Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Morre Alfredo Leão

 

 

O jornalista e colaborador freqüente do O. I. Alfredo Leão morreu no domingo, dia 3/1/99, às 20h, quando, guiando sua moto numa rua preferencial de Maceió, foi colhido por um carro cujo motorista estava bêbado. Impunemente bêbado, exatamente como ele descrevia as barbaridades de sua terra natal em seus artigos aqui no OBSERVATÓRIO.

Veja trecho de um deles (a íntegra está em </artigos/pb051298a.htm>): “É contra as lágrimas retidas das mães nordestinas, sobressaltadas pela fome, pelas balas, pelas drogas, pelas injustiças sociais, que me insurjo. Tudo igual, você está dizendo. É não. Aqui é o filho do secretário ou do presidente ou do diretor que puxa a arma contra você. A ameaça é próxima. Se se descuidar, um garoto de 18 anos, bonito, forte, bem vestido, joga-lhe o carro em cima porque você está atravessando a rua devagar, na faixa de pedestre.”

Alfredo, 43 anos, fez carreira em São Paulo, mas voltou a Alagoas para ficar perto dos filhos. Tomaria posse no dia seguinte no cargo de assessor técnico de Jornalismo do gabinete da Secretaria de Justiça de Alagoas. Estava cheio de projetos.

A notícia de sua morte nos foi dada por Pedro Quintella [[pedro@dialnet.com.br]], que viria a ser seu colega na secretaria.

Em seu último e-mail ao O. I., em 23/12, Alfredo escreveu: “Por favor, comunique à Vera Silva que está sendo prazeroso ler os textos dela. Muito obrigado. Um beijo, Aleão”

Abaixo, uma lembrança do nosso amigo: Alfredo Leão, por ele mesmo, num de seus longos e-mails.

“Acredito, como dogma, unicamente na força do trabalho. Um analfabeto pode ter a maior das inspirações, e daí? Se ele não sabe decodificar, de nada adianta a ‘iluminação divina’. No máximo vai conseguir dinheiro, jamais prazeres. Para não me alongar, eis um Baudelaire legítimo: ‘Ah, miserável cão! se eu te houvesse oferecido um embrulho de excremento, decerto o cheirarias com delícia e talvez o tivesses devorado. Assim, ó indigno companheiro de minha triste vida, tu te assemelhas ao público, a quem nunca se devem apresentar perfumes delicados, que o exasperam, mas imundícies cuidadosamente escolhidas’.

Os ‘intelectuais’ da terrinha são uma mixórdia. O resto fica por conta da sua imaginação, impossível descrevê-los. Você deve estar creditando boa parte desta história à minha revolta pessoal – já me disseram isto -, às mudanças drásticas ocorridas, à intransigência deste sectário marxista ou sei lá até aonde podem ir as suas conclusões. Peço-lhe: arrume um tempinho – garanto-lhe casa, comida e roupa lavada – e venha passar uns dias por aqui. Sol a pino e mar com águas dolentes e mornas são certezas absolutas. Aí sim, in loco, você poderá chegar às conclusões mais próximas de que isto é muito mais do que o inferno de Dante.

Inexistem pessoas sérias. Todas foram embora ou vivem fora, viajando. Os políticos são corruptos até a sola do sapato, o Judiciário não deixa a Assembléia Legislativa pra trás, o Executivo é coalhado de criminosos, ladrões do patrimônio público. Só com muito tempo para conversarmos. Isto aqui tem um grau de impunidade assustador. Eu soube, há pouco, que até o Judiciário se prestou a trazer para Alagoas uma traficante brasileira/colombiana que estava presa em Brasília para, num ato de cinema, providenciar a fuga da moça pelo valor de R$ 500 mil. Uma das pessoas que brecaram a trama foi esse secretário com o qual vou trabalhar.

Andar armado aí no Rio é coisa de bandido, não? Pelo menos em São Paulo é assim, quem anda armado é bandido. Aqui, quem armado é mocinho, é o filho da high society que mostra publicamente a sua bela 45, pronta, afiada, disposta a soltar um projétil contra a vida de um intelectual, por exemplo, que, por acaso, discorde das perorações que a anta esteja exalando.

O que mais dói é o sujeito lutar feito um doido, a vida inteira, a favor dos direitos humanos, tendo sido preso, torturado, perdido seis dentes, cirurgia no joelho, rim direito danificado, dias, horas, meses, anos a fio lendo ininterruptamente, sempre pautado pela honestidade, o respeito, a dignidade, a ética e ter que se submeter a ouvir asneiras que levam semelhantes à morte. É também deparar-se, depois de muitos anos, com o estado natal nas mãos de salafrários que determinam a miséria, a fome, o analfabetismo de milhares de cidadãos com um só intuito: roubar, enriquecer ilicitamente, perpetuar os poderes dos que já os detêm e por aí vai.

É uma luta inglória. Tivesse eu Aids seria pouco para justificar o tratamento que recebo. O preconceito é brutal. Sou o chato, o briguento, o cara que só fala coisas sérias e difíceis, o mal-humorado, o símbolo de questionamentos…

Ufa!

Aleão”

(M. C.)