Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Na linha de frente

SALA DE AULA

Victor Drummond (*)

Analisar o New York Times, o jornal mais influente do mundo, não é tarefa fácil. Principalmente se nos detivermos na cobertura que o diário fez de um dos maiores acontecimentos da história: a Segunda Guerra Mundial.

Qual foi sua real influência sobre a maneira de pensar dos leitores? A quem ele favoreceu? De que lado da guerra se posicionou? Como abordou a relação entre judeus e alemães? Foi sensacionalista ou parcial demais? Até que ponto conseguiu manter sua neutralidade? E, já que estamos falando em guerra, como este poderoso veículo de comunicação se posiciona em relação à invasão do Iraque pelos Estados Unidos? Defende com unhas e dentes a grande potência americana ou acredita que a guerra não é a melhor alternativa?

É interessante conhecer um pouco da história deste jornal. Lançado no fim dos anos 90, o livro The trust ? The private and powerful family behind The New York Times, sem versão em português, de Susan Tift e Alex Jones, narra a saga desta "monarquia moderna". O início do NYT foi marcado pela compra de The New York Daily Times, em 1896, por Adolph Ochs, que tinha então 38 anos. Filho de imigrantes judeus pobres, com Arthur Hays Sulzberger, seu genro, Ochs transformou o jornal, então à beira da bancarrota, no mais respeitado e poderoso veículo do país. O sucesso se prolonga há quatro gerações.

O NYT foi o único jornal a noticiar o naufrágio do Titanic, em 1912. Seu correspondente na Europa descobriu que, 30 minutos após o pedido de socorro, não houve mais comunicação. Assim, no dia seguinte, a manchete do jornal estampava: "O navio afundou", enquanto os demais publicavam histórias incompletas. Até a morte Ochs continuou no Comitê Executivo do jornal, além de diretor da agência Southern Associated Press, por ele fundada em 1890. Seu genro, Arthur Sulzberger, sucedeu-o.

"Objetividade jornalística"

Foi sob a gestão de Sulzberger que o NYT se tornou um dos jornais mais influentes do mundo. Supervisionou pessoalmente a cobertura da Segunda Guerra Mundial. O jornal mantinha acima de 50 correspondentes estrangeiros, mais do que qualquer outro veículo no mundo. No livro O reino e o poder, Gay Talese, ex-editor do NYT, afirma que o jornal era o melhor no período da guerra, embora o concorrente, Tribune, fosse sério e interessante e, sem dúvida, um lugar mais apropriado para repórteres que quisessem liberdade literária. Entretanto, no que diz respeito à reportagem direta e à profundidade de cobertura, o Times (como o jornal é chamado pelos americanos) era incomparável.

A decisão de aumentar a equipe e não economizar na cobertura da guerra tomada por Sulzberger revelou perspicácia empresarial. Uma vez que as matérias-primas de produção de um jornal ? papel, tinta, metal ? estavam racionadas durante a guerra, os editores tinham de decidir se tentariam ficar ricos enchendo seus veículos com mais publicidade ou se resistiriam ao ganho fácil e publicariam mais notícias. Sulzberger escolheu esta última alternativa. Ele mesmo visitou as frentes de guerra na Europa e no Pacífico.

O NYT perdeu milhões durante a guerra, mas produziu um jornal superior. Talese acrescenta que o espaço adicional dedicado à cobertura da guerra, em vez de à publicidade, foi uma decisão lucrativa em longo prazo: o jornal roubou muitos leitores do Tribune, que continuaram a lê-lo depois da guerra.

Qual foi a abordagem do NYT quanto ao nazismo e ao tratamento dado por Hitler aos judeus, visto que seu fundador tinha origem judaica? Ao morrer, em 1935, Ochs transmitiu aos herdeiros o desejo de que o NYT fosse sempre devotado aos interesses do público, e não presa dos desejos ou das ambições de um ou outro grupo político. Esta postura fez-se presente também nos temas ligados à comunidade judaica, nos Estados Unidos e no mundo, e, posteriormente, no relacionamento com o Estado de Israel.

Porém, o temor de que o jornal fosse considerado "defensor dos interesses judaicos" levou-o a tal imparcialidade que, numerosas vezes, chegou a ser acusado, por segmentos da comunidade, de inimigo dos judeus e do Estado de Israel. A redação respondia dizendo que a pecha do anti-semitismo estava sendo usada como cobertura política para nacionalismos, o que o jornal abominava. Ochs fez tudo para mostrar à classe dominante não-judia que os judeus poderiam ser cidadãos de referência, cunhando o slogan "Todas as notícias cabíveis merecem ser impressas". Consta que Ochs, ao manter-se distante da elite judaica, conquistou seu respeito. A cobertura dos fatos ligados ao anti-semitismo, na Europa, ganhou mais espaço nas colunas do NYT quando Hitler assumiu o poder, em 1933. A partir daí, sua política contra os judeus já não podia mais ser negada.

Sulzberger parecia mais preocupado com o fato de pensarem que ele dirigia um "jornal judaico" do que com a ascensão de Hitler. Durante a Segunda Guerra, ele enfrentou o grande desafio de manter a imparcialidade tão defendida por seu sogro, mesmo diante das atrocidades cometidas pelos nazistas contra os judeus.

Os editores tinham ordens de não "dar muito espaço" ao empenho do American Jewish Committee em ajudar os judeus europeus. Quando os líderes sionistas o acusaram de parcialidade na apresentação das notícias, retrucou acusando-os de o terem convertido de "não-sionista" em "anti-sionista".

No entanto, apesar de não erguer bandeiras em defesa das comunidades judaicas distantes, Sulzberger encorajava a sociedade americana a defender o american way of life, exortando subliminarmente os Estados Unidos a ajudar a Europa contra a ameaça que Hitler representava. Se, por um lado, manifestava preocupação com o destino dos judeus, por outro não fazia desta uma postura constante, publicando apenas esporadicamente artigos sobre o que acontecia no continente europeu.

O receio de ver seu jornal identificado como veículo "pró-judeus" jamais abandonou Sulzberger. Quando foi anunciada a libertação do campo de concentração de Dachau, na Alemanha, a notícia, embora divulgada na primeira página, não fazia menção alguma aos judeus. Em 1948, o jornal se recusou a endossar a Declaração de Independência do Estado de Israel. Tudo em nome da herdada "objetividade jornalística".

Medo da opinião pública

A objetividade em relação aos judeus não pode ser resumida em imparcialidade, visto que pelo simples fato de Sulzberger não desejar ser visto como pró-judeu já estava sendo parcial. Passados mais de 50 anos, terá o jornal essa mesma "objetividade" em relação à invasão do Iraque pelos Estados Unidos?

Bem, parece que o que está acontecendo hoje é justamente a repetição deste posicionamento. O NYT não quer ser visto como um jornal pró-Estados Unidos, da mesma forma que não quis ser visto como pró-judeu. Este é o grande fantasma, o grande medo que assombra a redação, que tem tentado manter a objetividade diante da realidade da guerra ? apesar de já se ter posicionando contra ela.

Na manchete do dia 19 de março, o NYT publicou: "Tropas avançam em direção à fronteira do Iraque." Esta manchete expressa objetividade. Apenas dá a notícia, conta um fato. Esta objetividade acaba se transformando em imparcialidade. O jornal "não pode" defender os Estados Unidos. Imaginem! "O mais influente jornal do mundo defendendo o próprio país? Que tipo de jornalismo é esse?", são os questionamentos que o NYT não quer ouvir de seu leitor, crítico e exigente. Esta "linha editorial" acaba sofrendo "crise de identidade", o tiro sai pela culatra. Na Segunda Guerra, Sulzberger queria tanta objetividade que o jornal acabou parecendo se posicionar contra os judeus.

É o que ocorre hoje. Vejamos esta manchete, também do dia 19 de março: "Centenas de protestos contra a guerra no Iraque." O jornal tem tanta preocupação em não se posicionar a favor do governo americano, de ser objetivo, que acaba se posicionando contra os Estados Unidos, mesmo sem querer.

Concordo em que se deva publicar o que é notícia, e que os Estados Unidos não praticaram a melhor diplomacia para "garantir a paz mundial". O que critico é o fato de um jornal tão sério ter medo do que os outros vão pensar de sua linha editorial. Nesta guerra que acaba de começar, fica difícil saber se o NYT defenderá os milhares de iraquianos que morrerão ou falará das criancinhas americanas que perderão seus pais no campo de batalha.

(*) Aluno do 3? ano de Jornalismo do Unasp