Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Não matem a autonomia

Carlos Vogt (*)

 

C

omeço com um elogio ao jornal O Estado de S.Paulo pela cobertura noticiosa e crítico-opinativa que tem dado à questão do ensino, em particular à questão do ensino superior no Brasil, e aqui, ainda mais especificamente, à questão da autonomia das universidades públicas.

Nos últimos dias, algumas notícias chamaram a atenção do leitor interessado no assunto, caso em que me incluo, como escritor, como professor universitário, como ex-reitor, como dirigente de instituição e, sobretudo, como cidadão.

Participei do processo que levou à promulgação do decreto governamental que instituiu a autonomia da gestão financeira das universidades públicas paulistas, em fevereiro de 1989. Era, então, vice-reitor da Unicamp. Depois, de abril de 1990 a abril de 1994, fui reitor dessa instituição e pude viver, na prática, os grandes benefícios que a autonomia trouxe à universidade.

No entanto, decorridos dez anos da publicação do decreto, vê-se hoje que as universidades estaduais paulistas se encontram numa situação financeira mais do que crítica, comprometendo acima de 90% do orçamento com a folha de pagamento e, no caso da Unicamp, mais de 100%, se se levar em conta a obrigação de recolhimento da cota patronal do INSS, uma vez perdida a condição de filantropia de que a instituição usufruía.

Leio no Estadão de 24/3/99 que os alunos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) paralisaram as aulas como protesto pela falta de professores, o que tem gerado a proporção absurda de 37 estudantes por docente.

Na mesma página, a notícia de que as universidades estaduais do Paraná conquistaram um princípio de autonomia parecido com o de São Paulo e, na edição do dia anterior, à pág. A9, a informação de que o presidente da República condiciona a autonomia universitária do sistema federal à capacidade de gestão responsável de recursos.

As notícias são boas porque mostram que o modelo tem qualidades e que, a partir do que foi feito em São Paulo, pode-se aproveitar o que ele tem de positivo e evitar, mudando ou aperfeiçoando, o que tem de negativo.

Problemas crônicos

O que se anuncia para o sistema paranaense e a advertência bem posta do presidente da República foi o que faltou articular com o decreto da autonomia. Em outras palavras, faltou ao sistema paulista elencar, através de um conjunto de indicadores de qualidade e de desempenho, as responsabilidades contraídas juntamente com os direitos e as metas a serem atingidas por ações institucionais consistentes e objetivas.

O percentual de participação das universidades paulistas no ICMS era, no início, de 8,4%. Passou para 9% e depois para 9,57% e a situação de gastos com pessoal continuou aumentando e comprometendo as condições do custeio e do investimento. É como se as universidades tivessem contratado o direito, sem contratar as obrigações. E não se alude aqui a indivíduos e tampouco à responsabilidade de pessoas físicas; trata-se de obrigação institucional para com a sociedade que nos paga através dos impostos com que é taxada.

Discute-se agora, e muito, a criação, por lei, dos fundos de aposentadoria dos estados e, mais uma vez, O Estado de S.Paulo tem dedicado páginas de atenção ao assunto.

Há muito se discute também a criação de um fundo previdenciário próprio das universidades, que agora se vê na contingência de ser absorvido e diluído num único fundo comum de todo o funcionalismo público paulista. Não é o que os professores, pesquisadores e funcionários das universidades querem. As salvaguardas recorrentemente publicadas na imprensa para o bom funcionamento dos fundos estaduais motivam a comunidade universitária a buscar garantias institucionais de que os recursos desses fundos, constituídos da contribuição de nosso salários, sejam efetivamente destinados ao provimento das aposentadorias e pensões. Um fundo próprio, gerido profissionalmente e orientado por um conselho representativo das partes interessadas, é, sem dúvida, a melhor garantia.

Além disso, é completamente fora de propósito que as universidades estaduais paulistas queiram agora empurrar os seus aposentados para fora de suas obrigações, como se o descarte do inativo fosse a panacéia para os seus problemas estruturais crônicos.

Medidas internas de reorganização institucional precisam ser tomadas urgentemente, antes que se passe para a sociedade a cômoda ilusão de que a responsável por todos esses males é a autonomia e, assim, se decida matá-la.

(*) Poeta e lingüista, ex-reitor da Unicamp (1990-1994), coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp e diretor executivo do Instituto Uniemp

 

Francisco José Karam (*)

 

Em março de 1994, a mídia paulistana denunciou seis pessoas por envolvimento no abuso sexual de crianças alunas da Escola Base, no bairro Aclimação, em São Paulo. Baseou-se em fontes oficiais (polícia e laudos médicos) e em pessoas próximas às crianças (pais de alunos). O fato simplesmente não existiu, mas a mídia, em vários momentos e veículos, exagerou e liquidou projetos profissionais e pessoais dos acusados, todos mais tarde inocentados. Houve um jornal que não entrou na cobertura: o Diário Popular. Por isso, recebeu acusações de estar de “rabo preso” com a escola e os envolvidos e de ocultar informação de interesse público.

Os jornalistas apuraram a denúncia, como deveria ser em quaisquer casos de relevância social. Mas a irresponsabilidade também manifestou-se em coberturas como o do Notícias Populares (“Professor ensinava a transar”); do SBT, onde um comentarista do extinto Aqui Agora chegou a pedir a pena de morte aos acusados, de acordo com reportagem “A sangue frio”, de Roberto Pereira de Souza, na revista Imprensa, setembro de 1994, págs. 20-33); e inúmeros outros veículos, que ampliaram um escândalo sexual que jamais existiu.

Quatro anos e muitas matérias jornalísticas com um envergonhado mea culpa depois, ainda é possível perguntar: os jornalistas são, exclusivamente, os culpados?

A mídia vale-se de fontes, presumindo-se que sejam qualificadas e responsáveis. O jornalista não é um especialista que trata da medicina à sociologia, do direito à perícia técnica. Mas tais áreas manifestam-se por ele, via fontes que ocupam um lugar específico no noticiário (delegado, médico que elabora laudo do IML, advogado etc). Por sua natureza, ritmo e compromisso público, a informação jornalística não deve mesmo esperar interpretações oficiais. Do contrário, ficaria difícil tratar, com isenção, do escândalo do Orçamento, do massacre dos sem-terra ou da prostituição infantil. Mas a imprensa deve, além de investigar com persistência, buscar fontes que coloquem à disposição do público os dados e versões, de forma ágil e massiva, em períodos curtos e em escala planetária.

Os erros da mídia no caso Escola Base foram grandes, e os exageros a que chegaram veículos como o Notícias Populares, Folha da Tarde e SBT merecem reparação moral e indenização financeira. Mas a responsabilidade recai, também, nos pais dos alunos que chamaram a imprensa, no delegado que deu várias entrevistas acusando os donos e professores da escola e na medicina, que errou em pelo menos um dos laudos, comprovando que o exame havia dado resultado “positivo para a prática de atos libidinosos” – como é o caso do laudo datado de 28/3/94, de responsabilidade do Setor de Sexologia do Instituto Médico Legal/Sede, sob o número BO 1827/94, citado na mesma reportagem da revista Imprensa, págs. 26-27.

A mídia deveria esconder isso?

Fontes, muitas vezes, beneficiam-se do processo informativo, seja pelo prestígio que eventualmente gozam, pelo uso particular do espaço público ou pela “plantação” de dados com finalidades particulares. Fontes, em geral, querem se ver positivamente na mídia e, se possível, gostariam de alterar as informações em proveito próprio. Os verdadeiros jornalistas sabem disso.

Erros ocorrem em quaisquer áreas, nos prédios que racham, na medicação equivocada ou no não atendimento hospitalar, na sentença jurídica controversa, na interpretação sociológica ou econômica. O jornalismo, que ocupa mais visivelmente o espaço público, também sofre a ação dos palpiteiros, embora os erros de quaisquer áreas causem tanto prejuízo social quanto os dele. No entanto, é o jornalismo que, na imediaticidade do presente, no ritmo em que se desdobra o cotidiano, pode revelar aquilo que também prejudica as pessoas – seja o assassinato de menores, o benefício secreto recebido por bancos particulares ou as denúncias feitas por fontes autorizadas (pais de vítimas, laudo médico e versão policial), como no caso Escola Base.

O interesse público, revelado pela abrangência e conseqüências sociais de tais fenômenos ou acontecimentos ,está na base da natureza do jornalismo; que lida, por sua essência, com investigação baseada em testemunhos e fontes, pessoais ou documentais.

A ética na informação jornalística não prescinde de um conjunto de fatores, que incluem responsabilidade e competência técnica de variadas fontes em diferentes campos de conhecimento. Estas representam mais que sua individualidade e interesses no cargo e espaço públicos em que atuam. E ao jornalismo cabe checar bem e sempre – fontes e versões que projetam personalidades obscuras à repentina fama e prestígio.

* Francisco José Karam é professor da Universidade Federal de Santa Catarina e autor do livro Jornalismo, Ética e Liberdade (Summus Editorial, 1997)

 

V.G.

 

Discordo do meu colega Francisco Karam. Ele entende que os jornalistas apuraram a denúncia “como deveria ser em quaisquer casos de relevância social”. Não foi bem assim: diante de um delegado que falava, caíram como patinhos no jornalismo declaratório, com a honrosa exceção do Diário Popular. Ora, um delegado é fonte credenciada, certo; mas os jornalistas não são e não podem ser meros reprodutores de declarações de fontes credenciadas.

O caso da Escola Base não está aí – público e polêmico – à toa. O fato de envolver menores, torna o episódio ainda mais grave. Mesmo sendo verdade as declarações, as vítimas deveriam ser protegidas da publicidade. E uma das formas de proteger as vítimas é não dar o nome das escolas, por exemplo, o que evitaria os maiores erros dos jornais. São evidentes os casos em que o uso de iniciais é uma mera proteção burocrática: não protege nada. (Veja que os jornais insistem nessa prática: a suposta filha de Paulo Maluf é apresentada pelas iniciais. Mas sua mãe e seu avô têm seus nomes por extenso. Grande proteção…)

Karam afirma: “A mídia vale-se de fontes, presumindo-se que sejam qualificadas e responsáveis”. Discordo. Um jornalista não pode presumir que uma fonte, por se tratar de mãe ou do delegado, seja, em princípio, responsável.

Em outra passagem, Karam questiona: “Os jornalistas são, exclusivamente, os culpados?” Culpados de quê? Evidente: o delegado é responsável pela divulgação de informação falsa aos jornalistas. Mas a responsabilidade pelo noticiário dos jornais é dos jornalistas. Se jornalistas se limitarem a transcrever o que fontes “confiáveis” afirmam, ele se transformam em, com o perdão da expressão, “moleque de recados”.

O fato de uma mãe acusar a escola e de um delegado endossar as acusações não diminui a responsabilidade do jornalista. A ele cabe, sempre, checar e conferir as informações que apura e que tem o dever moral de tornar públicas, se verdadeiras.

 

Carlos Alberto Furtado de Melo (*)

 

A mídia, às vezes, aparece aos nossos olhos como se uma estrela fosse. Mas, tal qual estrelas, seu brilho é falso, posto que existiu há milhões de anos e no momento em que o vemos não está mais lá. Assim como na história dos astros, a imagem do esplendor midiático, na maioria das vezes, nos chega com enorme atraso, mistificando a verdadeira noite.

Meus colegas do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política, do programa de estudos pós-graduados da PUC-SP), Vera Chaia e Marco Antônio Teixeira, escreveram artigo publicado na última edição deste Observatório. Em “A máfia dos fiscais e as estrelas da cidadania”, demonstraram, com clareza e objetividade, a importância que, nesta última década, os meios de comunicação têm dado às questões urbanas. Especificamente, discutiram o papel da mídia na denúncia, e na pressão para apuração da formidável seqüência de casos de corrupção dessa máfia de fiscais e autoridades municipais, no momento sob investigação da Câmara dos Vereadores e do Ministério Público.

A mais inquietante questão está vinculada ao momento em que o escândalo explodiu na mídia e à força que ganhou. Antes de mais nada, e sem o objetivo de desagradar, não creio que estejamos vivendo um momento de súbita reação moral da sociedade. A corrupção sempre foi mais ou menos repudiada, como mais ou menos admitida pela população. A humilhação do achaque e a sordidez da propina, infelizmente, sempre foram fortes elementos na cultura política nacional. Assim como o sentimento de revolta e de resignação sempre esteve latente e contido na garganta do cidadão, que nem ao bispo pode se queixar. Portanto, em primeiro lugar, não foi a imprensa que descobriu a corrupção. Tampouco a corrupção é a praga da moda. Quisessem os primeiros pasquins do Império, muitas e respeitáveis autoridades, que hoje emprestam seus nomes às ruas e alamedas do país, seriam parte da mesma lista em que hoje consta o nome do vereador Vicente Viscome.

Uma “nomeação”

O papel desempenhado pela imprensa, neste momento e neste caso, é de fato importante e, talvez, até fundamental na pressão política que exerce. Mas é importante se perguntar quais fatores propiciaram esta altivez cívica. Evidentemente, não se quer discutir aqui a importância dos personagens e indivíduos, isoladamente. Qualquer argumentação a respeito da importância e do arrojo do jornalista Chico Pinheiro, que brilhantemente “bota-pra-quebrar” na primeira edição do SPTV, é desnecessária. A preocupação fundamental está, como é obvio, na procura dos elementos que permitiram – ou induziram – as empresas de comunicação a “assumir” essa postura mais agressiva diante do Poder Público Municipal e de personagens políticos de grande expressão, inclusive nacional. E neste ponto é fundamental alçar a visão num campo mais vasto, que situa-se no contexto político.

No artigo mencionado, Vera Chaia e Marco Antônio Teixeira, recordam que “em novembro de 1997, a Folha da Tarde iniciou uma série de reportagens com o objetivo de demonstrar as irregularidades em torno do comércio ambulante na cidade. Apesar de todos os indícios de corrupção, a repercussão daquela reportagem ficou circunscrita à Folha da Tarde e a espaços reduzidos da Folha de S.Paulo. Os demais jornais deram pouco destaque à questão. Os outros meios de comunicação, quando não ignoraram o fato trataram-no de forma secundária”. E a pergunta que fica é: por que as reportagens iniciadas naquela ocasião não repercutiram como agora? Ou se preferirem inverter a questão, por que só agora o assunto se alastrou de forma a, praticamente, não deixar pedra sobre pedra (ou Paulo sobre Paulo) no PPB paulistano?

Creio que a resposta está relacionada à política nacional: aos interesses das forças políticas brasileiras e à conveniência, política e comercial, das empresas de comunicação.

Em 1997, o bicho-papão deste país chamava-se Paulo Salim Maluf. No ano anterior, Maluf elegera seu sucessor, Celso Pitta, com a tranqüilidade de um patriarca que escolhe o herdeiro. Preparava-se para disputar a presidência da República, com possibilidades de êxito. Na pior das hipóteses, ficaria com o governo do Estado de São Paulo; favas contadas na ocasião. Em entrevista a um canal de televisão, Duda Mendonça, seu principal estrategista, chegou a afirmar que se Maluf, de fato, resolvesse concorrer ao governo do Estado a vitória seria absolutamente certa. Para o marqueteiro, na sucessão estadual, a eleição de Maluf se daria, praticamente, como uma “nomeação”.

Maluf encarnava, então, duas faces: a do poder em estado bruto, o potencial imperador; e a de maior obstáculo à reeleição de Fernando Henrique Cardoso. Nesse último sentido, primeiro como um risco à aprovação da emenda que permitiria mais um mandato ao presidente; em segundo lugar, como o candidato que, no campo conservador, disputaria o espaço do consórcio que elegera (e reelegeria) FHC. A simples presença de Maluf na disputa nacional espremeria FHC entre a direita e a esquerda, esta representada pela candidatura do PT. Assim, coube a Fernando Henrique negociar uma frente de apoio ainda mais ampla que a primeira, tão ampla ao ponto de abrigar Paulo Maluf, ao preço de, praticamente, fechar as portas à campanha de Mário Covas.

Em 1997, a Presidência da República era menos que uma obsessão para Paulo Maluf do que uma questão de tempo. Eleito governador de São Paulo a tarefa seria fazer oposição aos tucanos, atrair o PFL e setores do PMDB. Nesse sentido, a morte de Luís Eduardo Magalhães deixou o caminho livre. Era só avançar.

Fortuna e acaso

Desenterrar o poder de Paulo Maluf em 1997 é importante para compreender o fenômeno atual. A perspectiva de poder talvez tenha sido o principal motivo para que “os indícios de corrupção” apurados pelos jornais não repercutissem. Valeria a pena investigar as pautas das redações na época. Verificar o quanto profissionais, com o mesmo ímpeto de um Chico Pinheiro, foram persuadidos por seus editores a ir cantar em outra freguesia e a investigar a vida de outros candidatos. A imprensa, ou melhor, as empresas de comunicação se amoitaram diante da possibilidade de Maluf alcançar a presidência da República já em 1998; ou vitaminar-se durante um período no governo do Estado. Também não se deve descartar a possibilidade de a mídia ter “maneirado” em benefício de seu candidato. Destruir Maluf na época, com os escândalos como os da “Máfia dos Fiscais”, seria um lance arriscado. E se desse errado? Quem gostaria de ter Maluf como inimigo? Para o presidente FHC e para a mídia foi melhor a aproximação, mesmo que momentânea. Medida preventiva, como diria Maquiavel, a política se faz com a fortuna e com o acaso.

Voltando à corrupção no setor público brasileiro, como já se disse, é tradicional e esteve presente em todas as administrações dentro de limites ora mais amplos, ora mais estreitos (a questão mais importante seria discutir o quanto esse movimento de ampliação ou de encolhimento poderia significar uma postura de governo). Sem serem completamente eliminados, sabe-se que durante a administração Luiza Erundina (sucessora de Jânio Quadros) esses limites estreitaram-se bastante, explodindo na gestão seguinte. Certamente, a imprensa desconhecia isto e sabia da existência de um esquema que passava pelo apoio dos vereadores na Câmara Municipal. Mas se omitiu.

É possível encontrar algumas explicações no processo histórico para a omissão do passado e para o “heroísmo” do presente. Não todas, contudo. É possível que o encantamento com o malufismo, de uma parcela altamente significativa da sociedade e dos meios de comunicação, fizesse enorme diferença comercial e política. Mas, até que se prove o contrário, a ética – em seu sentido mais popular e positivo – não varia conforme as circunstancias.

Já a ética da imprensa, como é óbvio, é condicionada aos seus medos e interesses. Todos os dias lemos discursos e editoriais que são verdadeiras flores da antiga UDN. Variaram muito pouco ao longo dos anos. Mas é de se questionar se “essas estrelas da cidadania” manteriam a mesma disposição investigativa e fiscalizatória caso Maluf fosse hoje o governador de São Paulo e disputasse o trono de senhor da luz e do trovão com o Thor da Bahia, Antonio Carlos Magalhães. Infelizmente, não há resposta a esta questão porque, felizmente, Maluf perdeu a eleição.

A última edição de março de uma das revistas semanais foi dedicada ao depoimento do fiscal da Administração Regional da Penha, Silvio Rocha, o intocável. Rocha afirma que Maluf abusou de sua filha adolescente, sendo o pai ilegítimo de uma criança, hoje, com 8 anos de idade. Em uma das tantas matérias a respeito, afirma-se que este é um fato de conhecimento de qualquer pessoa que estivesse por dentro dos bastidores da política. Presumivelmente, os bastidores da política são conhecidos das revistas semanais, não? Se Sílvio Rocha prestou seu depoimento em agosto de 1998, por que torná-lo público só agora e não antes? As desculpas devem ser as de sempre: divulgar a história durante a campanha seria uma baixaria eleitoral. É verdade. Mas então, não deixa de ser uma baixaria pós-eleitoral. Não se trata nem de perguntar se outros candidatos, outsiders, alheios ao Clube de Políticos Respeitáveis, teriam o mesmo tratamento eleitoral. Creio que não teriam. Trata-se de perguntar de novo, por que agora?

A resposta não parece simples. Mas é certo que Maluf não é mais o mesmo. Perdeu uma eleição ganha e foi pego com a mão Dossiê Cayman. Perdeu a eleição e perdeu o respeito de seus pares. Se o feio em política é perder a eleição, Maluf perdeu a eleição e perdeu a compostura. Tivesse ganho a eleição, seria outro o caso: os meios justificam os fins. Neste caso, o final comprometeu os meios. Foi expulso do clube. Não porque fosse uma “praga bíblica”, como diria o Serjão. Mas porque perdeu a importância. O máximo que almeja agora é ser protegido de ACM. Os proprietários de jornais não falam com o gado, conversam diretamente com o dono.

ACM e as CPIs

A política é um jogo de tensões, e é isto que a torna uma ciência e uma arte complexa. Na relação política existente entre a mídia, a sociedade e o Estado, encontramos vários tensionamentos. Os políticos (e as forças políticas) tentam estabelecer e consolidar suas imagens por meio da mídia. A mídia procura dar resposta àquilo que existe na sociedade, como um consenso. Com a preponderância atual do capital financeiro preocupa-se, também, com a mítica desse setor e com as chamadas “expectativas de mercado”. O político monta a sua imagem na intenção de responder aos consensos e às expectativas. A mídia reconstrói a imagem do político de acordo com o seu interesse de atingir o mercado e preservar/incrementar seus negócios com o Estado, dirigido pelos políticos. A ação dos políticos está condicionada, mas ao mesmo tempo condiciona. É evidente que em cada um desses setores (mídia, sociedade, mercado, agrupamentos políticos) há conflitos internos, tensões intrínsecas. Este é um jogo complexo. Em se equilibrar na tibieza desses inúmeros fios é que consiste a ciência e a arte da mídia e dos políticos.

Um exemplo simples pode ajudar a trazer luz à escuridão do parágrafo acima: Antônio Carlos Magalhães e a CPI do Judiciário. ACM é de fato Ph.D. em política. Sabe da sua imagem e da imagem do governo ao qual se alia. Trabalha com pesquisa e muita, muita sensibilidade política. Enxerga de longe as frestas no cenário político. Em março percebeu mais uma.

Para um homem com seu o ímpeto, nada mais detestável do que as mesmice administrativa do Congresso que votou tudo o que o governo queria. Com a aprovação do ajuste fiscal, a agenda do Congresso Nacional seria morna. Sabedor da atual imagem de negativa mansidão do governo federal, Antônio Carlos decidiu consolidar sua imagem de homem forte da República. Para isto nada melhor do que bulir com um tema que a maioria dos políticos, mortais, jamais ousaria por teme-lo: o Poder Judiciário. Além do mais uma questão de forte apelo popular. A Justiça brasileira é tremendamente injusta.

Palco armado, script decorado, ACM teve, na penúltima semana de março, um período de exposição na mídia somente comparável ao que se seguiu à inesperada morte de seu filho, Luís Eduardo. Independente do conflito institucional que pudesse causar, tudo parecia que correria bem, com o governo e a economia, afastados dessa rinha de galos grandes. Mas como já se disse, política é complexa e o acaso, por contraditório que pareça, é certo. Jáder Barbalho, principal político do PMDB resolveu que não ficaria na platéia. Solicitou e obteve do Senado a CPI do Sistema Financeiro e, assim, começou a dividir o palco com ACM.

A mídia achava tudo ótimo. Assunto, imagens fortes de um gigante forte e polêmico como o senador baiano. Mas a coisa começou a se complicar. Aqueles que acreditam que Itamar Franco comprometeu a economia do país em janeiro, com a declaração de moratória de Minas Gerais, se assustam agora só de pensar nos efeitos que uma CPI do Sistema Financeiro. Está em jogo a própria lógica econômica do governo Fernando Henrique. Não há mágica. O Plano Real consiste no financiamento inesgotável do Estado pelo capital financeiro. Como vimos desde janeiro, dólar tem pernas e vai embora. O dólar, que há semanas subira e aterrorizara a todos, principalmente aos que devem em dólar, pode tornar a disparar com o conteúdo das revelações que, eventualmente, vierem a tona.

Sabe-se como começam as CPIs, mas não se sabe como acabam, o que virou uma sentença. Jáder Barbalho não só deu uma estocada à altura em ACM, como acendeu um fósforo num paiol. Baseou-se, quase que exclusivamente em material da imprensa. Mas acredito que a imprensa não contava com isso. O que serão das dívidas em dólar?

Já há mostras de que ao contrário da CPI do PC, ou da CPI dos anões do Orçamento, a mídia deverá colaborar bem menos. O espaço dado a Barbalho e à sua CPI é incomparável à atenção e ao estardalhaço feito para ACM. Como é tão natural dos baianos, a cobertura a respeito foi um carnaval, comparado ao clima de velório com que foi recebida a proposta de Barbalho. A CPI pode não dar em nada. E é mesmo possível que o jogo entre o PMDB e ACM termine porque se tornou muito perigoso. Ninguém pode afirmar nada de modo categórico, porque o quadro está ainda muito indefinido. Não se sabe o quanto, ainda, é possível recuar. É até possível que não haja possibilidade de recuo nem mesmo para a imprensa, que começou com as denúncias. A mídia ficará calada o quanto puder. Algumas capas de revistas semanais de informação, no dia em que escrevo este texto (1/4/99), já mostram isto, embora ainda não se tenha o conhecimento de todas. O certo é que a investigação, de interesse da sociedade, é indigesta para o governo, para o PFL, para o PMDB, para o mercado e para a mídia. Proveniente do estado do Pará, Barbalho poderá ser o responsável pela autodeglutição de uma sapo amazônico.

(*) Mestre e doutorando em Ciência Política, pesquisador do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP)