Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

No reino do vale-tudo

JORNALISMO FITEIRO

Hélio Doyle (*)

O jornalismo contemporâneo está incorporando em sua prática valores extremamente perigosos para os próprios jornalistas e para a sociedade: vale tudo em busca da notícia, do furo, da manchete. Vale tudo mesmo, praticamente sem restrições.

Alega-se que nada pode segurar um repórter em sua missão sagrada de dar às pessoas as notícias que elas merecem ter. Nada. Nem a Constituição, nem as leis, nem os padrões da ética e do bom senso. O jornalista tem o direito de denunciar e acusar a quem quiser. Não importa se a denúncia não se confirme e a acusação se mostre inconsistente. Vale a boa intenção. Vítimas inocentes são apenas danos colaterais, indesejados mas inevitáveis.

Hoje, infelizmente, podemos ver todos os dias exemplos da predominância desses valores em nosso jornalismo. Existe um bom número de jornalistas em funções de direção e chefia, nas redações dos principais veículos, que defende esses valores como se fossem incontestáveis verdades universais. E, como não poderia deixar de ser, existem subordinados que cumprem as determinações desses diretores e chefes sem vacilar. Alguns, por concordar inteiramente com eles. Outros, para preservar seus empregos e subir na carreira.

Bons e generosos princípios são alardeados pelos defensores da tese de que, para cumprir sua missão, os jornalistas estão acima das leis e da ética, do bem e do mal. Falam em liberdade de imprensa e no direito de a sociedade ser informada. Em transparência na coisa pública e combate à corrupção. No papel da imprensa na construção de uma sociedade mais justa e livre. Enfim, um belo discurso é construído para justificar que tudo é válido para se obter uma notícia ? e, especialmente, uma denúncia. O jornalista, messiânico, é o defensor da moral e dos bons costumes.

Pura hipocrisia. A tese de que a obtenção de uma notícia, um furo ou uma manchete justifica os meios utilizados para isso, ainda que antiéticos e ilegais, tem explicações muito menos nobres: a acirrada concorrência entre veículos e entre jornalistas e a incapacidade de muitos veículos e jornalistas conseguirem seus objetivos sem utilizar expedientes escusos. Recorre-se a um discurso bonito para esconder a ilegalidade dos atos, o desprezo pela ética e a incompetência profissional.

Hora do fechamento

A extremada concorrência faz com que alguns veículos façam de tudo para furar os demais, para dar uma matéria de grande repercussão, para estampar uma denúncia que possa derrubar um ministro. Não vem ao caso se para isso são utilizados métodos que violam a ética e as leis, que desrespeitem direitos humanos, que exponham pessoas sem que contra elas hajam provas suficientes. Sejam pessoas importantes e influentes acusadas de roubo de dinheiro público, sejam favelados ou marginalizados acusados de roubar frutas na quitanda.

Não há sentido em distinguir a utilização de meios ilícitos para fazer o "bem" ou o "mal". São critérios subjetivos e pessoais. Os defensores da tortura alegam que sem ela os policiais não conseguiriam confissões de criminosos e assim não poderiam obter condenações. Há jornalistas que alegam que sem a utilização de meios ilícitos, como os "grampos" em telefones ou o roubo de documentos, não conseguiriam informações para denunciar corruptos.

É enganoso dizer que os torturadores estariam a serviço do "mal", os jornalistas a serviço do "bem". Muitas vezes a tortura é justificada como uma defesa para a sociedade: um argumento de franceses na Argélia, americanos no Vietnã e israelenses na Palestina é de que a informação obtida na tortura evita que dezenas de pessoas sejam mortas por atos terroristas. Nada mais falso e absurdo.

Bem e mal são critérios que procuram escamotear a essência da questão. Nos casos citados, torturadores e jornalistas seguem a mesma lógica e ambos procuram esconder a incompetência profissional. Os torturadores ferem a lei e os direitos humanos porque são preguiçosos ou não têm competência para fazer uma investigação policial científica. Esses jornalistas violam a lei e a ética porque são preguiçosos ou não têm competência para fazer uma investigação jornalística.

Os leitores não sabem que muitas das denúncias estampadas em manchetes nos jornais e revistas não deram trabalho aos que assinam as matérias. Há repórteres que cultivam boas relações ? que às vezes chegam à promiscuidade ? com delegados, promotores e procuradores para que eles lhes passem informações, com exclusividade. Há jornalistas que aceitam de bom grado publicar trechos de conversas gravadas ilegalmente.

Esses jornalistas recebem o material de suas reportagens pronto e apenas se dão ao trabalho de ouvir "o outro lado" ? e assim mesmo, quando é uma revista semanal, geralmente o acusado é chamado a se manifestar na noite de sexta-feira, na hora do fechamento; em jornal, o acusado é procurado depois das 21 horas. Para que não possam se explicar muito e prejudicar o sucesso da matéria.

Distorção perigosa

Jornalistas não são super-homens acima das leis. Não são policiais, promotores ou juízes. Devem se utilizar de métodos jornalísticos para fazer suas investigações, não de métodos policiais. O grampo de telefones, por exemplo, não é um método jornalístico e é contra a lei. Só é permitido com autorização judicial. Logo, gravações feitas ilegalmente não podem ser publicadas. Se forem publicadas, os responsáveis têm de prestar contas aos tribunais sem se esconder na hipócrita alegação de que têm o direito de informar e que a liberdade de imprensa está sendo violentada.

Do mesmo modo, repórteres não podem roubar documentos. Não podem entrar escondidos em lugares privados, mesmo que seja em um prédio público. Não podem fingir que são policiais para interrogar e amedrontar pessoas. Não podem subir em muros para fotografar ou filmar pessoas que estão em suas casas. Se fazem isso, têm de ser acusados e julgados pelos crimes que estão cometendo: roubo, invasão de propriedade, falsidade ideológica e invasão de privacidade.

Esse tipo de comportamento na imprensa tem levado a uma distorção grave na sociedade: a de que os fins justificam os meios quando se trata de combater irregularidades e ilegalidades, especialmente quando praticadas por governantes e autoridades. Cansadas de tanta corrupção, de tanto descaso com a coisa pública, as pessoas passam a aceitar que métodos condenáveis sejam utilizados quando é para o "bem". Mais ou menos como os que aceitam que haja roubo em obras públicas, desde que elas sejam feitas. Ou que aceitam o trabalho dos "justiceiros", pois eles matam bandidos.

Defender métodos criminosos e antiéticos quando se é beneficiado por eles, ou quando atendem às nossas expectativas pessoais, é uma distorção muito perigosa. Esses mesmos métodos, em outras oportunidades, podem ser utilizados contra os que agora os aplaudem. Aí, esses nada poderão reclamar.

(*) Jornalista


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