Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Mylton Severiano

LÍNGUA PORTUGUESA

“Lei Não Pega Na Língua”, copyright Caros Amigos, 5/09/03

“Tudo aquilo que o malandro pronunciaCom voz maciaÉ brasileiroJá passou de português

Noel Rosa, Não Tem Tradução (Cinema Falado)

1. Alguém levantou a bola, alguém emenda

O foot-ball trouxe ao cotidiano expressões saborosas, como ?levantar a bola?. O colega Fernando Rodrigues levantou uma. Assinou na Folha de S. Paulo a 1o. de setembro de 2003 o editorial A lei do ?rato?. A propósito da Lei Aldo Rebelo da Língua Portuguesa, em trâmite no Congresso Nacional, diz que ?um espectro ronda a liberdade de expressão? – alusão irônica ao início do Manifesto Comunista de Marx-Engels de janeiro de 1848: ?Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo.? (Aldo Rebelo é do Partido Comunista do Brasil.)

Fernando chama a Lei de ?aberração? e cita o Artigo que, segundo ele, ?ronda? a liberdade de imprensa:

?Toda palavra ou expressão escrita em língua estrangeira e destinada ao conhecimento público no Brasil virá acompanhada, em letra de igual destaque, do termo ou da expressão vernacular correspondente em língua portuguesa.?

Bem, todo manual de redação deveria trazer esta instrução. Fernando implica justo com algo de bom na Lei e usa argumento falaz, o de que, ao escrever ?mouse?, teria de pôr entre parênteses a tradução ?rato?. Usa tal palavra para, no título, A lei do ?rato?, indiretamente chamar de rato o líder do governo na Câmara. Pouco elegante, hem? Mais a mais, isto não tem a ver com liberdade de expressão, mas de lingüística, como veremos.

2. Mentes colonizadas

Contudo, nem rato nem mouse: por mim, já passei a escrever mause. E mais: em Portugal, chamam o aparelhinho de rato. E não é que parece um ratinho mesmo?

Os portugueses deveriam ser copiados se tivéssemos mais vergonha na cara em matéria de servilismo aos estrangeirismos que infestam nossas publicações, isto sim uma praga que caminha depressa, e não lentamente como diz o Fernando sobre a Lei Rebelo – que, vá lá, pode vir a constituir-se noutra praga.

Claro que a mente colonizada acha ridículo grafar ou falar sítio em vez de saite (pronúncia de site, que em inglês significa… sítio!). Tem ojeriza ao que é brasileiro, que em muitos vai pra comida, pro esporte, pra música, pra preferência sexual, pros costumes.

Uma vez, um colega nos apresentou, para editar, reportagem sobre charutos. Escreveu que os de certa marca tinham magnífico ?flavour?, palavra, segundo o texto dele, intraduzível. Mas como? Perguntei-lhe o que viria a ser ?flavour? (eu sabia, mas perguntei), e ele:

?Ah, é gosto, sabor.?

Então por que não escrevemos ?gosto?, ?sabor?? Em sua cabeça colonizada era incabível. Charuto só podia emanar ?flavour?.

(E essas rádios que só tocam música americana Brasil afora? Isso não deve ser de graça. Se quisermos causar celeuma, eis aí boa CPI a pedir.)

O colega Sérgio Andrade, que assinava sob o pseudônimo Arapuã a seção Ora, Bolas na falecida Última Hora, brincou com os publicitários, talvez a categoria mais americanizada. Arapuã, que se tornaria festejado publicitário, listou expressões da publicidade, com suas traduções em português, por exemplo:

Inglês Português

Briefing Briefing

Lay-out Lay-out

Rough Rough

Target Target

Agora veja que curioso. O caderno para adolescentes que circulou no mesmo dia do artigo do Fernando chama-se Folhateen. Parece que têm vergonha do Brasil, e da nova flor do Lácio. Dá vontade mesmo de aplicar a Lei Rebelo, assim: Folhateen (Folhadolescente).

3. Espetáculo de balípodo

A língua se move. Ela se transforma. Ela morre. Ela transmuda-se noutra, que seria irreconhecível para os ancestrais que a usaram. Caso do latim, evidente até a olhos e ouvidos nus nas neolatinas – português, italiano, espanhol, romeno, francês.

Como viva manifestação de um povo, é natural que entre os falantes existam mil opiniões e forças contrárias ou favoráveis à assimilação de estrangeirismos ou à anexação pura e simples. Mas não há lei que nos faça substituir a expressão popular ?show de bola? por ?espetáculo de balípodo?. No máximo, passaremos a grafar ?xou?.

Não chego ao radicalismo do deputado Rebelo, a querer impor sanções contra lojistas que apregoam off em vez de liquidação, desconto. É complicado legislar sobre a cretinice.

O empenho de Rebelo, ?defender a língua? como reconhece o Fernando, tem laivos do major Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, que queria restaurar o tupi-guarani como língua nacional e teve ?Triste Fim?. E lembra o filólogo e latinista Castro Lopes, a criar neologismos para substituir francesismos e anglicismos: nasóculos para pince-nez (ficou pincenê); balípodo para foot-ball (futebol); cinesíforo para chauffeur (chofer); ludâmbulo para turiste (turista). De suas criações, uma chegou a ser usada uns tempos: convescote para picnic (piquenique), formada pela junção de ?convívio? e ?escote? (contribuição)! Pobre Castro Lopes, não emplacou uma.

O que parece faltar a esses quixotes é compreender que só o povo manda na língua. Mas merecem todos nossa compreensão.

4. A Lei Rebelo vai rebolar

Num ponto, o Fernando tem razão. Como traduzir marketing numa só palavra? Nós não a temos. E sequer a registra o dicionário Webster?s de inglês (editado pela Folha do colega Fernando!). É conceito recente, explicado pelo Aurélio como ?conjunto de estratégias e ações que visam a aumentar a aceitação e fortalecer a imagem de pessoa, idéia, empresa, produto, serviço?. Colegas já criaram neologismo para quem trabalha nisso: marqueteiro.

Mas dá para substituir certas palavras, e para isso não devíamos obedecer a Lei alguma emanada do Planalto, sim usar bom senso e orgulho da nossa nacionalidade. Hardware pode ser mecanismo, máquina, componentes; software, programa, conjunto de programas, instruções – conforme o caso.

Não podemos aceitar a torto e a direito a inserção de palavras que podemos perfeitamente abrasileirar ou adaptar. No começo há certo estranhamento. O mesmo que muitos sentiram quando passaram a ler no jornal futebol em vez de foot-ball. Isto não faz nem um século! Tenho amigo mais velho que não fala restaurante – fala restôrrán! Em seu tempo de colégio, era forte a influência francesa.

5. Magister dixit

Como trabalhadores cuja ferramenta principal é o idioma, temos obrigação de zelar pela linguagem escorreita, mas também temos obrigação de sair na frente, inovar.

Agora, lidamos com a novidade do mundo internáutico. Além de sítio em vez de site, grafo emeio, que me parece perfeito, pois mantém-se o e (de eletrônico); e meio (praticamente a pronúncia de mail), que dá idéia de transporte, em correspondência a mail = mala, mala postal, correio.

Se a língua não evoluísse, ainda estaríamos dizendo ?magister dixit? em vez de ?o mestre disse?.

5. Laissez faire, laissez passer

Historinha exemplar para fechar. Meu filho viu no cardápio de um quiosque na capital potiguar: X-Natal, ou coisa parecida. Pediu. Veio sem queijo. Reclamou. Resposta do garçom: Esse X não leva queijo.

A criatividade popular, que não tem limites, já havia transformado ?cheeseburger? em X-burg. E agora essa: Um X sem queijo (em inglês, queijo é cheese, que se pronuncia tchiz, daí o X).

O deputado podia, quem sabe, deixar o povo legislar sobre a língua. E Fernando, fique sossegado. Nada de paranóia. A Lei Rebelo trata de cercear a liberdade de expressão ?lingüística?, só. Se vingar, não vai pegar no pé da imprensa por coisas bem piores que a subserviência a estrangeirismos.

Por exemplo, no mesmo dia do seu artigo, a Folha dá de manchete Orçamento exclui parte dos pobres, embaixo de chamada com letras menores: Governo Lula prevê atender 7,6 milhões de famílias, 1,7 milhão a menos que o número estimado pelo IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística].

Fiz as contas. O Governo Lula prevê que vai atender praticamente 80% dos pobres. Quatro em cada cinco. Mas o jornal do Fernando prefere dizer que ?exclui? pobres. Esta liberdade de torcer fatos conforme seus interesses a Lei Rebelo mantém intacta.

E o Fernando me desculpe se emendei de trivela e lhe pareça que tentei goal de mão, é que a bola levantada veio meio quadrada.”

“A lei do Rato”, copyright Folha de S. Paulo, 1/09/03

“Como poderia dizer o comunista autor da idéia, um espectro ronda a liberdade de expressão. Seu nome é Lei Aldo Rebelo da Língua Portuguesa.

Apresentada em 1999, essa praga caminha lentamente, como um cupim. Sem que ninguém se dê conta, vai cavoucando seu caminho por dentro do Congresso. Aprovada no Senado, na quarta-feira passada passou por unanimidade na Comissão de Educação da Câmara.

Se essa aberração vingar, os meios de comunicação terão de seguir uma regra: ?Toda palavra ou expressão escrita em língua estrangeira e destinada ao conhecimento público no Brasil virá acompanhada, em letra de igual destaque, do termo ou da expressão vernacular correspondente em língua portuguesa?.

Os jornais precisariam, em tese (essa lei não vai pegar), escrever ?rato? entre parênteses depois de ?mouse? para descrever o equipamento usado nos computadores. Haverá ?sanções administrativas cabíveis? para quem descumprir as novas regras.

Esse é o tipo de ovo de serpente do qual qualquer democrata deveria se distanciar. Hoje, querem que a imprensa escreva rato para descrever um prosaico mouse. Daqui a pouco terão idéias sobre o que pode ser divulgado pelos jornais.

Essa não deve ter sido a intenção de Aldo Rebelo -deputado do PC do B de São Paulo, líder do governo na Câmara e uma das pessoas mais educadas e cultas daquela Casa. Ocorre que seu projeto pavimenta um caminho perigoso contra a livre expressão de idéias no país.

No fundo, a motivação de Rebelo é singela: ?Tive uma idéia, vou fazer uma nova lei?. Há uma obsessão cartorial-católica-lusitana no Brasil pela regra escrita, carimbada.

Rebelo quer proteger o idioma. Tudo bem. Mas é inútil uma lei para isso. Bastaria o governo erradicar o analfabetismo e garantir escolas de qualidade. Aí, é claro, fica difícil.

Boa notícia aos leitores: saio duas semanas em férias. Até a volta.”

“As Verbas E Os Verbos”, copyright Jornal do Brasil, 15/09/03

“A imprensa passou a semana noticiando com muito destaque a economia. Vamos bem? Vamos mal? Naturalmente, depende do ponto de vista de quem informa ou comenta. Como disse o suíço Ferdinand de Saussure, fundador da lingüística moderna, o ponto de vista cria o objeto.

O que nos interessa, no caso, é a língua viva. Comecemos pelas palavras que mais freqüentaram as manchetes. A economia nasceu falando da casa. Economia procede do grego oikos, casa, e nomos, ordem. Até o velho Acácio sabe que a paz familiar começa com a economia da casa em ordem. E sempre nos foi dado como óbvio que a ordem econômica é simples em sua formulação: não se pode gastar mais do que se ganha.

Porém, o simples é o caminho dos tolos, pois quase nada neste mundo é simples. Nem em economia e nem em português. Teria havido uma seita medieval que defendia a simplicidade do universo. Tudo ia ficando muito monótono, mas eles um dia foram vencidos. Ainda bem.

O médico e ex-ministro Adib Jatene certa vez lembrou que em medicina, ao contrário do que ocorre em economia, os remédios são testados antes em animais e severamente controlados em número reduzido de pessoas, para somente depois serem prescritos. Ainda assim, o erro médico é passível de grandes punições, embora o povo considere que a semelhança entre médicos e agrônomos é que a terra encobre para sempre os erros de ambos.

O verbo arrecadar também foi destaque a semana inteira. De origem controversa, provavelmente formou-se do latim recaptare, alteração de receptare, que ao chegar ao latim vulgar mudou para recapitare, mais fácil de pronunciar, mas sempre com o sentido de receber, retomar. Porém, na complexa viagem das palavras, receptare ganhou o sentido de ocultar ou receber coisa de procedência criminosa. Autoridades econômicas foram unânimes em lamentar que estão arrecadando pouco. Ou menos do que esperavam. De novo, o ponto de vista. Pois os contribuintes não têm nenhuma dúvida de que estão arrecadando demais. Ou, provavelmente, arrecadando muito de poucos.

De todo modo, as metáforas rechearam as explicações. E quem disse que o latim é língua morta? Superávit e déficit nunca estiveram tão vivos, ainda que no latim não tenham acento. Déficit vem do verbo latino deficere, faltar, falhar. É usada para indicar despesa maior do que a receita. Quando o governo gasta mais do que arrecada, tem déficit. Muitos economistas acham que o déficit das contas públicas e a sonegação de impostos são as maiores causas da inflação. E superávit — que em latim significa literalmente ?superou? – procede do verbo superare, superar, ter a mais, sobrar.

E os tributos arrecadados vão para onde? Aí entraram os juros dos empréstimos. Empréstimo é palavra formada do latim in, em, e praestitu, particípio passado do verbo praestare, emprestar. Os empréstimos de dinheiro, mediante juros, foram primitivamente reprovados pela Igreja, por menor que fosse a taxa utilizada para a remuneração do capital. As recentes pesquisas em história das mentalidades têm revelado que o purgatório pode ter sido criado para abrigar os banqueiros, uma vez que, ao providenciarem capital para as instituições religiosas, eles passaram a merecer um lugar intermediário entre o inferno e o paraíso.

Também o verbo escorchar voltou ao proscênio dos debates. A economia não vai bem porque os juros são escorchantes, lembram os críticos de nossos empréstimos, externos ou internos. Escorchar veio do espanhol escorchar, tirar a pele ou o couro.

Tosquiar é outro verbo presente nessas metáforas. O governo trata os cidadãos como ovelhas, tosquiando-os sem consultá-los? Não! O governo consultou nossos representantes no Parlamento. Será que o Congresso vai pôr ordem na Casa? E se não puser? Ah, faltam verbas; verbos, não!”