Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Na rabeira do mundo

Há um ano e meio tramita na Câmara dos Deputados projeto de lei do Executivo que regulamenta o Serviço Nacional de Radiodifusão Comunitária. Como se sabe, a radiodifusão pública ou comunitária é uma modalidade de radiodifusão sonora (esse é o termo técnico) dentre as três previstas no artigo 223 da Constituição Federal. As outras são a estatal e a privada.

A radiodifusão comunitária destina-se a atender aos interesses de comunicação radiofônica das comunidades em geral, sejam elas um município, um bairro, um grupo de moradores de uma praia, uma vila de pescadores, moradores de um condomínio, de uma quadra urbana, membros de uma cooperativa, de uma associação ou de qualquer entidade civil de direito privado sem fins lucrativos.

Embora o projeto de lei esteja encalhado no Congresso, deve-se celebrar sua entrada na Casa como uma meia-vitória de uma dezena de ONGs, inconformadas em ver que o governo brasileiro, no limiar do século vinte e um, ainda mantém pelo menos 70% dos municípios privados de qualquer serviço local de radiodifusão (comunitária ou privada), fantástico invento do final do século dezenove.

Para se ter uma idéia de nosso atraso na questão – que nos fez atravessar todo o século vinte sem acesso local a esse meio de comunicação elementar -, basta lembrar que quando o Palácio do Planalto encaminhou ao Legislativo seu projeto de lei regulamentando a matéria, a Colômbia festejava o cinqüentenário da radiodifusão comunitária na América Latina. Em anos mais recentes, a Argentina cuidou de regulamentar o serviço, da mesma forma que o Chile, sem falar de outros países, como a Guatemala ou o Peru, onde o serviço funciona há algumas décadas sem regulamentação alguma.

Em resumo, a radiodifusão comunitária acabou sendo acolhida com entusiasmo por uma centena de países, pelas razões óbvias da necessidade de comunicação à distância a baixíssimo custo (cerca de US$ 7,0 mil por estação completa) e das condições educacionais e culturais de seus habitantes, em geral desprovidos do hábito da leitura ou, mesmo, analfabetos.

Assim, é natural que tivéssemos saudado a iniciativa do ministro das Comunicações, Sérgio Motta, três meses depois de assumir o ministério, de regulamentar o serviço também no Brasil. Em tonitruante discurso feito em abril de 1995, Motta prometera autorizar a instalação das primeiras 10 mil emissoras comunitárias. E enquanto elaborava os termos de uma portaria regulamentando o serviço, assegurou informalmente a representantes das ONGs que não coibiria as atividades de quem já estivesse operando, tanto mais que, na sua opinião, a radiodifusão comunitária convertera-se em ferramenta indispensável para um governo que tem em seu programa a determinação de descentralizar as políticas públicas e transferir a sua gestão diretamente para as comunidades de beneficiários, mediante a formação dos conselhos locais de saúde, de educação etc.

Munidas da senha ministerial, mais que depressa cerca de 800 entidades civis sem fins lucrativos abriram (ou apenas montaram) suas emissoras comunitárias, na expetativa de virem a ter seus projetos aprovados posteriormente, quando da publicação da portaria. Não se tratava de iniciativa afoita ou temerária, uma vez que o Código Nacional de Telecomunicações define explicitamente como serviço de radiodifusão sonora, passível de enquadramento nos termos da lei, somente o das emissoras com potência acima de 50 watts – o que significa, no entendimento de engenheiros e de juristas, que, operando abaixo daquela potência, as emissoras comunitárias, para entrar em atividade, necessitavam apenas da autorização do Ministério, não estando sujeitas ao que prescreve o Código, como, por exemplo, a exigência de apresentação de projeto elaborado por um engenheiro etc. Esse era também o entendimento de Sérgio Motta, então um ingênuo aprendiz do jogo bruto das comunicações no País.

Inocência perdida

Foi o que bastou para que os donos das comunicações, reunidos na poderosa Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) desencadeassem uma campanha terrorista contra as “rádios piratas”, como estão cansados de saber os ouvintes da CBN (Globo). O que não é sabido pelo público em geral que não ouve a CBN ou as emissoras mineiras ligadas à Amirt (a Abert de MG) é que o terror deve ser tomado ao pé da letra: os fiscais do Ministério das Comunicações, apoiados com recursos financeiros da própria Abert (gasolina para os veículos, diárias de hotel e refeições), como revelou um funcionário de Sérgio Motta, de Natal (RN), e na força das armas da Polícia Federal, vêm fechando com truculência e mesmo prendendo em todo o país representantes de tais emissoras.

E a Abert não ficou por aí. Paralelamente, pressionava Sérgio Motta, como o fez seu presidente, Joaquim Mendonça, por ocasião do "almoço de confraternização de fim de ano", da Abert com o ministro, em dezembro de 1996 em Brasília, ameaçando denunciá-lo por prevaricação, caso não ordenasse o fechamento imediato das emissoras comunitárias. Além disso, exigiu que o ministro desistisse da portaria, argumentando que, em matéria de legislação, tudo estava lá, no Código Nacional de Telecomunicações, passível de mudança somente mediante um novo projeto de lei. E que este também não era o caso, já que "a ocupação do espectro radioelétrico está completa e nele não cabe mais ninguém, tanto mais que as atuais emissoras privadas vêm dando duro para sobreviver".

"Serjão" também é osso duro de roer. Levantou-se, à mesa, e disse mais ou menos o seguinte: "Meus amigos, o governo não vai desistir de implantar emissoras comunitárias no Brasil. Com a tecnologia digital, já disponível, é possível enfiar no espectro de radiofreqüência uma infinidade de novos canais. Há lugar para todo mundo. E outra coisa: nosso caro FHC já não pode, em suas viagens pelo mundo, sofrer o vexame de continuar passando por um Pinochet das ondas radioelétricas… Nessa questão, estamos na rabeira do mundo, atrás da União Soviética e do próprio Haiti. Não d&aacuaacute; mais para tapar o sol com a peneira. Nós vamos implantar o serviço. E, cá entre nós, digam lá qual é a proposta de conciliação de interesses, que eu topo".

Projeto só passa com ajuda da sociedade civil

Três meses depois, Motta tinha em sua mesa a minuta do projeto de lei de regulamentação do Serviço de Radiodifusão Comunitária, em papel timbrado da Abert. Motta acolheu a minuta praticamente na íntegra, alterando um único artigo – o que proibia as entidades sem fins lucrativos, gestoras das emissoras comunitárias, de recolherem fundos, sob a forma de publicidade, para manter o serviço. O argumento do ministro, presente no artigo modificado, na versão que enviou ao Palácio do Planalto, restabelece o direito de captar recursos mediante publicidade – iniciativa calcada na experiência por ele colhida nas TVs comunitárias ou educativas, sempre à beira da falência por estarem proibidas de irem ao mercado publicitário.

O projeto, mediante algumas emendas, foi reduzido à sua dimensão mínima pelos alfaiates da Abert, atuantes na Câmara e no Senado á? como se sabe, cerca de 60% dos parlamentares são proprietários ou sócios de empresas de comunicação de massas e os demais, dependentes delas para se reeleger. Assim, por exemplo, prevê autorização para um único canal por município – quando a tecnologia permitiria a operação de muitos – funcionando à menor potência, para não estragar os negócios da Abert.

Para um povo que até hoje não conseguiu nada na matéria, é preciso reconhecer que já é alguma coisa. Entendemos então, nós que somos militantes da causa, que é mais sensato acolher o projeto como está, para tentar modificá-lo numa nova Legislatura.

O problema é que, reduzido a quase nada, ainda assim o projeto de lei continua engavetado no Congresso, sem que os parlamentares favoráveis à sua aprovação, em minoria, tenham força para tocá-lo adiante.

Viva a tal "sociedade civil", ator de importância fundamental nos dias de hoje, como instrumento indispensável de disseminação do poder e do enraizamento da cidadania, como dizia recentemente em entrevista à revista Veja o presidente Fernando Henrique Cardoso…