Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

No universo do jornalismo futrica

LULA PRESIDENTE

Dioclécio Luz (*)

Eleição é o horror. Na semana do combate do segundo turno, a revista Veja anunciou na capa: os radicais do PT vão exigir sangue na estrada. A ilustração era uma besta apocalíptica com as cabeças terríveis de Marx, Lênin, Trotsky. Lá dentro o texto nem falava neles. Mas isso é o de menos ? o terrorismo é liberdade de expressão. Veja alertava o povo que o PT é um aparelho comunista, e que comunistas, como se sabe, costumam fazer churrascos infantis às terças. É o mote do pensamento único na imprensa nacional.

Na TV, Regina Duarte, tão CIA quanto a Veja, diz que tem medo de um possível governo Lula. A dúvida é se foi contratada para fazer o terror, ou se fez isso pelo ideal pessedebista. Como não estava fazendo propaganda de xampu nem de fraldas descartáveis, mas difundindo o medo sobre o futuro do país, recebeu o devido troco.

Na TV ainda, Boris Casoy também tem medo de Lula. Na entrevista com o presidente eleito perguntou se ele usa ternos Giorgio Armani. Não. Não é pergunta. BC quer apenas informar ao público que Lula traiu a classe popular, seu povo, porque agora se veste bem. É da mesma turma de Elio Gaspari, que indignou-se publicamente porque Lula bebeu um vinho caro, o que seria uma traição ao povo. Não colou. O que ficou claro foi a manifestação de preconceitos contra o pobre: pobre não pode se vestir bem nem comer bem; pobre tem que comer pão com ovo, e se vestir de mulambento.

PFL da imprensa

Nas eleições de 2002, o preconceito descobriu a imprensa brasileira. Veículos como Folha, O Estado de S.Paulo, Jornal do Brasil e, evidentemente, O Globo gastaram tintas e celulose na campanha "PT dividido". Descobriram que o Partido dos Trabalhadores tinha vários pensares. E que, internamente, era uma briga desgraçada pelo poder. A se acreditar na quantidade de matérias publicadas no período, imagina-se que o PT é um antro de gente com os mais variados interesses, onde todos brigam pelo poder. Para essa imprensa oficial, o mote não acabou: mesmo com Lula eleito, continuam a produzir matérias sobre o tema.

E vai ser assim até que apareça um cadáver na cozinha do PT. Até que surja um escândalo, eles farão isso ? intriga. De fato, chamar de jornalismo político essa futricaria sobre as relações internas de um partido é um exagero. Tudo é fofoca. A grande imprensa mascara o que expõe, o mexerico é visto como notícia. É a notícia do momento. Caras, Capricho, Contigo, Veja, Folha, Estadão… É tudo a mesma coisa.

A falta de um cadáver no armário para destruir a campanha de Lula foi um problema para seus adversários. Ainda tentaram manter aceso o caso Santo André, a morte de Celso Daniel. Mas, sem provas, sem sombras, sem nada, o TV Fama não se sustentou.

Em último caso deve-se destacar o choro e a cobrança dos neoliberais derrotados: a Veja pós-eleições e o discurso de Arnaldo Jabor são os mesmos: a gente deixa Lula governar, mas desde que mantenha as conquistas do governo FHC. Quais? Por exemplo, a entrega do patrimônio público aos saqueadores nacionais e internacionais? O desemprego de 10 milhões de pessoas? A expulsão de 5 milhões de pessoas do campo? A miséria de 35 milhões de brasileiros?

A TV Globo merece uma avaliação especial. Afinal, o que todos esperavam é que ela fosse coerente com sua história e fizesse a campanha do candidato do poder. Foi assim no regime militar, depois com Tancredo Neves/Sarney no Colégio eleitoral, com Fernando Collor, com Fernando Henrique Cardoso. Por que mudaria? A Globo é o PFL da imprensa brasileira ? sempre grudou no poder.

Botes salva-vidas

E até que a família Marinho sinalizou neste sentido, quando arrumou emprego para Henri-Phillipe Reichstul na Globopar. O ex-presidente da Petrobras é amigo íntimo de FHC. Botando Philipe no cargo já se estava garantindo um pé num futuro governo Serra. O diabo é que Serra, com aquele olhar de vampiro da novela das sete, não deu ibope. O povo não conseguiu mastigá-lo. Não colou fora ? nem dentro ? do PSDB. E se chegou a 40% dos votos é algo que só o mistério das urnas eletrônicas pode explicar.

As elites tinham a opção de Ciro. Mas Ciro não tinha ninguém: mostrou a cara cedo demais, era um Collor perfeito. E foi imediatamente execrado: já pensou cometer-se o mesmo erro, botando no governo outro egocêntrico? Então, o jeito era engolir um Serra com sabor baunilha e colorau, ou o Lula batizado pejorativamente (por eles) de light. Na dúvida, optaram pelo "ou". Ou seja, se a Globo tinha que engolir alguém que fossem os dois: Lula ou Serra. Por isso foi tão carinhosa com eles. Nada de baixaria, era a ordem interna. Pode ser que um deles ganhe, e, sendo poder, é mais saudável ficar com ambos. Ainda mais que Lula mantinha-se à frente das pesquisas, como demonstração clara de que o povo estava farto de FHC e suas variações genéticas. Portanto, nada de prejudicar o cara. Vai que ele ganha…

A Globo pode precisar de um hospital público…

Afinal, sua saúde não vai bem. Em 2001 conseguiu dinheiro público do serviço de filantropia do BNDES, quando a pereba lhe apareceu no lombo. Na época, o presidente deste banco de caridade pública foi à Câmara dos Deputados dizer que a operação era segura. Não era. O buraco aumentou. Agora a dívida da Globopar é de 2,6 bilhões de dólares (ou 1,6 bilhão de dólares, por outras fontes). Mais de 80% em dólar.

Coube ao povo pagar pelo erro de avaliação de mercado dos executivos da empresa. Quem apostou na TV por assinatura se ferrou: há anos que a quantidade de usuários não passa da marca dos 3,5 milhões. A Globo fez corte de 25% nos gastos e colocou à venda 30 emissoras afiliadas. A internet cresceu, mas não o bastante: eram 5 milhões de assinantes em 2000, agora está em 8 milhões. Vai tudo devagar porque o mercado consumidor já se esgotou ? tem pobre demais neste país e não há mais como sustentar esse barco de luxo. Em outras palavras: já começaram a distribuir os botes salva-vidas e o capitão já se despediu da mulher em terra.

Camelôs de Quibocó

A Proposta de Emenda Constitucional que admite o capital estrangeiro nas empresas de comunicação é de 1995. E a Globo era contra. Em 2001, quando apareceu o buraco, a Globo convocou os deputados para votar a PEC. E foi tudo rapidinho. Depois, ainda faltava regulamentar a emenda por projeto de lei, que o Executivo deveria mandar ao Congresso Nacional, para ser discutido e votado. Não havia tempo, porém. O barco estava (está) afundando. Então, em plena campanha eleitoral, Fernando Henrique Cardoso despachou a Medida Provisória n? 70. Ele mesmo, o autor de cinco mil MPs, que posa de democrata.

Numa hora dessas, a imparcialidade jornalística, um mito similar ao de Papai Noel, é difundido como fachada oficial da imprensa brasileira. Num dia fazem uma entrevista emocional com o presidente eleito; no outro, uma entrevista puxa-saco com o presidente que sai. E a democracia está salva. FHC deixa o país num atoleiro, o povo na miséria, mas posa de estadista, diz que vai ser um "consultor especial" da política brasileira, e tudo bem.

As matérias continuam. Elas se resumem a fofoca, a revelação de encontros dos radicais do PT ou do MST, que seriam tentativas de desestabilizar o governo Lula, e de mostrar ao povo que o melhor ainda é o que está aí. Enquanto isso, Gugu, que fez campanha para Serra, discretamente tenta abocanhar sua emissora de TV.

Pensando no futuro e na salvação da pele perfumada de seus donos, a TV Globo faz um Globo Repórter especial para Lula. Mas não perde a mania de jornalismo futrica: a partir de hoje o Jornal Nacional (como o restante da grande imprensa) vai cobrir todos os encontros do MST, da CUT, do sindicato dos camelôs de Quibocó; enfim, onde se acharem os tais radicais do PT.

(*) Jornalista e escritor em Brasília, autor do livro Trilha apaixonada das rádios comunitárias