Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Nirlando Beirão

O MACARTISMO VIVE

"A nova face do macarthismo", copyright Carta Capital, 26/3/03

"O presidente dos EUA, Josiah Bartlett, ao contrário do impostor George Bush, que lhe disputa a mesma cadeira, está convencido de que violência em nome da democracia gera violência, não democracia ? e anda dizendo, sem meias palavras, que a guerra ao Iraque é um gesto de arrogância imperial que deve ser desafiado nas ruas por ações diretas de protesto, ainda que sempre pacíficas. Não será de admirar se isso vier a lhe causar alguma dor de cabeça. Aliás, já está lhe causando.

No último sábado 15, o presidente Bartlett, aliás o ator Martin Sheen, que dá vida ao ilustre personagem na série West Wing, voltou a subir no palanque para pregar pela paz. Sheen, que foi agente da CIA no clássico Apocalipse Now e é a celebridade do momento nas marchas antibélicas, aceitou pagar o preço de sua amizade com o pastor Bill O?Donnell, velho ativista recém-libertado de seis meses de cadeia por crime de desobediência civil, e passou a noite falando de política numa igreja encravada num gueto negro de Oakland, Califórnia ? cidade que está para a vizinha São Francisco como Osasco está para São Paulo.

?Filmes são meu meio de vida, mas isso aqui é que me faz viver?, disse Sheen/Bartlett, abrindo os braços para uma platéia que por pouco não o carregou em triunfo. A ironia encarnada por Sheen é que, fazendo-se de primeiro mandatário no reduto fictício da tevê, ele transmite muito mais verdade, calor e carisma do que o inquilino atual da mansão da Pennsylvania Avenue, o que explica a quantidade de cartazes que se vê nas marchas pelo país afora, clamando por ?Bartlett para a Casa Branca?. Para valer.

Dias atrás, a Screen Actors Guild, o sindicato das estrelas e dos anônimos de Hollywood, divulgou comunicado denunciando pressões dos estúdios contra profissionais do cinema que venham ostentando em público suas opiniões políticas ? desde que, é claro, elas sejam contrárias ao consenso fabricado em Washington.

A última vez em que houve problemas dessa natureza, em Hollywood, foi durante a Guerra do Vietnã. A penúltima, na caça às bruxas dos anos 50 que deu em desemprego, lista negra, humilhação e cadeia para os dissidentes, sob o tacão do senador Joe McCarthy e asseclas (entre eles, o promissor Richard Nixon).

O que a tropa de Bush faz hoje a pretexto do terrorismo, o bando de McCarthy fez no passado simulando o perigo vermelho (de 1950 a 1954, o delirante showman do anticomunismo produziu 71 sessões de interrogatórios públicos, 187 horas de tevê ao vivo e 100 mil espectadores, além de 32 vítimas confirmadas, sem contar as reputações demolidas pela razzia indiscriminada).

A Guild ousou lembrar, em sua denúncia, o nome do precedente implacável: macarthismo. Há sinais de que a máquina do cinema quer obedecer de novo ao enredo da máquina de guerra, criticou o sindicato ? e parece que aos estúdios subservientes não basta atulhar as telas com os invariáveis Bruce Willis, Tommy Lee Jones e Benício del Toro, em uniforme de combate, perpetrando banhos de sangue contra tiranos de pele mais escurinha.

Normalmente, Martin Sheen seria o primeiro alvo na lista dos que pretendem arrancar a pele dos pacifistas. Mas ele próprio reluta em se ver no papel de herói autoproclamado, como disse o próprio a CartaCapital:

? Sinto que a tensão cresceu e que uma certa noção de patriotismo que se confunde com supremacia tende a cooptar as consciências. A imprensa está paralisada, há uma campanha oficial tentando incutir no povo o medo de demônios que não existem, mas, ainda assim, não creio no sucesso de uma perseguição sistemática e institucionalizada, mesmo porque a mobilização da sociedade agora é muito maior.

Ele, pessoalmente, já andou levando uns puxões de orelha dos produtores do seriado (exibido na NBC, canal que parece ser dirigido por Mahatma Gandhi em comparação com a Fox do magnata e espertalhão Rupert Murdoch). Mas, embora recomende atenção para os que não dispõem de uma vitrine como a sua, Martin Sheen não se faz de vítima. ?Afinal, eu sou o presidente ou não sou??, ironiza.

Mesmo que o Congresso, domesticado por Bush, não chegue a convocar para seus holofotes de intimidação aqueles que trabalham sob os spots de uma Hollywood risonha e franca, como ocorreu na Guerra Fria, a pressão política existe e, sutil e dissimulada, ela começa a fazer suas vítimas.

Depois de Sheen, a cabeça que os falcões botaram a prêmio para inaugurar a guilhotina é a do também ator Sean Penn. Penn cometeu a imperdoável heresia de, diante do diz-não-diz, pagar seu bilhete aéreo e ir a Bagdá em dezembro para fitar, com seus próprios olhos, a carranca do monstro.

Como Sean Penn não tem medo de cara feia, voltou faceiro e disse o que todo mundo sabe, mas os cínicos calam: o governo Bush só decidiu atacar o Iraque porque o país não tem as tais armas mortíferas que o governo Bush apregoa que tem. ?Vamos manchar covardemente nossas mãos de sangue inocente?, advertiu o ator.

Como as vítimas, ainda que potencialmente numerosas, não carregam passaporte americano, Penn foi imediatamente comparado à atriz Jane Fonda ? que até hoje se ressente de ter sido colocada no gelo depois de visitar Hanói durante a carnificina no Vietnã.

De ?Jane Hanói?, como carimbaram os trogloditas, a ?Sean Badgá? ? os ?antipatriotas? de carteirinha penam sob os rigores dos proprietários da verdade chapa-branca. Passo seguinte: a mídia amestrada declarou Sean Penn, ex de Madonna, oficialmente louco.

?Estou tranqüilo: sempre vão precisar de um maluco ou de um palhaço em Hollywood?, devolve o ator, com uma gargalhada. O correspondente de CartaCapital topou com Penn e seu particularíssimo topete no Café Tosca, legendário reduto da boemia beat de São Francisco, a uns 30 passos do prédio da Zoetrope, onde Francis Coppola empresta ao ator uma sala.

Penn acompanhava, naquela noite, a Norman Solomon, co-autor de Target Iraq: What the News Media Didn?t Tell You (Alvo Iraque: o que a imprensa não contou a você) e fundador do Institute for Public Accuracy, a ONG que organizou a viagem de Penn ao Iraque. A tese do livro, segundo Solomon:

? Noventa por cento dos repórteres atuam hoje como se fossem estenógrafos a serviço da glorificação do poder. Os outros dez por cento viraram zumbis inertes.

Não pensem que é exagero. Dá para contar nos dedos da mão os articulistas que ousam desafiar o maniqueísmo quem-não-está-conosco-está-contra-nós da doutrina Bush e até os círculos mais arejados da inteligência americana andam claudicando no quesito liberdade. Vejamos.

Em fevereiro, o cartunista Art Spiegelman decidiu deixar a semanal The New Yorker em protesto duplo. Primeiro, contra o que chama de ?conformismo disseminado da mídia na era Bush?. Spiegelman contou ao jornal italiano Corriere della Sera que, desde a queda das torres, vem vivendo ?um exílio interior?, sentindo-se ?um dissidente político confinado numa ilha?, e ?não mais em harmonia com a cultura americana?. Meia dúzia de cartuns censurados depois, ele passou a lamentar, mais especificamente, que a The New Yorker de tão talentosa tradição humanista não tenha assumido, sob o comando de David Remnick, ?o desafio de nadar contra a corrente?. Remnick não comentou.

Spiegelman não é um islamita de turbante. Seu pai sobreviveu ao Holocausto em Auschwitz e inspirou-lhe a série Maus, premiada com o Pulitzer e tida como a mais poderosa versão em desenho de outro apagão totalitário, o nazismo.

Não é fácil militar no coro dos dissidentes nessa neodemocracia à americana de uma nota só. A jihad messiânica de Bush tem jeito de taleban. Vai apagando, uma por uma, em nome da segurança coletiva, todas as luzes das liberdades individuais, e a de imprensa, tradicionalmente a primeira vítima das guerras, desta vez faleceu antes mesmo do primeiro tiro.

?O problema não é só o de (a imprensa) seguir uma agenda conservadora e belicosa?, interpreta Eric Alterman, colunista da The Nation e autor do recém-lançado e devastador What Liberal Media? (Que mídia liberal?). ?Nessa era da distração de massa (mass distraction)?, diz Alterman, ?a imprensa se excita com os atrativos mercadológicos da destruição em massa (mass destruction).?

?Em outras palavras: o jornalismo made in USA está adorando, ele também, brincar de guerra, como num videogame selvagem. Fingindo-se de soldadinhos de verdade, mais de 600 jornalistas envergam no front suas botas de campanha e seus uniformes de camuflagem, sob a estrita vigilância do Pentágono. A cobertura é disciplinada: a imprensa é como que mais um pelotão dos marines. Ninguém está autorizado a ultrapassar os limites e esses limites quem define quais são não é a luta pela informação, e, sim, as regras consensuais impostas pelo censor fardado.

Como na ficção de Hollywood, as imagens da realidade privilegiam a ação ? a paz não produz adrenalina suficiente para manter os picos de audiência. Não por acaso, é na televisão que se aninharam os parlapatões da extrema-direita e os caubóis da covardia explícita, expelindo para os nichos sem audiência dos canais a cabo e das emissoras pay-per-view os últimos remanescentes do elenco divergente que rejeita a mortandade via satélite.

A Fox, a CNN em sua fase pós-Ted Turner, na verdade, todo o broadcasting vestiu a fatiota militar, atachando a truculência e a arrogância à versão novilíngua de patriotismo. Basta uma faísca de dúvida, como a que Phil Donahue andava incutindo em seu talk-show diário da MSNBC, para que o indigitado seja punido. Na MSNBC há seis meses e na tevê há 29 anos, Donahue foi sem mais nem menos informado, no final de fevereiro, que a emissora iria prescindir de seus serviços.

Na semana passada, The New York Times precisou recorrer a sua vitriólica hipocrisia de veículo independente ma non troppo para festejar o regresso à tela pequena do apresentador Bill Maher ? aquele mesmo que andava na geladeira desde o day after do 11 de setembro, quando ousou colocar em dúvida a bravura dos militares americanos. ?Os liberais não podem mais se queixar?, pontificou o Times.

Maher pilotava um talk-show diário (Politicamente Incorreto) na ABC, uma das quatro networks do primeiro escalão. Ganhou um naco de horário (Real Time With Bill Maher) na HBO. Quem quiser se filiar à audiência liberal a que o jornalão de Nova York se refere terá de pagar para ver ? e crer. Por uma horinha, uma vez por semana.

Os brucutus hão de reagir: a liberdade é plena e completa tanto que o suspeito Danny Glover, aquele de Color Purple e Lethal Weapon ? e que foi nada menos do que o mestre-de-cerimônias da maior marcha pró-paz de São Francisco, dia 16 de fevereiro ?, está aí, trabalhando sem restrições.

Glover mal começou a gravar o seriado The Henry Lee Project, para a tevê, em que faz um tira na turbulenta Oakland, e não pode ser só pelo physique du rôle, já que acaba também de ser contratado para um seriíssimo papel na Broadway. Mas Glover se beneficia de um privilégio: a cota dos atores negros. De todo modo, sempre há um dócil Denzel Washington à mão para contrabalançar os renegados, no quesito da guerra e paz.

A manufatura do consenso pode levar ao extremo ? na concepção gringa, precedente gravíssimo ? de ter gente aceitando perder dinheiro em prol da guerra. Fora a sangria no próprio budget federal para se manter uma máquina de guerra in loco com 250 mil mobilizados, acontecem episódios como o de emissoras de tevê que, temendo ser tachadas de impatrióticas, recusam anúncios em favor da paz. Pagos, é bom reiterar.

Um desses anúncios, protagonizado por Susan Sarandon, Janeane Garofalo e Fred Thompson, bancado pelo grupo Not In Our Name (Não em nosso nome) e dirigido por Barbara Kopple, que tem dois Oscars de documentarista, bateu às portas da MTV. A emissora, com sua fachada hip-hop, na verdade tem cabeça chucra de caubói texano e disse não.

A propósito: xodó dos moderninhos da MTV, o branquelo Eminem é pró-guerra. Os rappers, em sua maioria, o são. Na categoria machismo de quinta, ideologia predominante na América de Bush, o sempre macarthista Clint Eastwood pelo menos tem algum glamour.

A biblioteca pública de Santa Clara, naquela ainda afluente Califórnia pontocom, decidiu estampar cartazes avisando que, em obediência ao Patriotic Act (o pacote de leis antidemocráticas votadas pelo Congresso americano a título de combater a Al-Qaeda), tudo o que seus freqüentadores lêem ou consultam é agora monitorado por arapongas do FBI. Se algum desavisado ousar levar para casa o Alcorão e, digamos, o Manifesto Comunista, pode ser imediatamente despachado para Guantánamo, sem direito a advogado nem a julgamento.

Estes são os EUA orwellianos dos Grandes Irmãos Dick Cheney (o vice), Donald Rumsfeld (o secretário da Defesa) e John Ashcroft (da, hum, Justiça). Se tem brasileiro aí saudoso dos rigores da ditadura militar, manda para cá que ele se sentirá em casa."

"Campanha pede boicote a artistas ?amantes de Saddam?", copyright O Estado de S.Paulo 19/3/03

"Washington ? Um jornal americano lançou hoje uma campanha de patrulhamento a atores e músicos americanos contrários à guerra no Iraque. O tablóide nova-iorquino New York Post publicou na sua edição de hoje um texto em que pede o boicote a uma lista de estrelas do cinema e da música. O jornal chama os artistas, entre os quais estão Martin Sheen, Danny Glover e Susan Sarandon, de ?amantes de Saddam?.

O texto informa quais são as atrações em que se pode ver os atores pacifistas e pede explicitamente o boicote aos programas e filmes ?das estrelas que se opõem à libertação do Iraque do assassino de massas Saddam Hussein e seus comparsas violadores?. Outras vítimas do pedido de boicote são Tim Robbins, Laurence Fishburne, Sean Penn, Samuel L. Jackson, Alfred Woodward, a roqueira Sheryl Crow, a banda Limp Bizkit e Jackson Browne.

?Todos os pontos de ônibus da cidade têm cartazes de Good Fences, com Danny Glover, mas seguramente há melhores maneiras de gastar dez dólares?, diz o jornal. Sobre Susan Sarandon, o NY Post afirma que ?atualmente, pode ser boicotada deixando-se de ver a minissérie Children of the Dune, que começou domingo no canal Sci-Fi?.

Agressivo, o texto tem frases como ?não ajude estes amantes de Saddam?. E pede boicote também a shows dos músicos anti-guerra. As datas e locais das próximas apresentações de Sheryl Crow, Limp Bizkit e Jackson Brown foram divulgadas pelo jornal, também para pedir o boicote. Um parágrafo inteiro é dedicado ao trio de country music texano Dixie Chicks. Na semana passada, a cantora Natalie Maines se disse envergonhada de que George W. Bush também é do Texas. O resultado foi uma onda de boicote em rádios e destruição de seus CDs em praça pública. Martin Sheen, que interpreta o presidente dos Estados Unidos no seriado The West Wing e participou de manifestaç&ootilde;es contra a guerra, viu ser cancelada a campanha do cartão de crédito Visa em que ele é o garoto propaganda. A Visa negou qualquer relação com a posição de Sheen.

São tão fortes os temores de que uma reedição do macarthismo, a famigerada caça às bruxas pós-guerra, esteja surgindo nos EUA que o Screen Actors Guild, sindicato dos atores americanos, denunciou há dias a existência de uma lista negra de atores. A lista teria a função de impedir os atores contra a guerra de trabalhar."

 

ALIADO ANTIGO

"Imprensa dos EUA não fala muito dos ?amigos? Rumsfeld e Saddam", copyright O Estado de S.Paulo, 22/3/03

"Paris ? Nomeado em 1983 enviado especial ao Oriente Médio pelo presidente Ronald Reagan, o atual secretário da Defesa americano, Donald Rumsfeld, esteve em Bagdá numa missão até hoje muito controvertida. A imprensa dos Estados Unidos fala muito pouco dessa viagem, que na época ganhou uma cobertura do Washington Post.

Rumsfeld chegou a ser fotografado durante o efusivo aperto de mão com o ditador Saddam Hussein, num de seus palácios presidenciais, atualmente sob bombas da aviação americana.

Nesse época, na década de 80, o Iraque estava em guerra contra o Irã havia três anos e a política americana era ditada pelo medo da extensão da revolução iraniana do aiatolá Khomeini.

Nem mesmo as advertências de um analista do Pentágono, Paul Wolfowitz, sobre o perigo representado pelo regime de Saddam no Iraque chegaram a sensibilizar o governo dos EUA.

Paradoxalmente, dois anos antes, a ação israelense que destruiu o reator nuclear experimental Osirak, adquirido pelo Iraque da França (então governada por Jacques Chirac), foi rapidamente condenado por Washington.

A visita de Rumsfeld, ocorrida nos dias 19 e 20 de dezembro de 1983, resultou no restabelecimento, um ano depois, das relações diplomáticas entre Washington e Bagdá, rompidas desde a guerra de 1967 entre árabes e israelenses.

Grande satã -Depois desse encontro, Rumsfeld voltou a Bagdá no ano seguinte para outra reunião, agora com o vice-primeiro-ministro e ministro do Exterior, Tarek Aziz. O ?grande satã? não era Saddam, mas Khomeini.

Muito pouco tempo depois, Saddam esmagou a rebelião dos curdos, sacrificando parte de sua população civil, constituída por velhos, mulheres e crianças, utilizando armas químicas, cujos produtos básicos, segundo as suspeitas, eram de origem americana.

Em setembro de 2002, entrevistado pela CNN, Rumsfeld confirmou que esses encontros aconteceram, mas afirmou que sua missão junto a Saddam e a Aziz foi justamente a de adverti-los a não utilizar armas químicas.

Apesar disso permanece a suspeita de que os EUA tenham autorizado o governo do Iraque a procurar adquirir produtos como fontes de bacilos do antraz e da peste, necessários para a produção de armas biológicas em seu território.

Richard Perle, presidente do Escritório de Política de Defesa, explica que ?essa cooperação americana se limitou à área de informações?."