Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Nelson Hoineff

"A ORGANIZAÇÃO"

"Quem quer dinheiro?", copyright Jornal do Brasil, 3/09/02

"Um grupo de realizadores de curtas-metragens denominado A Organização exibiu sábado passado, em São Paulo, 33 de seus filmes. Não haveria nada de especial, exceto por um detalhe: o grupo paga R$ 1 a cada espectador que se disponha a ver os curtas. No mês passado, os cineastas haviam feito o mesmo no Rio de Janeiro. As três sessões, realizadas no cinema Odeon, ficaram quase lotadas.

O fato passou desapercebido da mídia, não sem razão. O gasto total para levar o público ao cinema em cada evento não chega a R$ 2.000. É pouco dinheiro para que alguém se preocupe.

Muito mais expressiva, no entanto, é a motivação para esse gesto.

O que os jovens realizadores estão dizendo é que público para ver curta-metragem nacional, só pagando. E (considerando que os cinemas não chegaram a lotar) às vezes nem isso.

O que os garotos da Organização fazem pode não ser nem um pouco ético – nem muito prático, uma vez que, pela sua lógica, o espectador pode agora cobrar R$ 5 para ver os próximos filmes e ir aumentando até o dia em que o governo tabele o que o público pode exigir para ver um curta-metragem.

Besteirol à parte, no entanto, o evento faz aflorar com nitidez uma questão bem mais importante: qual o custo verdadeiro de se fazer o público assistir às imagens que estão sendo produzidas no Brasil – muito especialmente a imagem eletrônica, produzida não para 500 pessoas, mas para as massas?.

Veja-se o caso da televisão aberta. Para que o espectador veja seus programas, ela também está pagando. Não em espécie, mas em moeda mais valiosa: em desinformação; em redução de níveis básicos de exigência; em negação de valores básicos, sem os quais o ser humano não se percebe como cidadão – e, portanto, não tem a obrigação de agir como tal.

Se há um punhado de garotos pagando para que o povo vá ver seus filmes, há também uma coleção de gente mais velha comprando a dignidade e a soberania de uma nação para que seu povo consuma imagens que vão gerar lucros imediatos à custa do entrevamento futuro de quem paga essa conta.

Não há emissora aberta, hoje, que não se debata internamente com o dilema da ausência de princípios éticos elementares na construção de sua programação. Esse debate, como mostram os fatos, é quase sempre vencido pelo lado que propugna o pior.

O problema é que é justamente o resultado dessas imagens que vai determinar o país que a sociedade estará construindo para o futuro.

O que estará determinando os votos em outubro não é um programa eleitoral que dura dois meses: é a interpretação da sociedade oferecida ao eleitor durante anos pelas imagens difundidas na televisão. Os programas políticos são meros formulários que preenchem os espaços abertos por elas.

Quando um grupo de artistas iniciantes acha que pode comprar a presença de seu público, não está fazendo nada de novo. Está simplesmente reproduzindo uma operação bem mais sutil e poderosa do que a própria compra de votos: a compra de inteligências e de auto-estima. A compra da capacidade do eleitor de se reconhecer como cidadão, e agir como tal, na hora de decidir em quem votar."