Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

No bairro do presidente

M.M.

 

O

verdose de informação”. Nada. Sobra informação irrelevante, lixo produzido para ocupar espaço/tempo, mediante o álibi de que “eles querem isso”, enquanto faltam apuração, reportagem, estudo, leitura, diálogo com especialistas, andar pelas ruas com os olhos abertos, ouvir as histórias das pessoas. Recentemente, Elio Gaspari fez antológica entrevista com um apontador de jogo do bicho, no Rio. Certamente não o recebeu num gabinete climatizado.

O que não falta é assunto – que a cidade, o país e o mundo produzem aos borbotões, de hora em hora.

No bairro paulistano onde fica o apartamento do presidente da República, Higienópolis, constrói-se um shopping center que é caso exemplar da tirada de Caetano Veloso sobre “a grana que ergue e destrói coisas belas”. Toda uma discussão sobre rumos da vida urbana, sobre a relação entre comércio e moradia, sobre administração municipal estaria contida na história. Se alguém quisesse contá-la. Não querem.

Também não é o nosso caso, aqui.

Mas usamos este exemplo para condenar o jornalismo de gabinete.

Na edição anterior do O.I., uma fotografia mostrou parte do buraco aberto entre a Avenida Higienópolis e a Rua Veiga Filho para a construção de um shopping center. (Ver remissão abaixo.)

No dia 30 de janeiro, foram demolidas quatro das seis casas da Avenida Higienópolis que haviam sido mantidas como uma espécie de disfarce do vazio doloroso em que se erguerá o shopping.


Avenida Higienópolis, entre Avenida Angélica e Rua Albuquerque Lins: das seis casas, quatro foram demolidas.

A casa mais próxima da Avenida Angélica era assim:

Seja lá o que for que os incorporadores vão aprontar, a mutilação numa avenida estruturada como a Higienópolis, aberta em 1890, dois anos antes da Paulista, é sempre um choque.

A reportagem do Estadão foi avisada da demolição. Vizinhos reclamavam da caliça que cobriu tapetes, móveis e objetos. Havia gente com problemas respiratórios.

Saiu um registro sem convicção, rotineiro, nem carne, nem peixe.

E completamente desarticulado.

A incapacidade de colocar o caso em contexto, a incapacidade de ver o que acontece nas redondezas (há dezenas de demolições no mesmo bairro), de enxergar a cidade, é sintomática de uma falta de horizonte que se desdobra em incontáveis manifestações. Não se enxerga nem a cidade, nem o estado, nem o país, nem o continente (isto é até piada, com Mercosul e tudo), não se enxerga o mundo.

 


Entrevista com David Capistrano

M.M.

 

Engajado no Programa de Saúde da Família da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, o médico sanitarista David Capistrano, ex-prefeito de Santos, voltou a palmilhar caminhos da Zona Leste, onde, no início dos anos 80, foi chefe do posto de saúde da Vila Carrão.

Seu relato é a antítese da percepção deficiente que caracteriza hoje a cobertura de cidade nos grandes jornais de São Paulo.

A primeira constatação é o aumento assombroso da população. Lugares antes desabitados agora estão atulhados. “Você andava pela Avenida Sapopemba”, relembra David Capistrano, “existia um lugar que se chamava Parque Santa Madalena. Era só uma igreja, casas esparsas. Hoje existe uma favela gigantesca. É na Rua do Oratório. Atravessa São Paulo, continua em Santo André”.

Favelas de mil, mil e quinhentos barracos. A Fábrica da Juta, onde houve mortes em confronto com a polícia no ano passado, tem cinco mil famílias assentadas, duas mil em processo.

– O comércio também é o caos, eu fico olhando aquilo e acho que não tem mais jeito. Tem jeito, sim, não tem mais jeito na concepção antiga de cidade. Não me refiro a São Paulo, é concepção de cidade em geral, aquela idéia de querer ter avenidas mais largas, arborização, praças, equipamentos públicos, não há lugar, são umas ruas estreitas, casas nas calçadas, não têm recuo nenhum, se se quiser fazer será preciso derrubar as casas. Vegetação é uma coisa que não existe, quando chove é aquele lamaçal – lamenta David.

O mau cheiro paira no ar, bandos de crianças e adolescentes pelas ruas. “Que futuro podem ter?”, pergunta o médico.

Ele concorda com a necessidade de desmembrar essa entidade inadministrável que é o município de São Paulo:

– Seria preciso separar São Mateus, Santo Amaro, Zona Sul, são outros municípios, as pessoas demoram horas para ir até o centro da cidade.

David constata uma carência de equipamento social que o deixa “aterrorizado”:

– Lugares com milhares de casas sem delegacias, sem escolas, sem Posto de Saúde, sem bares, supermercados, padarias, calçada, farmácia, não existe poder público.

Fará a inevitável comparação com Santos, cidade onde desde a gestão da prefeita Telma de Souza, iniciada em 1989, quando começou a desenvolver uma das políticas de saúde pública mais respeitadas do país? Não.

“Não tem nem comparação, Santos é uma cidade que tem muito poder público, visível por toda a parte. Mas não vamos falar de Santos”, propõe. “Mauá é o Nordeste do ABC, devia ser ABCDN e não ABCDM. Em seis dos sete municípios do ABC, a natalidade está caindo regularmente, menos em Mauá. Pois bem: com 340 mil habitantes, tem 19 centros de saúde, tem um hospital municipal, tem ambulatório sedimentado, ambulatório especializado, é incomparavelmente melhor, e é continuação de um pedaço da Zona Leste de São Paulo, muito melhor que São Paulo. O que acontece”, conclui, “é que a população de São Paulo vai se consultar em massa em Santo André, em Diadema, cidade que é um exemplo notável de melhoria”.


 

M.M.

 

 

Cada vez que a televisão exibe uma tomada comovente de estudante do Programa Universidade Solidária horrorizado com a miséria do interior do Maranhão, cada vez que um jornal escreve “os universitários tiveram um choque”, estão assinando recibo de jornalismo reativo, para usar a expressão de Alberto Dines.

O sistema educacional, todo o sistema de transmissão do conhecimento que o complementa estão em xeque. É claro que ver as coisas com os próprios olhos é sempre diferente, mas a expressão “eu não podia imaginar”, usada com freqüência por estudantes, denuncia a mais preocupante desinformação.

Os meios de comunicação se surpreendem tanto quanto os universitários. Claro. Sair da redação virou proeza. Dá até prêmio. Foi preciso que a iniciativa partisse do governo. Que isso acontecesse na época colonial ou nos primórdios do país independente, quando o soberano era português e o próprio conceito de “brasileiro” precário, compreende-se. Hoje, não. Mas é que as empresas gastam mais dinheiro com o embrulho do que com o produto.

Além de reativos, os jornais não conseguem, nas reportagens que “revelam” o Brasil ao “Brazil“, como dizia a canção, produzir uma linha de visão crítica do fenômeno.

Por que o Maranhão, por exemplo, é tão pobre?

Não se dá um passo além da constatação. Quando há constatação.

 

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