Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Notícias do Planalto virou tititi de botequim

 

Vera Silva (*)

Assim me parece o Brasil no início do ano 2000. Por todos os lados as pessoas reclamam: da febre amarela, da falta de aumento, da falta de ética, da falta de probidade, da falta de fiscalização, da falta de moradias, das enchentes, etc.

Como alguém que abusou da bebida sem pensar no dia seguinte, nós brasileiros acordamos com uma bruta ressaca por excesso de esquecimento. Uma enorme dor de cabeça, acompanhada de enjôo e aversão à luz.

O vício de considerar o exercício da cidadania como hábito de ressentidos é o que contribui para a dor de cabeça. Tão forte é o vício que até mesmo a imprensa come o prato das denúncias pelas beiradas, por isso não nos admiremos da intensidade da enxaqueca.

Explico: de tanto beber o deixa pra lá, afinal já passou mesmo, não é bom ser vingativo, nem ressentido, isto é coisa de gente que não sabe perdoar, que quer tudo ao pé da letra, gente legalista, formalista etc. acabamos por nos tornar dependentes do esquecimento. Começamos até a nos esquecer de lembrar que democracia e cidadania são unha e carne, uma não vive sem a outra. E a cada manhã bebemos de novo para curar os efeitos da ressaca, mas, cada dia a ressaca chega mais cedo e dura mais tempo…

Por estes dias, para demonstrar o que escrevo, tem-se dito que o governo federal é o grande culpado pelo retorno da febre amarela, mas não se diz claramente que ações ele deixou de executar e pouco se analisa a execução da despesa empenhada no orçamento de 1999 para a prevenção de doenças – se foi utilizada e como o foi. Pouco se discute que ações preventivas, para evitar o retorno de doenças já erradicadas competiam aos governos estaduais e municipais e que não foram executadas.

No caso do projeto sobre venda e porte de armas, mais um exemplo atual: uma verdadeira torre de Babel foi construída para confundir a opinião pública. Ouvem-se coisas do tipo a lei não vai pegar, porque o cidadão tem direito de se proteger do assaltante armado, uma vez que a polícia não o faz, e, também, por causa do contrabando que vai continuar a ser feito e, pior, os Estados Unidos vão retaliar a nossa economia, porque eles vão ter prejuízo com o fim das importações de armas pelo Brasil e, aí, teremos milhares de desempregados.

Não seria mais adequado lutar por um programa de segurança pública e pela autonomia política do país? Não seria mais adequado verificar se a reação armada da vítima é eficaz para evitar a violência? Não seria mais adequado discutir a prevenção do contrabando de armas? Seria mais adequado, sim, mas teríamos de enfrentar a dor de cabeça, ao invés de beber mais.

Mas, como dizia a minha avó, quando a cabeça não pensa, o corpo padece. Este é um dito popular que descreve apropriadamente a nossa forma de administrar e fiscalizar as coisas públicas. Quanta dor de cabeça seria evitada, se pelos menos a imprensa separasse alhos de bugalhos, ou, como diz a Bíblia, o joio do trigo!

Outro exemplo é o das enchentes e as mortes que elas provocam. Todos os anos, o mesmo ritual se repete, cheio de mortes, de perdas, de fome, de gente desabrigada, mas, tudo se acaba no carnaval, aí os problemas serão outros, e as enchentes voltarão a ser notícia apenas no ano que vem.

Alguém se lembra de informar às pessoas atingidas de que podem processar o Estado e exigir indenização? Alguém se lembra de informar como se faz isto e de como deveriam se organizar para iniciar o processo?

Ah, os enjôos. Pois é, quanto maior a resseca, maior será o enjôo. A gente não quer saber de comer nada. Tudo parece de mau gosto, mau cheiro, não é? Lendo as seções de leitores dos jornais e revistas é comum encontrar gente que está enjoada do tanto que se fala num assunto; até mesmo jornalistas e políticos engrossam este coro de reclamações.

Afinal, chega de falar em mortes, problemas, precatórios, chega de falar mal do governante de plantão, chega de falar em escândalo de obra de tribunal, chega de falar no mesmo crime, chega de falar pouco neste ou naquele assunto, quem me acusa é devedor do crime que eu apurei, e outras reclamações menos votadas.

Muita gente confundindo a comida com o mal-estar do estômago. O Freud chamava coisas deste tipo de projeção, se não me engano. O cara bebeu mais do que devia, mas diz que o enjôo é causado pela comida. Não há cidadania que resista a uma projeção deste tipo.

E a aversão à luz? Isto é o pior. Se a gente está de ressaca, só quer saber do escuro. A luz piora a dor-de-cabeça.

O problema é que no escuro todos os gatos são pardos. Basta lembrar de quanto democrata visto durante a escuridão da ditadura virou outra coisa às luzes da abertura. A imprensa, que tanto sofreu na escuridão, precisa nos ajudar a tirar os óculos escuros. Assim todos nós poderemos aprender a evitar a ressaca.

É necessário que cada denúncia seja didaticamente explicada: o que está errado, por que está errado, quem se beneficiou do erro, quem se prejudicou com o erro, quais são as penas que a lei determina para este tipo de erro, qual é o ritual básico da apuração e do julgamento etc etc. Num país que se acostumou a esquecer a cidadania e a falar em democracia de forma abstrata, não há muitos que conheçam os comportamentos básicos do exercício democrático, afinal não são ensinados na escola, nem na televisão.

Não se pode esquecer os erros. Cada vez que o fazemos, aumentamos o risco de voltar a cometê-los, não é mesmo? Por isso, penso que, por atingir milhões, a imprensa pode nos ajudar, servindo de meio para a aprendizagem da cidadania.

(*) Psicóloga

 

LEIA TAMBEM

Folha recusou o oba-oba

Dinâmica da verdade vence malícia do Sistema

Cobertura da mídia à época do lançamento do livro

Anotações rápidas de uma leitura ligeira

A mídia sabia, sim

Quem manda na mídia?