Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Naturalmente nu

 

Fabiano Golgo, de Praga

Disse Sérgio Rouanet (ex-Ministro da Cultura e criador de uma lei que deveria beneficiar os projetos culturais, atual embaixador brasileiro na bela República Tcheca) que a pornografia generalizada que hoje habita as emissoras de TV e as revistas brasileiras tem raízes no fim da ditadura militar e no conseqüente fim da censura, promulgada nos primeiros dias do governo band-aid de José Sarney.

Rouanet equivocadamente "cita" palavras do presidente tcheco Vaclav Havel, que passara anos na cadeia e teria dito, ao sair, que a "liberdade traz abusos da própria". (O dramaturgo-dissidente declarou, na verdade, que não sabia o que fazer com a recém-conquistada liberdade, pois, depois de quatro anos encarcerado, o indivíduo se acostuma com outros decidindo até sobre os horários para exercer suas necessidades fisiológicas.) Havel também apresentou uma variação dessa frase, mais tarde, onde concluía que "quem fica preso muito tempo não sabe o que fazer quando é liberado; reentra claudicante no mundo, tem que reaprender a liberdade’.

Vale-tudo

Segundo Rouanet, no momento em que "os brasileiros puderam agir sem medo de serem reprimidos pelo grande poder, perderam um pouco o rumo das coisas". Um amplo debate envolvendo convidados do embaixador, brasileiros de passagem por Praga, trouxe à tona todos aqueles exemplos que conhecemos muito bem: Ratinho, Carla Perez, Tiazinha, bundinhas infantis em concursos que devem ser a alegria dos pedófilos, Xuxa/Sacha, a celebração das cirurgias plásticas. Uma convidada do embaixador retrucou, pois rechunchara os seios e passara o roto-rooter nas gordurinhas da idade, sem arrependimento, mas, obviamente "por culpa dos homens, que exigem que a mulher seja assim se quiser sobreviver à concorrência".

Se formos quebrar em miúdos os argumentos do belo jantar à beira do rio Vltava, no enorme apartmento art nouveau do motorista da embaixada, Sebastião Oliveira. vamos encontrar alguns pontos sem boa fundamentação. (Oliveira carrega cartão de visitas estampado com attache e promove anualmente, por conta própria, o "Carnaval das Mulatas Brasileiras", para deleite dos tchecos.) É o caso do vale-tudo pós-fim da censura. Basta lembrar que as pornochanchadas não apenas eram aceitas, como pagas pela Embrafilme dos milicos, além de realizadas por boa parte dos supostos bons cineastas da safra nacional, cujas mansões foram construídas na mesma época. Vera Fischer já provocava a boa classe média na década de 70. Flávio Cavalcanti, Wilton Franco e tantos outros já exibiam sua quota semanal de anormalidades alavancadoras de audiência. Gil Gomes, Afanásios et cetera já pagavam o leite dos filhos com a exaltação da podridão nacional. O "povo", em contraposição à "elite", já freqüentava a baixaria via mídia, mesmo que pudesse consumir menos e que o Ibope só tivesse sua atuação remunerada regularmente pela Globo.

Audiência impassível

Hoje em dia tudo hoje é mais visto, transformado em algo grandioso, "enormizado" pelas batidas técnicas de comunicação de massas recicladas. Lembro que meus avós assistiam a Globo por hábito. Na época não havia o controle remoto e a Globo prometia qualidade e a vida era dura mesmo… Luciano Huck, em um lapso de percepção, se deu conta de que "as pessoas trocam de canal, mas sempre voltam pra Globo, por medo de estarem perdendo alguma coisa". Isso mantém os altos preços da publicidade na emissora, mesmo que desproporcionais à audiência, se comparados ao que custam pelo mesmo tempo e mesmos índices nas outras estações. Os publicitários sabem disto e bancam o investimento.

Acontece que essa constatação deveria levar a Globo a oferecer bons produtos, ante a certeza de que sai na frente, de qualquer jeito. A população menos crítica ainda confia no padrão Globo de qualidade. Se os Marinho oferecessem produtos bem acabados, com conteúdo mais edificante, manteriam a audiência, mesmo que os sedentos por violência e/ou defeitos físicos migrassem para o SBT e Record. Se o Castelo Rá-Tim-Bum, por exemplo, fosse apresentado na Globo, teria audiência tão grande, se não maior, que a loura-babá do momento.

Ana Maria Braga é a prova de que, ao tentar atingir o povão, a Globo se deu mal. A apresentadora trouxe minguados (para padrões globais) telespectadores da Record, segurou alguns outros que têm a Globo como painel de fundo para o cotidiano, mas afugentou os que costumavam sintonizar o canal naquele horário. Estavam ali para as budices-pop de Miguel Fallabela e a reprise daquela novela que já cheirava a mofo na primeira apresentação. Pura falta de visão de estrategistas globais que só sabem ler números.

E a pornografia? Bem, esse ponto é complicado, pois depende da sensibilidade de cada um. Aqui na República Tcheca – que passou 40 anos sob totalitarismo comunista e antes disso 6 anos sob Hitler – a publicidade explora a sensualidade da mesma forma que no resto do mundo. E a TV mostra os mesmos disque-sexo de final de noite. Um programa de previsão do tempo, que passa às 22h30 na emissora privada TV Nova, mostra diariamente, através de uma janela feita em computação gráfica, uma moça ou um rapaz completamente nus, que gradualmente se vestem de acordo com as condições meteorológicas do dia seguinte. Nas vidraças da janela estão as temperaturas máxima e mínima, a umidade relativa do ar e os níveis de pólen para os alérgicos.

Detalhe: assisti inúmeras vezes a esse programete de 5 minutos ao lado de senhoras de idade, senhores provectos e crianças pequenas. Não movem uma sobrancelha e nunca ouvi reação negativa à nudez – inclusive a do varão, expondo sem pudor o que é tabu mundo afora: seu pênis em estado flácido!

Achei surpreendente que o programa tenha surgido sem ter causado o menor escândalo, sem que nenhuma entidade de proteção às crianças, à moral, ou "senhoras de Santana" locais tivessem mandado uma carta sequer. Na verdade, uma telespectadora de 52 anos mandou uma carta ao diretor da emissora, Vladimir Zelezny, protestando contra o fato de que as mulheres são 51% da população, mas os modelos masculinos só aparecem a cada três mulheres, em média, contrariando a proporção que seria democrática. Na semana seguinte, um gay mandou acrescentar outros 10% de incidência de rapazes, em nome da quantidade projetada de homossexuais.

Performance sexual

Perguntei à avó de um amigo se ela não se preocupava com o fato de sua neta de 7 anos estar assistindo a isso. Com olhar de surpresa, perguntou-me em quê a nudez iria perturbar o crescimento saudável da menina. Falei em erotização precoce e ela me cortou antes que terminasse a frase, dizendo que sexo é tão natural quanto alimentar-se e que cabe aos familiares mostrar que se deve tomar cuidado com gravidez e doenças. Outro exemplo: a capa de recente edição da revista Spy traz um famoso apresentador de TV com sua famosa esposa-atleta. Ela nua, com os seios acobertados pelos dedos do marido. Ele ainda tem a língua na orelha da esposa. Tudo em família e ambos com um sorrisão de casal apaixonado.

Os tchecos se excitam tanto quanto o resto do mundo com esse tipo de cena, apenas não se perturbam. Talvez o fato de a religião não entrar no cômputo da imagem a ser propagada em sociedade (apenas 28% da população declara fazer parte de alguma religião). Talvez porque a sexualidade aberta não cause conseqüências negativas à sociedade (12 casos de estupro em 98, nove dos quais acusados pela namorada ou esposa, um por homossexual e um por uma moça de origem russa em relação a um conterrâneo; 437 casos de HIV-positivo desde 1989). Um estudo da União Européia mostrou que os tchecos praticam sexo com mais freqüência que qualquer outra nação do continente (6 vezes por semana, e isso diluído pelos milhares que não têm mais idade para o ato). Diz um ditado local que o melhor para apartar uma briga ou acabar com o mau humor é uma visita aos lençóis.

Os tchecos não têm mar e enchem as praias de rio nos meses de sol. É mais que comum ver gente de todas as idades e de todos os graus de pelancas em absoluta nudez, ou pelo menos com os úberes à mostra. Não são praias especiais, que separam os não-adeptos. Ali estão bebês e bisavós, sem o menor complexo.

O que os tchecos não aceitam facilmente é violência. Ou o mau gosto de anormalidades físicas sendo desfiladas como atração. Um programa jornalístico quis mostrar como vivem os deficientes mentais na Rússia e a emissora estatal recebeu uma enxurrada de cartas protestando contra o foco das câmeras. As cartas pediam que esse tipo de documentário fosse apresentado, mas que as imagens fossem à distância, com os fatos em primeiro plano. O que conta não é a quantidade ou profundidade das cenas ginecológicas apresentadas, ou as de violência. O que conta é o povo que as assiste.

O brasileiro parece ter sido deformado com o tempo (ou talvez não tenha se refinado com o tempo) para buscar um tipo de entretenimento de maior complexidade, com conteúdo menos apelativo, mesmo que o sexo e a violência continuem nos arredores. O Brasil precisa ver a sua cara, mas não pode é banalizar a violência que aflige nossa terra. Não pode é espetacularizar a violência. Os horrores que ocorrem Brasil afora diariamente devem ser tratados com seriedade, não como mais um momento de artificial estupefação. São fatos que devem servir para chocar nossas consciências, não para levantar os números do Linha Direta. É muito estreito o intervalo que separa a arrogância das elites em querer decidir o que é bom gosto e o direito daqueles que querem circo e circo.