Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Nossos cães de guarda não latem como os da França?

Orlando Tambosi

 

Pensamento único, na expressão criada pelos franceses, significa a doutrina que traduz, em termos ideológicos e com pretensão universal, “os interesses do capital internacional”, isto é, dos tristemente famosos “mercados financeiros”, grandes acumuladores de fundos (leia-se: especuladores) – gordos filhotes, todos eles, do Banco Mundial, do FMI e do GATT, instituições internacionais que usam e abusam da reputação de imparcialidade que lhes é atribuída.

Não se reconhecendo como doutrina, o pensamento único pretende-se tão científico e verdadeiro quanto as leis físicas. Os que o criticam ou a ele resistem, são desde logo (des)qualificados como “retardatários”, “jurássicos” e “neobobos”. Afinal, pontificam os iluminados, “não é o pensamento que é único, mas a realidade é que se tornou única”.

E tome-se “modernidade” (comércio livre, moeda forte, desregulamentação, privatizações, “liberalização dos mercados financeiros”) contra “arcaísmos” como o Estado do bem-estar social (Estado, proclama-se, só tem a ver com forças armadas, polícia, prisões e receita federal), contra os sindicatos (“corporativismo”), o setor público (“monopólio”) e o “povo” (massa de manobra para o “populismo”).

Tudo isso favorecido pela confluência ideológica da direita e de boa parte da esquerda em torno de algumas prioridades econômicas, o que facilitou a adesão de muitos jornalistas ao “economicamente correto”. A ponto de um deles, americano, dizer que “a economia global é um mecanismo muito dispendioso e delicado que exige a participação dos investidores no lugar dos cidadãos”.

É a estes jornalistas, fiéis serviçais da economia de mercado – com seu culto à empresa, seu amor à mundialização, suas louvações à Bolsa de Valores e suas diatribes contra os direitos sociais -, que o também jornalista Serge Halimi (do Le Monde Diplomatique) critica no livro Os novos cães de guarda, recentemente lançado pela Edit. Vozes na coleção Zero à esquerda. O autor esteve no Brasil em outubro (ver entrevista na ed. 55 do Observatório) e participou de eventos no Rio de Janeiro e em São Paulo, organizados pelo Jornal do Brasil e Folha de São Paulo, respectivamente.

Ignorado pelos grandes jornais e revistas franceses, que não lhe dedicaram sequer uma resenha, o opúsculo de Halimi nem por isso deixou de vender 200 mil exemplares já nas primeiras semanas. A edição brasileira, como era de se esperar, também enfrentou problemas (além da tradução com alguns erros graves). Jornalistas procurados para prefaciar o livro declinaram do convite, segundo o filósofo Paulo Arantes – coordenador da coleção -, alegando desconhecer os casos citados, que seriam “muito ligados à realidade francesa”.

O pensamento único, claro, nada tem a ver com a “realidade brasileira”. Por aqui, não se cogita em desmonte do Estado nem se cultua o “mercado”, não se ataca o funcionário público nem a previdência social, não se fala em privatizações, desregulamentação, desconstitucionalização nem em “flexibilização” dos direitos sociais (aliás, “privilégios”). E nossos bravos “âncoras” e comentaristas econômicos, diferentemente dos franceses, não praticam um “jornalismo de reverência” ao governo e às elites nem entoam o hino das Bolsas de Valores e da “única política possível”.

A confluência ideológica denunciada por Halimi arrasta a vida política francesa para a direita, praticamente impedindo a expressão de projetos alternativos. “O pensamento único”, diz ele, “sonha com um debate democrático destituído de sentido, uma vez que deixaria de ser juiz entre os dois termos de uma alternativa”.

Ceder a esse pensamento – completa Halimi – “é aceitar que, por toda parte, a rentabilidade tome o lugar da utilidade social, é encorajar o desprezo pelo político e submeter-se ao reino do dinheiro”, é sucumbir à “lenga-lenga patronal” incessantemente martelada por milhares de instituições organismos e comissões. Com raras exceções, “a mídia (…) lhes tem servido de ventríloquo, de orquestra sinfônica ao diapasão dos mercados financeiros que marcam o compasso de nossas existências num mundo sem sono e sem fronteiras”.

Nesse quadro, a imprensa deixa de ser um “contrapoder” e muitos jornalistas, supondo-se “atrasados”, passam a acompanhar as opções da classe dirigente. Considere-se o exemplo do Le Monde, que, criticado pela repentina orientação neoliberal de suas análises econômicas e financeiras, assim justificou-se: “Tínhamos necessidade de nos adaptar à economia-mundo – e fizemos isso com atraso. Ainda aí, o simples fato de nos profissionalizar, de nos atualizar, provoca uma superinterpretação ideológica. A ideologia encontra-se sobretudo no olhar nostálgico dos que criticam”.

A conclusão não poderia ser mais reveladora: ideológico, hoje, é quem critica, porque os arrogantes criticados – na França como no Brasil – pretensamente fazem ciência, isto é, consideram-se acima das ideologias.

Diante disso, não espanta que um jornalista da TV francesa tenha solicitado a uma autoridade que explicasse por que, na França, a economia ainda é “conturbada pelo debate público e pelos militantes de um partido ou de outro”. Ora, se a realidade é que é única – como desconversam os arautos do pensamento único -, para esse jornalista “economicamente correto” era incompreensível que a economia ainda fosse “utilizada pelos partidários desta ou daquela tese política”.

Halimi não poupa os nomes dos “barões da profissão”, uma elite onipresente em todos os meios, da TV aos jornais e revistas. Jornalistas ou “intelectuais”, eles “não passam de um punhado de trinta, inevitáveis e volúveis”. São coniventes entre si, “encontram-se, freqüentam-se, apreciam-se, comentam as obras uns dos outros, estão de acordo sobre quase tudo”.

Entre os intelectuais citados, algumas figuras conhecidas no Brasil, como Alain Minc (o homem dos “relatórios” Minc), o “novo filósofo” Bernard-Henri Lévy (que, além de falar sobre tudo, é agora também cineasta), o nostálgico filósofo Alain Finkielkraut (que há poucos anos lamentava “a derrota do pensamento”) e o sociólogo Alain Touraine, colaborador assíduo de jornais brasileiros e comensal do Palácio da Alvorada, cujo ocupante é seu amigo).

E, por falar em Brasil, vale lembrar o que disse o cronista Luiz Fernando Verissimo, a propósito do “rolo compressor” que tem desabado sobre as redações nos últimos anos. São freqüentes no meio jornalístico – escreveu ele recentemente – histórias “sobre pressões de anunciantes e de Brasília para maneirar as críticas e controlar a resistência ao pensamento único. Isso quando a imprensa precisa de pressões para exercer a sua vocação oficialista e sua adesão entusiasmada ao pensamento único. Nunca se viveu um clima parecido”.

Em nome desse oficialismo (inato e mal disfarçado), aliás, Alberto Dines foi censurado pela Folha de S. Paulo e João Ubaldo Ribeiro, pelo Estadão. Apesar de todas as publicações, bastante precavidas, advertirem que as opiniões dos colaboradores “não expressam necessariamente” a opinião do jornal e de seus proprietários – o que constitui um escândalo e um agravante para essa censura “privatizada”.

As reflexões de Halimi, como se vê, são sugestivas também para nós, jornalistas ou não. Ainda que as diferenças entre a França e o Brasil sejam enormes, pelo menos algo em comum existe: os cães de guarda daqui não ladram como os de lá?

(*) Professor de Filosofia e Ética do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina

 

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