Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Novo desafio do jornalismo científico

URNA ELETRÔNICA

Rafael Evangelista (*)

Um dos sinais que mostram como o mundo em que vivemos é progressivamente influenciado e nossa vida é alterada pelos novos aparelhos e tecnologias criados pela ciência moderna estará presente nas próximas eleições. Descrita como avanço tecnológico que garantiria a inviolabilidade do voto e agilizaria o anúncio dos vencedores das eleições, a urna eletrônica está despertando cada vez mais a atenção (e a investigação) dos partidos e da sociedade. O fato é que de um processo trabalhoso, mas compreensível para qualquer um, a apuração dos votos tornou-se um assunto para alguns poucos conhecedores de informática capazes de entender completamente o processo. Esse é um ponto exemplar daquela que deve ser a tarefa do jornalismo científico no atual cenário de crescente tecnologização do mundo, qual seja, oferecer à sociedade os instrumentos de compreensão necessários para que possa participar ativamente da vida política e social.

A implantação da urna eletrônica foi acompanhada de intenso discurso, que enfatizava a melhoria da segurança e a maior agilidade do processo eleitoral. No entanto, os partidos e a sociedade estavam mal preparados para fiscalizar o processo eletrônico e para entender corretamente a mudança em curso. Passava-se de um modelo simples, que envolvia um grande esforço dos grandes partidos para a fiscalização, mas que era muito fácil de ser entendido, para um modelo mais ágil e prático, para o qual os partidos não dispunham de fiscais competentes, e que seria um enigma tecnológico para a maior parte da população.

A posição do TSE e da imprensa não ajudou na democratização do assunto. O primeiro sempre se posicionou de maneira defensiva e pouco aberta, entendendo os pedidos de fiscalização como acusações. A segunda reúne poucos profissionais capazes de entender realmente o assunto, e tem assumido posição omissa e desinteressada, preferindo enxergar aqueles que desconfiam da urna como malucos. Restava à sociedade, então, acreditar no processo eletrônico de uma maneira quase mística, uma confiança cega na tecnologia capaz de oferecer um resultado em poucas horas.

Pressuposto do processo democrático

Hoje, esse quadro não se alterou muito. A imprensa ainda dá muito pouca atenção ao caso e o TSE não facilita a fiscalização dos partidos. O que aconteceu na compilação dos programas, conforme descrito pelo professor Pedro Rezende nas páginas deste Observatório, mostra que o caminho será longo até que exista a fiscalização eficiente do processo. Para que ele seja totalmente democrático é preciso que a sociedade ? partidos e cidadãos comuns ? tenha condições de acompanhá-lo em todas as suas fases, sem ser obrigada a depositar sua confiança cega em nenhuma tecnologia, autoridade ou corpo de especialistas-técnicos.

As perguntas ainda estão no ar, e o papel do jornalismo científico deve ser respondê-las de forma que o cidadão comum possa entender. Como funciona a urna eletrônica? Que programas estão sendo utilizados nela? Como é feita a contabilização? Quem garante que o programa está contando corretamente? Como são transmitidos os dados? Quem é responsável por essa transmissão? Quem garante que ela não poderá ser acessada e alterada? Como os partidos fiscalizam esse processo? E, talvez a mais importante das perguntas, por que não disponibilizar para a sociedade diretamente, sem o intermédio dos fiscais dos partidos, o código-fonte dos programas da urna?

Não se trata de levantar falsas suspeitas nem de alarmismo infundado. O processo democrático pressupõe o acompanhamento, a fiscalização e a participação da sociedade. E, para que isso aconteça de forma plena, é preciso ter acesso às informações e ao conhecimento. Cabe ao jornalismo científico buscar a ambos, com autoridades e especialistas, de maneira que o impacto e a presença da tecnologia sejam compreendidos em todas as suas dimensões. Para que a tecnologia possa desenvolver a melhor de suas qualidades, sem se tornar apenas veículo de enriquecimento e dominação na mão de poucos, é preciso que a sociedade participe e esteja informada.

(*) Editor da revista ComCiência <www.comciencia.br>; e-mail: <rae@unicamp.br>