Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Nós e as chacinas

Eduardo F. Valerio (*)

 

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á não há mais segunda-feira em que o jornal não estampe a triste notícia: mais uma chacina ocorreu no fim de semana. De alguns anos para cá, nossas cidades vêm conhecendo este novo fenômeno criminoso: o homicídio coletivo, em que grupos de amigos ou familiares são trucidados, em geral com requintes de crueldade. Neste início de dezembro de 1998, já se contam 83 chacinas na região metropolitana de São Paulo, resultando no impressionante total de 289 vítimas.

E, vale ressaltar, estes números dizem respeito apenas à Grande São Paulo! Se contabilizarmos os dados do interior do Estado, os totais havidos são dignos das estatísticas de grandes conflitos internacionais.

A respeito do assunto, duas questões merecem destaque: as chacinas ocorrem somente na periferia e seus protagonistas – autores e vítimas – são moradores daqueles distantes rincões. Não assustam, portanto, aos leitores do jornal, às pessoas de melhor padrão sócio-econômico, que não se imaginam incluídos naquele cenário de horror. A segunda questão diz respeito aos motivos divulgados para aquelas ocorrências: são acertos de contas decorrentes de negócios envolvendo entorpecentes.

O leitor que imagina que o problema não é seu está contribuindo para a implantação de um modelo social que vem caracterizando a atual sociedade brasileira: o do convívio distante e egoísta entre as classes sociais. Investimos em estruturas sociais, políticas, trabalhistas, urbanas, arquitetônicas etc. que excluem parcelas cada vez maiores da população do acesso à cultura, aos benefícios da tecnologia, à educação, às novas relações de emprego, enfim, à cidadania plena. Os condomínios fechados, versões modernas dos antigos castelos feudais, são exemplos eloqüentes desta situação; também o são a dilapidação dos sistemas públicos de saúde e ensino – que serão utilizados pelas classes menos favorecidas – em contrapartida aos seus congêneres privados, que se aprimoram e modernizam-se.

Evidentemente, este quadro afigura-se ainda mais preocupante quando se tem em mente que o Brasil apresenta uma das mais vergonhosas distribuições de renda do planeta; vale dizer: o contingente dos excluídos é altamente numeroso e, mercê de sua própria e perversa lógica, tende a crescer em progressão geométrica.

Diante desta realidade, seria despropositado imaginar que esta situação não poderá perpetuar-se? Que haverá alguma reação e que não será agradável senti-la? Talvez não se possa falar em guerra civil, à míngua do indispensável componente ideológico desta modalidade de conflito. Mas, por que não se cogitar de sérios conflitos, no campo e na cidade, permeados de muita violência e ódio… Aliás, a crescente criminalidade que hoje se verifica já não seria um prenúncio desta reação?

É sobre este pano de fundo que surge a segunda questão extraída das chacinas: o tráfico de entorpecentes. Como se sabe, as máfias européias e asiáticas elegeram o Brasil como rota preferida do transporte da cocaína produzida na Colômbia para os mercados consumidores globais. Em conseqüência, nossas cidades estão inundadas do tóxico; nosso mercado, também para esta mercadoria, é emergente!

Sabe-se que a distribuição da droga é feita a partir de bem estruturada organização, cuja ponta visível situa-se naquela área excluída da sociedade culta e produtiva. Então, de forma singela, direcionamos nossas forças de repressão àqueles setores e alimentamos a vã pretensão de combater esta grandiosa e internacional organização comercial com batidas policiais em favelas e instauração de ações penais contra favelados.

Haveria muito a dizer-se a respeito do tema. A dimensão deste diálogo eletrônico permite-nos, por ora, apenas lembrar que o habitante daqueles guetos não tem contatos, dinheiro, preparo técnico e outros requisitos exigíveis para a prática comercial internacional. O cérebro do comércio de entorpecentes não está na favela!

Prisões de pequenos traficantes na periferia e apreensões de diminutas quantidades de tóxicos sequer se aproximam da solução do grande problema; são procedimentos que apenas agravam aquele fosso entre as classes sociais das cidades brasileiras. Somente uma investigação bem realizada – com a indispensável coleta de provas – nos patamares superiores daquela organização criminosa será hábil a enfrentar, com eficiência, o grave problema dos entorpecentes. Entretanto, enquanto imaginarmos que os conflitos na periferia não nos dizem respeito, não conseguiremos redirecionar para os alvos certos nossas baterias policiais e penais.

(*) Promotor de Justiça Criminal na cidade de São Paulo e membro do Instituto de Estudos Direito e Cidadania

 



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