Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Nefastos nas asas da infâmia

(*)

Alberto Dines

 

“A GRANDE DELINQÜÊNCIA pode acabar com a democracia.” Quem o disse foi o juiz espanhol Carlos Jiménez Villarejo, que preside a recém-criada Fiscalía Anticorrupción, numa entrevista a El País (30/8/98).

Na Rússia, a grande delinqüência tem nome, cara, endereço – a máfia. Enroscada no poder econômico e no poder político, chantageia, mata, esfola. O assassinato da deputada liberal Galina Staroivoitova é uma amostra de seu poder. Se vivo fosse, o poderoso chefão Al Capone morreria novamente. De despeito: a pátria do “socialismo real” conseguiu produzir em prazos fulminantes a mais perfeita clonagem do gangsterismo de Chicago. A democracia russa só será viável quando este terrorismo for dominado e suas ramificações extirpadas do Estado, da sociedade e da mentalidade russa.

A grande delinqüência brasileira ainda não mata. Mas chantageia e esfola. Egressa da ditadura, habituada ao vale-tudo, transita com igual desenvoltura pelos porões do mundo empresarial e político. Faz ponto em Miami, o grande antro da delinqüência continental. Diferente da máfia russa, goza de imunidade parlamentar. Transgênica, camufla-se com mantos de certas confissões religiosas geradas na ignorância e na miséria. Acostumada à impunidade, diplomada nas táticas de sobrevivência na selva, sabe enfiar-se nas franjas mais obscuras do espectro ideológico. Até apresenta-se como “progressista”.

O grande trunfo da grande delinqüência brasileira – sua vantagem competitiva – é a capacidade de infiltrar-se na imprensa, manipulando ingenuidades, inexperiências e, sobretudo, a incontrolável vocação para “fazer barulho”. Acende estopins e esconde-se na moita. Exemplo disso é a divulgação irrestrita do papelucho de Cayman, desde o início comprovadamente falso. Não obstante, foi publicado com destaque ao longo de duas semanas, seu teor chicaneiro validado pela reiteração e por canhestras reservas.

A grande imprensa publicaria informações de uma carta anônima ou documento apócrifo envolvendo a honradez e a dignidade de um dos membros das ilustres famílias que controlam a mídia brasileira? Algum parlamentar a leria em plenário? Acusações fraudulentas e caluniosas sobre comissões, sobre-preço ou isenções de importação de papel, tráfico de influência e conflitos de interesse envolvendo empresas, empresários, executivos da mídia poderiam ser plantadas nas colunas politico-mundanas de nossos jornais como foram aquelas que envolveram quatro homens públicos de primeira grandeza?

A grande delinqüência pode acabar com a democracia. Quando consegue, como aqui, manter-se acima de qualquer suspeita e, ao mesmo tempo, colocando sob suspeita todos aqueles que deseja destruir. Nossa cosa nostra fere frontalmente o Estado de Direito, avacalha a majestade da Justiça e compromete a credibilidade das demais instituições, inclusive a imprensa.

Outro exemplo desta tríplice perversão é o grampo do BNDES. As fitas resultaram de uma ação criminosa, o seu teor foi juntado a um inquérito policial que servirá de base a um processo judicial cujo sigilo é inviolável.

A despeito destas injunções legais, as fitas foram divulgadas. Digamos que a defesa do interesse público sobreponha-se à defesa da privacidade individual. Mas publicar um documento desta importância de forma resumida, descontextualizada e precária é ignorar as mais comezinhas responsabilidades jornalísticas.

Quando a TV americana divulgou na íntegra as quatro horas do depoimento do presidente Clinton não o fez por causa do ibope local – grandes porções eram chatíssimas -, mas para preservar a integridade do documento. Revistas e jornais que o resumiram usaram de habilidade e competência para resguardar seu sentido e impedir mal-entendidos. Além disso, o próprio Legislativo americano encarregou-se de disseminar a versão integral.

Se as revistas de informação que divulgaram as fitas do BNDES não dispõem de recursos para uma publicação extensiva e criteriosa de uma peça desta importância que mudem de ramo – o nicho da imprensa marrom está vazio. Em cima destas transcrições sumarizadas, obtidas a partir de fitas editadas pelos próprios grampeadores, o Senado fez aquela sessão “histórica” onde alternaram-se os torquemadas de fancaria com as patacoadas gauchescas (nada a ver com a grande oratória gaúcha).

Depois do dramático fim de semana à espera que alguma publicação conseguisse contextualizar os excertos anteriores, o presidente confessou: “Precisamos meditar sobre o que significa dar asas à infâmia.” (Jornal do Brasil, 24/11/98) Dia seguinte, FHC alongou-se em observações sobre a mídia em geral e a brasileira em particular (publicadas em 25/11/98 resumidamente – outra infração).

Os reparos presidenciais não são novos, desdobram e explicitam outros, mais extensos, que constam de dois livros recentes: O presidente segundo o sociólogo, de Roberto Pompeu de Toledo (Cia. das Letras, maio de 1998, pp.165-186), e O mundo em português, um diálogo (conversas com Mário Soares, Editora Paz e Terra, agosto de 1998, pp. 87-98).

A novidade conceitual e drástica da última fala é que o chefe da nação finalmente abandonou a tese dos boys-scouts de que a mídia deve adotar a auto-regulamentação nos moldes dos publicitários. Quando tornou pública essa suprema ingenuidade, FHC levou o merecido piparote (Folha, Ilustrada, 1/11/98). Agora, corrigiu-se e adotou a posição preconizada pelos jornalistas através de sua Federação: impõe-se uma nova Lei de Imprensa, democrática e responsável. Auto-regulamentação da imprensa eqüivale a convocar os nefastos para dirigir a Receita Federal (a metáfora original menciona Al Capone; de autoria de Conrad Black, empresário inglês que reclamou da Press Complaints Comission).

Para que a imprensa não seja cúmplice involuntária dos grandes delinqüentes que cevam-se na democracia é imperioso dinamizar a tramitação da nova redação da Lei de Imprensa, de autoria do deputado Vilmar Rocha (PMDB-GO). E instalar na abertura da nova legislatura o Conselho de Comunicação Social, órgão auxiliar do Congresso Nacional previsto na Constituição de 88 e já regulamentado.

Os Pinochet sem farda não feriram apenas os funcionários demissionários, o PSDB e o governo. Feriram o Estado. Tentaram um golpe para lembrar os 30 anos do AI-5. Nas asas da infâmia machucaram a democracia.

(*) Copyright Folha de S. Paulo, 28/11/98