Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Nada vale um sucesso pago pela mentira

AOS FORMANDOS DA UNB

TT Catalão (*)

Boa noite aos senhores da mesa, senhores do tempo, senhores dos anéis, senhoras da mãe natureza, senhoras da liberdade, da beleza e senhoras da vida… e uma especial saudação aos familiares que acompanharam cada momento dessa realização, até chegarem a esta noite.

Mais especial ainda aos que, sem nunca terem freqüentado uma universidade, verteram cada gota de sacrifício para, agora, compartilharem o sentimento de um filho e uma filha formados neste ciclo que se encerra. Angustiados, nem tanto pelo fim de uma etapa, mas por saber que ela apenas anuncia um novo início.

A posse de um título habilita, é claro, mas é só papel, mera formalidade se não conferir com a vida. Um canudo pouco pode significar se for só moldura na parede, mas pode revelar muito se a pessoa, hoje, percebe-se mais humana, mais cidadã, mais comprometida com os valores de transformação do mundo na profissão que escolheu… E é de mudança, ousadia, atitude, virada, alteração, alternativa, combate, romantismo, esperança e indignação que temos a comentar quando a Universidade de Brasília oferece ao país seus novos formandos de Comunicação de 2001. Pode parecer que pouco restou da utopia desta universidade. Se olharmos bem vamos perceber o quanto desta semente ainda está mantida em cada um de vocês. Por mais que o tempo atual pareça cínico, pragmático e a política tenha virado um sinal pornográfico de vulgaridade e corrupção.

Esta não é uma universidade qualquer. Ao menos não deveria ser. Esta universidade nasceu sob o signo da invenção. Tem um história, uma origem, um conceito, um plano piloto tão ou mais importante como o Plano Piloto matriz da cidade. Ela nasceu para soprar alma nas narinas de barro do concreto e aço monumental de Brasília. Nela entre conflitos, às vezes confronto, vocês cumpriram essa primeira etapa acadêmica formal. Mas tem mais. Tem a vida… tem a cidade…

A cidade-coisa ? material, construção, ou mesmo seus princípios urbanísticos e intempéries políticas ? está sujeita ao sabor das vaidades. A idéia não. Na idéia desta cidade está um projeto utópico de Brasil, fraterno, revolucionário, provocativo que deveria vir exatamente pelos frutos dessa Universidade. A cidade-coisa ? prédios, solo, paisagem, indústria, comércio, serviços, instituições ? fica sujeita ao governo circunstancial do momento. E hoje experimentamos um dos piores, um dos mais levianos governos frente ao sonho solidário interrompido sobre Brasília. Resta-nos a idéia. E a guarda dessa idéia foi dada à Universidade de Brasília como o primeiro ato público e governamental do presidente JK em 21 de abril de 1960. No primeiro ato da nova capital, JK envia a mensagem ao Congresso, que pasmem, seria aprovada na Câmara, em pleno olho do furacão da renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. A realização final só viria com João Goulart, em 21 de abril de 1962.

Idéias são as nossas matrizes. Esta universidade nos legitima como idéia, povo e nação. Ela deveria ir além de um centro de estudos e tecnologia: seria uma usina apaixonada de críticas, revisões, experimentos e diferença. Nela teríamos sempre a chama alerta do quanto nos desviamos de um curso e o tanto que teremos de corrigir para nos aproximar do projeto. O simbolismo dessa fundação significa alguma coisa.

O passado não é para ser cultuado como saudosismo sentimental. O passado tem a sua carga de referências. São sinais. E na origem desta universidade podemos encontrar inúmeros equívocos mas jamais alguém pode afirmar que esta universidade foi conivente, passiva, burocrática, con-for-ma-da…

A raiz da insatisfação deve estar em todo átomo do saber. Banir o conhecer cumulativo, formal, escravo dos mercados, repetitivo segundo as ordens do Big Brother ? não a bobagem televisiva atual, mas o Big Brother do romance de Orwell, 1984, o que mostrava o poder controlador do indivíduo, seja pelos pesados impostos estatais e até invasão de privacidade como o projeto Echelon, de hoje, que é capaz de violar milhares de correspondências por e-mail, tudo em nome do Grande Irmão Estado.

Conquista, posse, submissão do desejo a um só desejo: o da máquina militar, comercial e econômica e sua ferramenta principal, a comunicação manipulada, a perda da individualidade pela massa opressiva dos mercados ou a ditadura do entretenimento. A narcose da consciência. O narciso da egolatria.

Esta universidade levou o seu criador, Darcy Ribeiro, em 1986, no grupo que celebrava os 10 anos da morte de JK, a dizer: "Não há nada mais grave para a Universidade de Brasília do que cair na vala comum." Nesse mesmo encontro, o então reitor Cristovam saudou a presença de Darcy como lembrança viva para "tudo o que esta universidade tentou ser, em certo momento, e não deixaram que ela fosse". Darcy atacava o que ele chamou dos "grandes proprietários das cátedras" e a incapacidade da universidade brasileira da época, 1958, se "autocriticar e servir como um campo cultural ativo, a casa da consciência crítica". A UnB era a estrutura modular, guerrilheira no sentido tático de institutos para a vanguarda e faculdades profissionais para consolidar a trilha aberta. Nunca para repetir a trilha vencida. A UnB é filha da invenção.

Uma universidade que teve nos seus dramáticos episódios de invasão pela força, depois do golpe de 64, a resposta da resistência individual como o martírio de Honestino Guimarães e centenas de testemunhos anônimos, como em 1967, quando os alunos do ICA-Instituto Central de Artes da e FAU-Faculdade de Arquitetura e Urbanismo pichavam paredes com frases do tipo "Queremos formação, não formatura." Frases como "Território Livre da UnB" escritas nas placas de trânsito. Sem falar que foi a invasão de agosto de 68 a que acendeu o estopim do pretexto para instalarem o AI-5 no país. Quando o deputado Márcio Moreira Alves faz um discurso, em 3 de setembro, de desagravo aos estudantes da UnB, o tempo fecha de vez com a decretação do AI-5 ? assinado lá no carma do Palácio do Catete carioca ? em 13 de dezembro de 68. Pareciam certos os temores discretos de Israel Pinheiro em relutar na cessão de um terreno tão próximo ao Plano para fundar a Universidade. Israel lembrava JK dos agitos estudantis no Rio, para tentar evitar essa "loucura do Darcy". Era premonição, pois a UnB resistiu.

Mas estamos aqui. São outros tempos para demonstrar a cidadania. Outros rumos para ser herói, sem tanto risco físico, mas sob a mesma emergência ética. Nenhuma geração está condenada a repetir, como farsa, uma geração anterior. Nem se achar impotente por idolatrar heróis anteriores. Há sempre uma resposta de dignidade, bravura e combate adequada a cada tempo. Temos que descobrir o heroísmo de hoje. A resistência de agora.

Se antes a ameaça era a brutalidade das armas hoje a universidade luta contra o tédio, a mesmice, o isolamento, o tecnicismo, a desmotivação ante um futuro sombrio… daí a importância permanente de acender o estopim de uma nova combustão pela vida… "rejuvenescer a juventude", bradava o querido professor Pompeu de Souza.

Parece estranho falar tanto da universidade quando vocês estão saindo dela. Não é estranho não! Vocês estão em uma cidade diferente. Estão em um país de uma pluralidade distinta do resto do mundo. Saem para um mundo onde a principal crise é a de valores. Técnica se adquire. Habilidade se treina. Informação se coleta. Mas os valores justificam o sentido da educação. E para quem vai viver nesta cidade, os valores originais da Universidade de Brasília precisam ser retomados para escapar da universidade covarde, omissa, tecnocrática, carreirista. Hoje vocês, profissionais, devem levar para a vida esta sede da diferença, da provocação que foi o nascimento de Brasília. Levar o espírito permanente de surpresa, avanço e renascimento. Sob todos os riscos.

A ferramenta poderosa da Comunicação coloca cada um de nós sob imensa responsabilidade. Jornais que têm cara de jornal, papel de jornal mas nada ou muito pouco de jornalismo. Revistas com periodicidade de revista, papel de revista mas pouco ou nenhum jornalismo. Rádios com tecnologia de ponta, porém asfixiadas, sem ar, no sagrado dever de informar. Tevês que possuem o melhor aparato de registro, efeitos e transmissão mas descompromissadas do mínimo senso do servir o serviço cidadão. Agências ? algumas até premiadíssimas ? com habilidades extraordinárias para vender, mas com baixa percepção da necessidade também de informar sobre produtos e serviços. E isso só se distingue quando temos valores. Está em nós a possibilidade de se estabelecer a diferença, embora a máquina esteja bem treinada para impedir, retirar nossa auto-estima, camuflar bem os canalhas. Nada vale um sucesso pago pela mentira. Diferente dos anos 60, as propostas hoje são muito mais tentadoras e as empresas de comunicação aprenderam a criar clones de sucesso para evitar perigosas surpresas.

Sabemos da violência do competir contra a persistência do compartilhar. Da imensa pressão que se faz sobre a liberdade individual para topar tudo por dinheiro, para aceitar as regras do jogo (senão vem outro e faz), para vencer na marra, levar vantagem sem escrúpulo do se dar bem etc. etc. etc..

Saibam que esta guerra, especialmente na comunicação, necessita da base solidária e inconformista que está na utopia da Universidade de Brasília. A partir de agora é saber que se nada será como antes, as coisas só serão do jeito que eles querem se você permitir.

O tal mercado de trabalho pode se apresentar angustiante, mas os filhos da utopia podem não ter o maior salário do planeta ou ser a "glória imediata" da profissão, mas estarão íntegros e integrais na construção de uma vida nova.

Não aceitar a submissão é dever, mais que direito. Ambiciosos no sentido maior da grandeza que enobrece o espírito humano, entre o poético e o profético saber que voar nasce do desejo de voar, as asas brotam no processo se o desejo for constante.

Jornais, revistas, agências, assessorias, rádios, publicações institucionais, tevês, portais de internet, enfim tudo o que use a comunicação exigirá sempre de cada um a diferença do talento, a especificidade do individual, a técnica, o lastro cultural, a bagagem de informação, o apetite para digerir dados e buscá-los; a agilidade no processamento destes dados para devolvê-los, apurados, trabalhados nas linguagens das reportagens, noticiários, informes, peças publicitárias, programas, roteiros em sons, imagens e palavras. Seremos contadores de histórias. Em sons, imagens e palavras. A idéia é a consagração da nossa mais sagrada matéria-prima. Mas tem uma distinção que nenhuma universidade dá ? mesmo esta, com tamanha história e tradição em valores ?, é o uso que cada um vai fazer do poder adquirido: a distinção do caráter, o senso ético para não trair a verdade mesmo que tal "estupidez romântica" impeça uma promoção, ou tamanha "insensatez poética" elimine um emprego ou uma vantagem econômica de momento… nada disso vale a pena se perdemos nosso respeito ao que de mais valoroso esta universidade criou: o compromisso radical com a liberdade e os valores que mantêm a vida plena, justa e solidária não só para alguns privilegiados, mas para todos os que merecem estar aqui.

O melhor desse canudo nas mãos é saber que cada um aqui chegou e daqui prosseguirá porque um dia vocês decidiram que teriam as suas vidas nas próprias mãos, seriam sujeitos da própria história: inconformados, únicos, originais, extraordinários, combativos e apaixonados. Um estudante ou um formando da Universidade de Brasília.

Ontem, hoje e para sempre…

…viver a vida como se a vida fosse servida em uma promessa de luta ? que convida… e se algo ou alguém impede, ataca, aprisiona ou desvia aquilo ou aqueles a quem devotamos vida… reage, renasce, revida…

O muito obrigado deste velho, mas não antigo, aliado dos novos sonhos que realizaremos juntos por esta cidade, com esta universidade, em nossa profissão. Assim seja… parabéns. Sou grato pela honra da escolha. Brasília, 22 de maio de 2002

(*) Jornalista, editor do Correio Braziliense, patrono dos formandos de 2001 de Comunicação da UnB, em cuja cerimônia de formatura proferiu o discurso reproduzido acima