtual.

 


Vera Silva (*)

 

Nos programas do OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA NA TV, que foram ao ar em 5 e 12 de janeiro deste ano, é de interesse ressaltar alguns pontos convergentes: o salário dos parlamentares, a programação das tevês e a notícia como show. Dizemos que são convergentes, porque o exercício da democracia por eles passa e deles depende a liberdade. Vejamos como isto se dá.

Democracia sempre foi definida como governo do povo, para o povo e pelo povo. Mas, o que isto realmente significa, é a pergunta. O povo seria a população de um país; todas as pessoas que neste país são nascidas ou que a ele passaram a pertencer por escolha. Cada um de nós é parte do povo. Assim, governo do povo seria aquele que representasse o povo, como seu delegado, para realizar os objetivos do povo. Governo para o povo seria aquele cujas ações se dirigissem ao bem estar da população, perfeitamente harmonizado com os objetivos desta mesma população, enquanto nação. Governo pelo povo seria aquele cujas ações, ao se dirigirem ao bem estar geral, mantivessem o bem estar de cada um “de per si”.

Liberdade, como comentamos em outro artigo, seria a possibilidade de cada um escolher o que é melhor para si.

Neste primeiro momento, parece claro que a democracia seria o regime de governo ideal para o ser humano livre. O exercício constante da democracia faria com que fôssemos cada vez mais livres – individual e coletivamente.

O Parlamento, numa democracia, é uma espécie de fiscal que verifica se a delegação de competência dada ao governo pelo povo está sendo corretamente exercida – daí o termo executivo usado para a Presidência da República. É o parlamento que “parlamenta” entre si quais são as leis que melhor garantem o exercício da democracia. Esta é a sua razão de ser. Ele deveria ser composto de representantes de todas as camadas sociais e ideológicas que esposassem a democracia como objetivo. Deve também ser renovado periodicamente para que possa ser sempre representativo do povo. E, porque está à disposição do povo, o povo deve garantir a subsistência dos parlamentares.

A imprensa seria o veículo de arejamento do sistema democrático. Faria circular as notícias do que ocorre na nação; disseminaria a cultura, permitindo que o povo conhecesse como a nação se desenvolve, como o governo e o parlamento atuam; além de permitir a educação à distância e a troca cultural entre comunidades. Ao informar, permitiria que o poder do conhecimento fosse disseminado e descentralizado, impedindo os “tumores” que adoecem a democracia. Nesse sentido, show e notícia seriam duas coisas diferentes. O show, como o nome diz, seria uma amostra das manifestações culturais vivas na nação, permitindo tanto sua preservação quanto sua oxigenação pelas novas idéias. A notícia se restringiria ao relato dos fatos, que poderiam ou não ser comentados em seus vários ângulos.

Parece claro que o predomínio do comentário sobre o relato, do show sobre a notícia, têm como objetivo evitar a disseminação e a descentralização do poder; em outras palavras, têm como objetivo transformar o povo em massa. Este é um conceito nazista. Hitler (em Mein kampf, citado por W. Reich, em Dialética da Família, editado por M. Canevacci, S. Paulo: Brasiliense,1981) escreve que “o povo … seus pensamentos e ações são determinados não tanto por considerações sóbrias , mas sim por uma sensibilidade emotiva.”

Essa sensibilidade emotiva parece ser o que se procura, ao se transformar a notícia em show e ao se desqualificar a importância do parlamento, através de seus componentes. Se os parlamentares são nossos fiscais e se são incapazes, então somos incapazes por tabela. Se incapazes, como poderemos delegar o governo a alguém? O sonho da democracia se esvai, e o voto perde o sentido. O professor Paulo Freire escreveu que “…votar… não é… ajudar… a se eleger, mas delegar… a possibilidade de brigar por um sonho possível.” Se o sonho se perder, ficaremos sem objetivos, e o voto perderá o seu significado maior. Não é por acaso que as últimas eleições registraram, em quase todo o Brasil, um completo desencanto do povo pelo processo eleitoral.

Agora precisamos lembrar que a Imprensa é cada um dos profissionais que nela trabalham. Não é um sistema incorpóreo. É um organismo ou deveria sê – lo. Cada um dos que trabalham na imprensa deveriam estar atentos ao papel que ela representa na formação democrática de um povo. Deveriam entender que o Parlamento não pode ser atacado, que o Executivo não pode ser deificado.

Muito à propósito deixei o Judiciário à parte. Ele é o fiscal do respeito às leis elaboradas pelo povo. Não compete a ele fiscalizar o Executivo nem o Parlamento nem o Povo. Seu papel é o de fiscalizar as leis que o povo criou e mantém como atuais. Superdimensionar o papel do Judiciário significa considerar que as leis são divinas e imutáveis. Significa colocar as regras acima da vida e ocupar o lugar do patriarca. Lugar este inexistente numa democracia. Patriarcas somente têm sentido num governo teocêntrico, assim como ditadores somente têm sentido em governos totalitários.

Concluindo, a democracia exige, para funcionar, que o povo e seus objetivos sejam o centro da vida política. O Parlamento, o Executivo e o Judiciário são pontas de um triângulo; não por acaso, o olho está no centro. Assim se faz uma nação.

(*) Psicóloga

 


Fábio Metzger

 

O mundo de hoje vive o incômodo estado de transe social. Quando parece que existe um futuro certo e definido, há, na realidade, um período de constantes turbulências e apenas uma luz no fim do túnel. As ruas não são mais um palco para as grandes mudanças políticas, pelo menos neste fim de milênio. Os partidos políticos vivem uma profunda crise de identidade, esvaziados em suas bases ideológicas. O ceticismo popular toma conta de todos os cidadãos. E ainda assim, a sociedade nunca viveu tantas revoluções, como nos dias de hoje.

O que explica este fenômeno, se não dois fatores decisivos ?

O primeiro é o advento da tecnologia da informação. De repente, todos nós podemos ter acesso a informações em um curto espaço de tempo, em qualquer lugar do planeta. E como todos os cantos do universo parecem estar conectados entre si, as respostas são instantâneas e assim, tudo e todos ficam de cabeça para baixo. A tecnologia da informação ganhou um alcance imensurável. A razão direta de sua essência, ou seja, a informação em si, virou, mais do que nunca, a forma e o conteúdo de uma arma.

Desta forma, o segundo fator para todas estas mudanças é a conseqüência do primeiro. Com a informação e a tecnologia de sua disseminação determinando as diretrizes de uma nova sociedade, o conceito de espaço público foi completamente modificado. O espaço físico está sendo tomado pela saga privada, através da colorida publicidade, do incolor crime organizado e da incessante necessidade em se obter lucros imediatos, quando a lei do foro público vira apenas mais um obstáculo.

Mas por que diabos isto ocorre? Sim, as pessoas estão cada vez menos nas ruas, cada vez mais em seus ambientes particulares.

E ainda assim, o espaço público não desapareceu, nem desparecerá. Ele apenas muda de endereço. Sai do âmbito físico e entra nos moldes virtuais… da tecnologia da informação.

Tudo isto faz com que todas as nossas mais recentes revoluções aconteçam com a influência direta de meios como Internet ou através da repercussão e da imponência de jornais, rádios e televisões. Ninguém mais precisa sair de casa. As mudanças de destino de uma nação depende muito mais da divulgação, por parte dos veículos da mídia, de pesquisas de opinião do que protestos, manifestações de cunho político nas avenidas e praças das grandes cidades.

Aliás, nos dias de hoje, as manifestações de revolta estão baseadas em um grito desengajado (salvo raras exceções), uma vez que a voz política está reticente. E estando desengajadas, tais manifestações são apenas a expressão da mais pura violência, onde não há um objetivo definido. Mas por que motivos não teriam objetivos tais revoltas ? A resposta está nas mãos de quem detém a tecnologia da informação.

Ou seja, quem não tem capacidade divulgar para o mundo, de maneira ampla, clara e em tempo real, a sua miséria social, a sua indignação cidadã e o seu abandono, cai no lugar comum da guerra das ruas, das favelas e dos campos.

Pois é logo após as conseqüências de tais guerras, que a mídia entra em cena, ocupando o tempo e as mentes do cidadãos comuns. Mas neste caso específico, o que seria o objetivo das vítimas, é na verdade, o objeto que sustenta o poder deste novo mundo.

Trata-se de um processo involuntário, onde nem os integrantes da mídia, nem as vítimas da guerra das ruas têm plena consciência do que está acontecendo. E ainda assim, e apesar de tudo, a cidadania da mídia ainda possui o seu espaço.

Mas quais obstáculos poderiam impedir a expansão desta nova cidadania ?

Pois é nesse contexto que se faz necessário analisar o homem contemporâneo. Ele não surgiu de cima para baixo. Bem pelo contrário, ele se manifestou no vácuo da Guerra Fria, quando as televisões ainda estavam conquistando a sua mais plena capacidade em atuar como fonte de poder. É o homem que luta pela sua emancipação em relação à ditadura social da família e de outras instituições. Ele não está necessariamente vinculado ao sonho do tabu social. Ele quer expandir horizontes, encontrar novas soluções para o seu mundo de marasmo. A bem da verdade, este novo homem está é atrás de seu próprio referencial.

Desta forma, a mídia não pode ser uma entidade ‘chata’, uma vez que precisa refletir a personalidade de quem a faz e de quem a consome. E é esse homem contemporâneo, emancipado e livre que dá a ela esta cara e o respaldo para que ela atue como poder. Isso porque, sem a mobilização dos até então sujeitos históricos, sobram oportunidades apenas para quem, por um insistente acaso, tem a voz amplificada pelos microfones e o rosto reluzindo sob os holofotes…

 


J. D. Borges

 

Dada a impotência do presidente, dos ministros, dos governadores, dos congressistas e da equipe econômica ante a desvalorização do real, e dada a inclemência das bolsas, dos investidores e especuladores, que fulminaram nossos principais índices, divisas, dívidas e reservas, vale sondar a densidade desses fatos e estudar a implicância dessa lógica nos atos nossos de cada dia.

Quando no Japão do século 18 foram selados os primeiros “contratos de futuro”, pensava-se simples e apenasmente na antecipação de um pagamento, por conta de uma mercadoria que seria entregue numa data pré-fixada. Com o estabelecimento e a consagração dessa prática, veio a percepção de que tal “adiantamento contratual” permitiria maior agilidade na geração e no uso de recursos, possibilitando novas e grandiosas empresas, eliminando as fatais dependências de tempo e de sazonalidade. Estavam definidos alguns dos princípios dos pregões universais.

De lá pra cá, a comercialização, a negociação e o intercâmbio de produtos, subprodutos e seus derivativos financeiros – quase todos virtuais -, desenvolveram-se, transmutaram-se e multiplicaram-se de tal sorte, que, hoje, o fluxo daquilo que “não existe” (e que talvez nunca venha a existir) tornou-se infinitamente superior, mais possante e mais influente do que a parca circulação daquilo que efetivamente se produz sobre a face da Terra (matérias-primas e seus derivados mais sofisticados). Se algum dia, cada ação, cada título, cada aplicação, cada fundo, da bolsa de valores, mercadorias e futuros, guardou relação com algum “ente” do plano físico, telúrico, hoje isso é o que há de mais impossível. Instituiu-se, assim, um imenso mercado de almas, em que os “vivos”, por razões numéricas e de ponderação, obedecem aos desígnios dos “mortos”, senhores e soberanos da realidade.

Então arma-se um circo de opiniões desencontradas, de informações não-confirmadas, de ações não-planejadas, de demissões não-consentidas. Tudo para que s insaciáveis saqueadores de bilhões de U. S. dollars não façam picadinho do Brasil, d sua economia e daqueles que nele moram. Tudo para que as quedas nos pregões de Nova York, de Frankfurt, de Paris, de Tóquio, da Rússia e de Hong Kong não esmaguem nossos empresários, profissionais-liberais, estudantes, donas-de-casa, crianças e assalariados.

Se é este um caminho sem volta, uma evolução continuada, uma dependência definitiva, para os capitais e para a humanidade, daqui a pouco, mandatários poderão se aposentar. Buscaremos nova forma de representação, elegendo nossos próprios operadores da bolsa (onde Deus efetivamente joga seus dados). Ali se encontram os “políticos de futuro”, os oráculos do amanhã. Qual a preferência? Voláteis moderados (conservadores) ou espectrais arrojados (empreendedores)? Sem ideologias, nem partidos; simplesmente respostas rápidas e decisões matemáticas. Sem palavras, nem intimismo; somente frieza e decantada incisividade.

Mesmo porque a lógica fria de “compra e venda” sem limites, sem entraves, sem interferências, já imprime suas marcas na sociedade civil. Enterradas as responsabilidades éticas e morais, todo cidadão tem direito de comprar e vender absolutamente tudo o que vir por aí – desde que ande dentro da lei e desde que pague seus impostos em dia.

Instalou-se a noção de que a imensa maioria dos problemas se resolve através do poder aquisitivo. Sou um solitário, encalhado, recalcado, desiludido, mas quero casar e ter filhos; pago uma agência matrimonial para encontrar a noiva, esposa, mãe, mulher da minha vida. Sou uma obesa, compulsiva, detesto frutas, odeio saladas, não gosto de me arrumar e tenho horror a exercícios; quero, todavia, emagrecer, ser cortejada e linda; compro uma internação num spa, espremo-me numa academia, empanturro-me com iguarias diet, passo no shopping, no cabeleireiro, e renovo-me num banho de loja, de cosméticos, de tinturas e de modismos. Sou ignorante, iletrado, avesso a papos inteligentes, programação cultural, arte e livros; quero, porém, posar de intelectual, refinado, transbordando em fidalguia; matriculo-me num curso de línguas, escolho um país símbolo e procuro me especializar na sua cozinha, finjo ler os best-sellers do momento, meto-me nas salas de cinema alternativas, adquiro alguns CDs de Música Popular metida a Besta – e está, ora pois, resolvido.

Tanta parafernália, tanta nomenclatura, tantos cifrões, tanta quinquilharia. Pra quê? Pra movimentar as bolsas sem valores. Pra preencher as vidas sem sentido.

Afinal de contas, quem não tem propósitos, quem não tem objetivos, quem não tem função, precisa, de algum jeito, preencher a existência; ocupar a cabeça; de preferência, não incomodando os semelhantes nas suas horas livres.

No fundo, não é isso?