Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Nasce uma paixão

TÍTULOS SOBRE IMPRENSA

Paulo Vinicius Coelho


Excerto de Jornalismo esportivo, de Paulo Vinícius Coelho, 120 pp. Editora Contexto, São Paulo, 2003; R$ 19,90; <www.editoracontexto.com.br>, tel. (11) 3832-5838


Em 1925, o futebol já era o esporte nacional. O Brasil havia sido bicampeão sul-americano em 1919 e, em 1922, faltavam apenas cinco anos para o início da primeira Copa do Mundo, mas o profissionalismo só chegaria ao país oito anos mais tarde. Guerra. Começar a pagar aos jogadores de futebol provocou grandes polêmicas. Em 1929, por exemplo, o Paulistano, clube que maior número de títulos estaduais possuía até então, decidiu não continuar a manter equipes de futebol. Seus dirigentes achavam absurdo pagar jogadores para que entrassem em campo e jogassem futebol. Até hoje há quem pense assim. Julgam que jogador de futebol ganha dinheiro demais para exercer atividade que quase não exige esforço intelectual.

Os sócios de futebol do Paulistano se rebelaram. Não achavam justa a decisão do clube de acabar com um departamento tão vitorioso. Como poderiam encerrar a prática do esporte que nesse momento ganhava tanta seriedade? Em 1927, o próprio presidente da República, Washington Luiz, comparecera ao estádio de São Januário para a cerimônia de inauguração. O estádio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, fora construído para a organização do Campeonato Sul-Americano. O Brasil interessou-se novamente pela organização do torneio três anos depois. O futebol já era uma festa.

No entanto, os jornais dedicavam espaços mínimos para o que já parecia ser a grande paixão popular. O Correio Paulistano, por exemplo, liberava apenas uma coluna para as matérias que incluíam futebol. E duas colunas para o turfe.

A febre do remo já estava superada. Esse esporte produziu boa parte da glória que passou para o futebol. A maioria dos clubes futebolísticos tradicionais do Rio de Janeiro nasceu das regatas. Não é à toa que três dos quatro grandes clubes cariocas têm a palavrinha no nome: Clube de Regatas do Flamengo, Clube de Regatas Vasco da Gama, Botafogo de Futebol e Regatas. Em 1926, o campeão carioca foi outro time proveniente das regatas: São Cristóvão de Futebol e Regatas. O Botafogo nasceu da fusão de um clube de futebol e outro de regatas. Nos primeiros anos do século, era o Clube de Regatas Botafogo o que mais chamava a atenção para o interesse do Rio de Janeiro em remo.

Os jornais, no entanto, dedicavam aos esportes o espaço que lhes era possível. Evidentemente não havia na época a cultura dos grandes jornais de hoje, com cadernos inteiros dedicados aos esportes. Havia pequenas colunas, mais por questão de espaço do que por falta de interesse. Como comprova a matéria coletada dos diários cariocas pelo jornalista João Marcos Weguelin, que pesquisou o Rio de Janeiro pelos jornais.

Campeonato Sul-Americano de 1919

A Rua ? 7/5/1919

Antes do campeonato, o football aqui já era uma doença: agora é uma grande epidemia, a coqueluche da cidade, de que ninguém escapa.

A Rua ? 8/5/1919

No “stadium”, como estava anunciado, realizou-se ontem, o “training” de apuro dos “scratchmen” brasileiros. (…) Os chilenos deram esta manhã, na rua Campos Salles, o seu “training” de apronto para o jogo de domingo. Os uruguaios treinaram, ontem, no campo do Botafogo. (…) Os argentinos estiveram ontem, à tarde, na rua Payssandu, praticando “training” individual.

Rio Jornal ? 11/5/1919

Iniciou-se hoje, às 15 1/2 horas, sob os melhores auspícios, o sensacional Terceiro Campeonato Sul-Americano de Football. Fazendo coincidir com esta temporada de “matches” internacionais, a festa de hoje teve ainda o seu brilho aumentado pela inauguração do stadium do Fluminense Football Club, o glorioso campeão tricolor brasileiro. A cerimônia de inauguração do stadium consistiu juntamente na inauguração do “match” internacional, para o qual foi construído o soberbo campo.

A Razão ? 30/5/1919

Sob os olhares ansiosos de uma multidão superior a 40.000 pessoas realizou-se ontem no stadium do Fluminense, o 1o match do campeonato sul-americano. Esse match que foi disputado entre os quadros chilenos e brasileiros despertou como aliás era natural o máximo entusiasmo e interesse levando mesmo a assistência a intermitentes explosões de júbilo e de contentamento. (…) O jogo transcorreu admiravelmente, vindo a terminar pela vitória do quadro brasileiro pelo score de 6 a 0.

O terceiro Campeonato Sul-Americano de Football decidiu-se ontem pela vitória dos jogadores brasileiros. Este acontecimento teve uma repercussão que se pôde considerar bem como continental, apesar das grandes coisas que neste momento ocupam a atenção dos povos, como o problema da paz, a ser resolvido pela resposta da delegação alemã à proposta dos aliados e a travessia aérea do Atlântico. Aqui, a impressão causada pela vitória dos nossos jogadores foi de um entusiasmo delirante. Desde muito cedo a população sentiu a sua atenção presa à grande peleja, que se ia travar no campo do Fluminense, crescendo à medida que se aproximava a hora do desempate sensacional. Havia também, para despertar a curiosidade pública, um eclipse do sol. Pouco se preocupou a cidade com isso. Um eclipse é uma coisa tão banal… (…) A Avenida Rio Branco, em um certo trecho, ficou literalmente cheia, com o trânsito perturbado. A febre com que se acompanhava o match era crescente. O jogo, indeciso no primeiro tempo, empolgava cada vez mais toda a gente.

? Está duro! Zero a zero!

? Mas vencem os uruguaios!

? Qual! Não venceram até agora, não vencem mais. Os brasileiros tomaram o pulso aos uruguaios.

? Qual!

? Não! As vantagens agora são nossas.

E assim decorreu toda a tarde, sem que o caso se decidisse. Afinal, quando o entusiasmo público já tinha chegado ao seu período agudo, chegou a grande nova: os brasileiros venceram por um contra zero. Foi um estrugir formidável de palmas e de bravos, que eletrizou toda a cidade.

? Acabou-se. Agora não perdemos mais a dianteira! Perdemos os campeonatos anteriores! Agora seguramos o cinturão de ouro e não o largamos mais. E, com essa convicção, toda gente voltou para casa, depois de um grande dispêndio de energia nervosa.

O Imparcial ? 26/5/1919

(…) Só mesmo a falta de sorte nos remates não permitiu ao team brasileiro conquistar o ponto que lhe assegurasse o triunfo. Enfim, nova luta será travada para o desempate do campeonato e, se desta vez, não desenvolvendo jogo bem apreciável e tendo o adversário obtido a vantagem de 2×0, o team brasileiro ainda conseguiu dominá-lo e empatar a peleja, em condições normais deve produzir jogo mais eficiente e fazer figura mais brilhante.

O Imparcial ? 30/5/1919

(…) Pela primeira vez tivemos em nosso continente um embate travado com um ardor inacreditável por parte dos combatentes e que findou do modo mais honroso e nobre para nós brasileiros. (…) Os brasileiros depois de uma peleja renhidíssima, como até então não se realizara, abateram, ontem pelo score de 1×0 o formidável scratch uruguaio, que na opinião unânime dos entendidos representava o expoente máximo do football oriental.

A Noite ? 29/5/1919

A concorrência, se não era colossal como a de domingo, era seletíssima, notadamente pelo número de senhoras. A animação, extraordinária desde 11 horas, tornou-se como poucas vezes tem acontecido ao aproximar-se a hora do jogo. Um alarido unânime atroava e nos morros vizinhos a multidão agitava bandeiras nacionais, por entre vivas. (…) O jogo de hoje era já de desempate e, assim, de graves responsabilidades para ambos os teams. (…) Brasileiros: Marcos, Pindaro e Bianco, Sergio, Amilcar e Fortes, Millon, Néco, Friendenreich, Heitor e Arnaldo. (…) 1? Half Time: Brasileiros 0 goal Uruguaios 0 goal ? 2? Half Time: Brasileiros 0 goal Uruguaios 0 goal ? Nova Prorrogação: 1? goal brasileiro Hurrah! Friedenreich! Hurrah ? Brasil!

Não havendo resultado nos trinta minutos de prorrogação foi pelo juiz ordenada a segunda prorrogação. A saída foi dos uruguaios e os brasileiros atacam, obrigando os adversários a um corner. Pouco depois Arnaldo é dado como off-side, mas os brasileiros não desanimam. Néco corre pela direita, centra, sendo a bola recebida de cabeça por Heitor, que a passa a Friedenreich. Este, com um shoot de meia altura, ao meio do poste, marca o 1o goal brasileiro. Hurrah! Friedenreich! Hurrah ? Brasil! (…) Final: Brasileiros 1 goal Uruguaios 0 goal ? Com este resultado foram os brasileiros aclamados campeões da América do Sul.

[…]

A população, portanto, se apaixonou ainda mais pelo futebol depois da primeira conquista da Seleção Brasileira. Seleção que havia disputado seu primeiro jogo em 1914, em amistoso contra o Exeter City, modesto time inglês. Venceu por 4 x 0. Mas foi só a partir do começo dos anos 40 que o futebol ganhou os relatos apaixonados em espaços cada dia maiores. Nos diários cariocas, especialmente. E com colunistas como Mário Filho e Nelson Rodrigues.

Mário Filho era o irmão mais velho de Nelson. Não dizia com todas as letras, mas era rubro-negro de coração. Torcedor do Flamengo doente, mas capaz de relatos de incrível emotividade com ídolos de outros times. Foi ele o fundador do Jornal dos Sports, no início dos anos 30, na mesma época em que o futebol ganhou de vez cara de profissional.

O Jornal dos Sports acompanhou a primeira grande crise do futebol brasileiro. A instauração do profissionalismo criou uma cisão tanto no futebol do Rio quanto no de São Paulo. Em 1935 e 1936 houve dois campeonatos simultâneos em São Paulo. No Rio de Janeiro, a crise começara em 1933, ano em que se firmou o profissionalismo. O Botafogo, campeão em 1932, jogou entre os amadores nos três anos seguintes. Ganhou os três títulos e autoproclamou-se tetracampeão carioca. Mas os demais campeonatos continuaram a suceder-se. Em 1933, o Bangu conquistou pela primeira vez um título estadual ? só voltaria a ganhar em 1966. Em 1934, o Vasco foi o campeão. Em 1935, ganhou o América seu sexto Campeonato Carioca. Em 1936, pelo quarto ano seguido, os clubes não chegaram a nenhum acordo. E a cisão dividiu ainda mais o futebol do Rio de Janeiro. Tanto que de um lado o campeão foi o Fluminense, de outro o Vasco, clubes que antes estavam do mesmo lado.

Os jornais cariocas acompanharam tudo como puderam. Com pouco espaço e dando mais destaque ao que acontecia dentro de campo do que à briga política entre todos os times. Isso até a pacificação, em 1937, quando entrou na moda o melhor estilo carioca de divulgar o futebol.

Para abrir o primeiro campeonato unificado depois de quatro anos de grandes confusões, o jogo escolhido foi Vasco x América. A partida foi marcada para o estádio de São Januário, no dia 31 de julho. Vasco e América entraram em campo juntos e o Vasco venceu por 3 x 2. Daí em diante, o Brasil inteiro passou a chamar o clássico entre as duas equipes de “Clássico da Paz”. Era só um lado do romance que o Brasil, em especial o Rio de Janeiro, aprendeu a imprimir ao jornalismo esportivo.

Romance e jornalismo

O jogo entre Botafogo e Fluminense é chamado de “Clássico Vovô”. Porque é o clássico entre os clubes mais antigos do futebol do Rio: o Fluminense, fundado em 1902, e o Botafogo, em 1904. Sim, o Flamengo foi fundado em 1895 e o Vasco em 1898, mas ambos com dedicação exclusiva às regatas até que o Flamengo iniciasse a prática do futebol, já em 1912 ? o Vasco entrou na onda em 1923.

O jogo entre Flamengo e Vasco passou a ser chamado nos anos 40 de “clássico dos milhões”, por produzir milhões de cruzeiros nas bilheterias dos estádios. Flamengo e Fluminense? Bem, o “Fla-Flu” nasceu quarenta minutos antes do nada, como diria Nelson Rodrigues. E não há clássico, em canto nenhum do Brasil, que reúna tanta história. Fruto do jeito carioca de fazer jornalismo. Talvez nem seja jornalismo. As crônicas de Nelson Rodrigues e Mário Filho tinham vida própria, nem bem podiam ser chamadas jornalismo. Dizia Mário Filho no texto que reverenciava o ponta-direita do Fluminense, no final dos anos 50: “Telê joga os noventa minutos. Dito assim, parece simples. Todo jogador joga noventa minutos. Seria assim não fosse Telê. Telê é o ponteiro dos segundos. Não pára nunca!”

Também não podia ser jornalismo as crônicas que Nelson Rodrigues escrevia depois de virar-se para Armando Nogueira, no Maracanã dos anos 50, e perguntar-lhe: “O que foi que nós vimos, Armando?”

A miopia de Nelson Rodrigues tirava-lhe a possibilidade de enxergar qualquer coisa em jogo de futebol, ainda mais em estádio grande como o Maracanã. E daí? Romance era com ele mesmo. Crônicas recheadas de drama e de poesia enriqueciam as páginas dos jornais em que Nelson Rodrigues e Mário Filho escreviam. Até jogo violento, como Bangu e Flamengo, que decidiu o Campeonato Carioca de 1966 ? a partida não completou o tempo regulamentar porque o jogador Almir, do Flamengo, armou grande confusão ? era por eles tratado com rara dramaticidade. Essas crônicas motivavam o torcedor a ir ao estádio para o jogo seguinte e, especialmente, a ver seu ídolo em campo. A dramaticidade servia para aumentar a idolatria em relação a este ou àquele jogador. Seres mortais alçados da noite para o dia à condição de semideuses.

A verdade? Ora, a verdade. Armando Nogueira costuma dizer que viu Pelé pela primeira vez no vestiário do Maracanã depois de um jogo entre Santos e América.

? Quem é o melhor centroavante do Brasil?, Armando perguntou-lhe.

? Eu, Pelé respondeu.

? E o melhor meia-esquerda?, perguntou em seguida Armando Nogueira.

? Eu também, disse Armando Nogueira.

Armando conclui o pensamento, que já virou clássico, dizendo que não sabia se estava diante de um negrinho cheio de si ou de um eleito dos céus. E não demorou muito tempo para que a resposta lhe aparecesse diante dos olhos.

A mesma história está publicada em crônicas de Nelson Rodrigues. História bem contada, com boa pitada de romance. Coisas assim fizeram de Pelé mais do que o maior jogador de futebol de todos os tempos. Transformaram-no em eterno mito.

Ora, a verdade. Entre a lenda e a verdade, a literatura vai sempre preferir a lenda. O jornalismo deve preferir a verdade. O que pode indicar que o tipo de crônica citada acima não era, exatamente, jornalismo.

O espaço do romance e do fato

O fato é que há espaço para tudo e todos. O que se espera habitualmente de todo grande jornal é a mistura dos dois estilos. É impossível ler Nelson Rodrigues sem dar-se conta da imprecisão de seus relatos de jogos. É só olhar, por exemplo, a maneira como descreve o terceiro gol do Brasil no Mundial do Chile, em 1962: “Djalma Santos pôs a bola na área e Vavá, com seu peito de aço, meteu a cabeça nela, fazendo 3 x 1”.

A descrição correta deveria incluir a falha do goleiro Schroiff. E contar que, de fato, Vavá meteu o pé direito na bola, não a cabeça. Nelson Rodrigues, que já era míope, não podia ver o que o rádio lhe contava a quilômetros de distância.

A imprecisão diminuiu bastante nas páginas dos anos 70 em diante, graças ao compromisso da imprensa de contar a verdade. O que exclui o mito. O resultado é, muitas vezes, uma crônica tão desprovida de paixão que é capaz de jogar na vala comum atletas que certamente já merecem lugar na história. Gente como Rivaldo, Ronaldo, Romário, Bebeto, Dunga. Gente que deu ao país o quarto e o quinto título mundial, e que jamais foi tratada com a reverência dedicada aos campeões de 1958, 1962 e 1970.

O problema, evidentemente, é que o que é verdade, o que é opinião e o que é lenda se misturam e nem todo mundo é capaz de diferenciar o que é jornalismo do que não é. Mas a maneira como os principais jornalistas esportivos de cada tempo se referem aos jogadores de cada época produz distorções difíceis de corrigir.

O capitão do primeiro título mundial do Brasil era o zagueiro Bellini, do Vasco. Nunca foi excepcional. Era famoso por jogar a sério, por dar de bico quando fosse preciso e errar pouquíssimas vezes. Quando viajou para a Suécia, apostava-se que seria o reserva de Mauro Ramos de Oliveira, do São Paulo, muito mais técnico do que ele.

Não foi. Ganhou a posição durante os treinos porque o técnico Vicente Feola apostava na formação de uma dupla que já era conhecida do Vasco. Bellini era duro, um botinudo, que dava de bico mesmo. Orlando, seu colega de defesa, era clássico. Desarmava com elegância e saía para o jogo com desenvoltura.

Mas Bellini era homem bonito. Encantava as mulheres e eternizou o gesto do capitão do time vencedor da Copa do Mundo de erguer a taça acima da cabeça. Nenhum outro capitão a tinha levantado antes dele. Os jogadores contentavam-se em segurá-la ao lado do peito. O gesto de Bellini, triunfante, elevando-a para que os fotógrafos pudessem fotografá-la, inspirou jornalistas como Nelson Rodrigues e Mário Filho a produzir crônicas enormes e cheias de emoção, que o celebrizaram como zagueiro elegante, mito do futebol brasileiro. Passou a ser tratado com reverência, como herói nacional. Nada mais justo para quem alçou a taça de campeão mundial para o Brasil pela primeira vez na história.

Em 1994, a Seleção vivia jejum de 24 anos sem títulos mundiais. Desde que Pelé deixou de vestir a camisa amarela, em 1971, o Brasil nunca mais havia chegado à final. Chegou, na Copa do Mundo dos Estados Unidos, em 1994, num time famoso pelo estilo pragmático. O técnico Carlos Alberto Parreira orientava seus jogadores a tocar a bola pacientemente, sem pressa, até que surgisse a chance de dar o bote.

A imprensa da época taxava o estilo de Parreira de “europeu”. Parreira rebatia afirmando que jogava com a bola no chão, com uma linha de defesa de quatro jogadores e muito trabalho técnico.

Parreira tinha razão. Seu time não tinha nada de europeu. Tinha, isto sim, muita paciência, com que o público brasileiro não estava acostumado. Paciência que faltava à imprensa para avaliar com exatidão o que estava acontecendo.

Faltava-lhe paciência para avaliar também o desempenho do capitão do tetra. Dunga deixou a campanha do Brasil na Copa do Mundo de 1990 como símbolo de uma era fracassada. A seleção treinada por Sebastião Lazaroni fez o pior trabalho em Copa do Mundo desde o fiasco de 1966. Dunga só voltou a ser convocado em 1993, por Carlos Alberto Parreira, que precisou de boa dose de convicção para mantê-lo na equipe apesar de todas as críticas.

Dunga chegou à Copa de 1994 como principal líder da equipe. Mas sem a faixa de capitão, que só caiu em seu braço esquerdo depois que Ricardo Gomes sofreu lesão muscular, em amistoso contra El Salvador. E depois que Raí, capitão nos jogos do Brasil contra Camarões e Rússia, os dois primeiros do Mundial, perdeu espaço na equipe no intervalo da terceira partida, contra a Suécia. Dunga virou capitão do time no segundo tempo do jogo. Não largou mais a braçadeira. Também nunca deixou de ser capitão ressentido. Fez o gol do título, na disputa por pênaltis, fato raramente lembrado nos relatos sobre o tetracampeonato. Depois do pênalti convertido por Dunga é que Roberto Baggio chutou para o alto e deu o título ao Brasil.

Na hora de receber a taça, Dunga demonstrou toda sua mágoa. Apanhou-a das mãos do presidente do comitê organizador, Alan Rothenberg, levantou-a sobre a cabeça e gritou, olhando fixamente para os fotógrafos brasileiros: “Esta é para vocês, seus traíras, filhos da puta!”

Os fotógrafos representavam, na cabeça de Dunga, toda a imprensa brasileira, que tanto ressentimento causara a ele e aos demais jogadores da Seleção Brasileira. Ele retomou sua vida habitual. Passou a ser reconhecido como líder da equipe, mas jamais mereceu o tratamento de lenda do futebol mundial.

O mesmo vale para Ronaldo na campanha do Mundial de 2002. Poucos jogadores na história do futebol mereceram tanto o tratamento de lenda quanto o camisa nove da Seleção do Penta. Sua história entre a final do Mundial de 1998 e a conquista do título, em 2002, valeria um filme. Daqueles que, diante da tela, o espectador diria: “Isso só acontece no cinema”.

Na tarde de 12 de julho de 1998, deitado em seu quarto no Castelo de la Grande Romaine, em Ozoir la Ferrière ? região metropolitana de Paris ? Ronaldo tirou um cochilo. Acordou com toda a delegação brasileira ao seu redor e a notícia de que havia sofrido convulsão. Foi levado às pressas para um hospital da capital francesa, medicado e conduzido rapidamente para o vestiário do estádio de Saint-Denis, palco da decisão entre França e Brasil.

Nas tribunas de imprensa, a papeleta com as escalações oficiais do Brasil e da França indicava Ronaldo na reserva de Edmundo. Jornalistas franceses se levantavam, atônitos, procurando os brasileiros para saber o que se passava. O clima de total perplexidade tomou conta do mundo inteiro. Ronaldo jogou, embora praticamente não tenha sido visto em campo. Aquele futebol não era o dele.

Em novembro de 1999, Ronaldo precisou fazer cirurgia no joelho direito, que tanto o fizera sofrer durante todo o campeonato na França um ano antes. Em todo o decorrer do Mundial, bolsas de gelo foram utilizadas para tratar a lesão. E, ainda assim, ele marcou quatro gols. Fez uma bela Copa do Mundo. Em abril de 2000, a volta estava marcada. Ronaldo entrou em campo contra a Lazio, na decisão da Copa da Itália. Jogou seis minutos e caiu sozinho. O diagnóstico: ruptura total do tendão patelar do joelho direito.

Passou dois anos recuperando-se da lesão e voltou em amistoso promovido por ele próprio, em agosto de 2001. O jogo era parte de seu cargo de embaixador honorário da Unicef e destinava dividendos para as crianças da África. Ronaldo jogou alguns minutos, fez um gol. Nos meses seguintes, entrou na equipe e dela saiu, até o final do campeonato italiano. No final da campanha da Inter, terceira colocada no torneio nacional da Itália, Ronaldo havia marcado sete gols em nove partidas. Média assustadora para um jogador em fase de recuperação. O técnico da Seleção, Luiz Felipe, decidiu levá-lo ao Mundial, em que Ronaldo conseguiu ser artilheiro com oito gols, quebrando o tabu de seis mundiais ? o artilheiro só conseguia marcar seis vezes. Conquistou também o título de pentacampeão e o prêmio de melhor jogador brasileiro no campeonato.

Mereceu o apelido de “Fenômeno” e foi extremamente elogiado. Mas ninguém escreveu uma única crônica sobre a incrível proeza de Ronaldo. Toda a imprensa estampou os feitos do Fenômeno, em relatos repletos de… realidade! Realidade demais para história tão irreal.

Nos relatos sobre o tetra e sobre o pentacampeonato faltou a dramaticidade que sobrava nas coberturas das campanhas de 1958, 1962 e 1970. Talvez tenha faltado simplesmente Nelson Rodrigues.

A noção de realidade que o jornalismo esportivo carrega nos tempos atuais torna a cobertura esportiva tão brilhante quanto qualquer outra no jornalismo. O ponto-chave é que, muitas vezes, tal cobertura exige mais do que noção da realidade.

Não é à toa que alguns dos melhores jornalistas brasileiros começaram a carreira no jornalismo esportivo. Joelmir Beting trabalhou com esportes nos anos 50. Desistiu por não conseguir controlar o impulso de torcer para o Palmeiras. Armando Nogueira foi jornalista esportivo antes de assumir a direção da Rede Globo. Alberico Souza Cruz também trabalhou com esportes.

Esse tipo de cobertura sempre misturou emoção e realidade em proporções muitas vezes equivalentes. É possível fazer uma brilhante matéria de economia falando de futebol. A crise do Flamengo, incapaz de saldar dívidas e de manter seu orçamento no azul há mais de dez anos, pode render peça jornalística primorosa e repleta de realidade sobre a administração dos clubes do país.

A maneira como os campeonatos do Brasil são organizados, sempre levando em conta algum acordo político entre um dirigente da CBF e outro de alguma minúscula federação estadual, poderia valer o prêmio Esso de cobertura política, em matéria também repleta de realidade.

Análise tática sobre jogo de futebol vai sempre valer relatos dignos de fazer o torcedor mais fanático se arrepiar tanto quanto a descrição perfeita de partida de futebol. A conquista do título, a jogada brilhante, a história comovente sempre fizeram parte do esporte. E sempre mereceram o tom épico que desapareceu das páginas de jornais e revistas e dos relatos de emissoras de rádio e de televisão.

Lembro-me do dia em que tive de escrever o texto do pôster do Palmeiras, campeão paulista, que quebrava jejum de 17 anos sem conquistas. O texto não tinha mais do que dois mil caracteres, não exigia nenhum esforço de apuração, ao contrário, por exemplo, de outra matéria em que o árbitro José Aparecido de Oliveira denunciara um esquema de corrupção que misturava árbitros brasileiros e argentinos nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 1998. Foram os dois mil toques mais difíceis de escrever. Porque precisavam de uma dose de emoção que nenhum manual de redação é ou será capaz de ensinar. A emoção também faz parte do jornalismo, como bem mostraram as crônicas de Nelson Rodrigues no passado. E alguém precisa fazê-la retornar ao cotidiano das páginas esportivas. Mesmo que alguns mitos da história do esporte brasileiro, como Dunga, Romário e Ronaldo, tenham ficado perdidos num tempo restrito à descrição nua e crua da realidade.