Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O ‘fast publisher’ do Los Angeles Times

Argemiro Ferreira, de Nova York

 

Qualquer jornalista brasileiro que tenha trabalhado nas empresas Bloch, hoje vivendo processo de falência, sabe bem como podem ser promíscuas as relações entre a redação e o departamento comercial. A Manchete, por exemplo, chegava ao extremo de vender aos anunciantes matéria paga na forma de reportagens assinadas por seus repórteres.

Promiscuidade assim talvez estivesse entre os temores dos jornalistas dos EUA quando o mandachuva de uma grande corporação de mídia do país – Mark H. Willes, chairman da Times Mirror Co., sediada em Los Angeles – deu ordem aos editores e gerentes de publicidade de seu principal veículo, o Los Angeles Times, para trabalharem mais próximos, “mais intimamente”. Em jornais respeitados do país e nas páginas de revistas dedicadas à mídia, a ordem de Willes – que assumira o comando da Times Mirror sem jamais ter servido a empresa jornalística, mas com vasta experiência como banqueiro e industrial de cereais, hambúrgueres e detergentes – foi recebida como pecado comparável ao fim da separação Estado-Igreja nos regimes democráticos.

Chairman da Times Mirror desde 1995, Willes nomeou-se publisher do L.A. Times em 1997, após ordenar redução de custos na corporação e cortar 700 empregos nesse jornal (150 só na redação), o maior do império, e mais 2.300 em outros veículos – grandes jornais como o Newsday (cuja edição de Manhattan ele fechou), Baltimore Sun (Maryland), Hartford Courant (Connecticut).

“Até bazuca, se necessário”

Iniciada em agosto de 1997, a controvertida fase do Times com Willes como publisher está agora chegando ao fim. Neste mês de junho ele disse aos jornalistas que “bons líderes sabem o momento de entrar e também o momento de sair” – e anunciou que o cargo de publisher passará a Kathryn Downing, atual presidente e CEO (chief executive officer) do jornal. Não está claro ainda se a mudança afetará de alguma forma, ainda que sutil, a experiência de Willes, com a volta ao muro que antes separava a redação do departamento comercial. Como ele, Downing nunca trabalhara em empresa de jornal – foi levada pelo próprio Willes. E desde o início apoiou a idéia dele de usar “até bazuca, se necessário”, para explodir o muro. Shelby Coffey III, editor do jornal desde 1989, demitira-se em outubro de 1997 em meio à controvérsia sobre o muro. Antes já tinha saído (em 1996, pouco depois de Willes assumir a direção geral da Times Mirror) o managing editor George Cotliar, para se aposentar. E fora a aposentadoria, em 1997, de Richard Schlosberg, que abrira para Willes a vaga de publisher. A preocupação do pessoal da redação foi sempre a integridade editorial.

Pelo Plano Willes, o departamento comercial coloca oito “general managers” (gerentes gerais) a servirem de “partners” (parceiros) dos editores de cada seção ou editoria. A cooperação interdepartamental, para Willes, traria enfoque agressivo para marketing, promoção e vendas, inclusive de espaço.

Tudo isso foi recebido com ceticismo por jornalistas tanto do Los Angeles Times como de outros jornais, pelo temor ao sacrifício de princípios em nome da busca de lucros. “A preocupação com a publicidade poderia negar uma decisão jornalística ou passar por cima dela”, disse Bill Kovach, curador da Neiman Foundation, da Universidade de Harvard.

Uma opinião ainda mais respeitável se for considerada a experiência de Kovach como editor do New York Times e do Atlanta Constitution. A integração do lado jornalístico com o lado dos negócios, desejada por Willes, horroriza muita gente – até alguns acostumados a condenar os jornalistas por revelarem pouco interesse pelas questões empresariais.

“Cereal killer”

Críticos associam os novos rumos ao fato de Willes e Downing terem chegado à empresa sem qualquer experiência anterior em jornal. Como esperar que valorizem a qualidade jornalística se não são do ramo? Se por 15 anos a preocupação de Willes na General Mills era com estratégias de venda de cereais e hambúrgueres; e por 11 anos, no Federal Reserve, com bancos?

Além disso, demissões em massa nos diferentes veículos do grupo Times Mirror tinham celebrizado Willes como “cereal killer” (assassino de cereal), que soa em inglês como “serial killer” (assassino em série), em alusão à atividade anterior dele no ramo dos cereais. Ele se defendeu sempre com o argumento de que seria suicídio o jornal sacrificar a própria integridade jornalística.

A má vontade dos jornalistas em relação a ele resulta em grande parte da convicção, talvez preconceito, de que só pode entender de jornal quem passou neles a vida inteira, ou pelo menos parte dela, nunca quem fez fortuna vendendo banana – ou cereais ou cachorro-quente. E na certa também alimenta essa prevenção o entusiasmo do pessoal do comercial com a política de Willes.

Mas alguns viram a mudança com esperança, por acharem que se pessoas com experiência de jornal fracassavam com suas receitas tradicionais era hora de se tentar homens de negócios bem-sucedidos em outro ramo. Até porque, alegavam esses defensores da mudança, os jornais em geral não estão bem, há poucas idéias novas, falta confiança no futuro.

Receita de fora

Willes foi trazido para a empresa em junho de 1995. Isso porque nem a corporação nem o carro-chefe Los Angeles Times iam bem. Os lucros, as vendas e os preços das ações estavam em queda – e tais doenças eram bem conhecidas daquele executivo. Com Willes, de fato, a circulação cresceu (hoje, 1,1 milhão de exemplares) e as ações triplicaram de valor – mas os lucros não. A crise do L.A. Times, de acordo com muitas análises, reflete em parte a do sul da Califórnia, que na década de 60 passou a enfrentar uma recessão resultante do fim da Guerra Fria – entre outras coisas, com a redução do ritmo da indústria aeroespacial. E é certo que as dúvidas geradas por Willes ainda levaram o jornal a perder talentos, que preferiram trocar de redação.

Mas a última coisa que Willes quer é que a credibilidade do jornal seja afetada por rumores de que sacrifica a qualidade para agradar anunciantes. Ele próprio advertiu duramente o departamento de publicidade ao saber de um memorando interno no qual alguém de lá pedia a um editor para publicar certo press release de anunciante “na página 2 ou 3”. Para ele, a derrubada do muro de nenhuma forma prevê que alguém do comercial, empenhado em vender espaço a um banco, peça que a redação publique texto simpático ao cliente. A receita de Willes prevê outro tipo de situação, considerada saudável. Por exemplo, ao se criar seção orientada para pequenas empresas, o comercial usou a novidade para atrair anúncios.

Uma coisa é certa: a equipe da redação do L. A. Times e a comunidade jornalística estão de olho na experiência de Willes, o vendedor de cachorro-quente. Com 118 anos de existência, esse gigante da mídia é o quarto jornal do país – só perde em circulação para Wall Street Journal, USA Today e New York Times. O que acontecer aí nesse episódio pode ser uma lição para todos.

 

O texto abaixo é o editorial de um jornal que acaba de morrer. Durante quase dois anos, o Nosso Bairro, de Campos (RJ), brigou para manter uma linha jornalística ética e em defesa da cidadania. Preferiu morrer a abrir mão destes valores. O editorial acabou se tornando um retrato da imprensa no interior do Brasil. (V.M.)

Vitor Menezes (*)

 

Esta é a última edição do NB. Foi feita para se despedir dos leitores e parceiros que ao longo destes quase dois anos de vida compreenderam a sua postura editorial e abraçaram a sua proposta de mudar a mentalidade do jornalismo local.

Não foi possível continuar. E não foi fácil existir. Se tivéssemos que explicar em poucas palavras a razão de estarmos nos despedindo agora, seria apropriado dizer que por absoluta inviabilidade financeira o jornal terá que deixar de circular. Mas, como podemos ir além nesta nossa última conversa, decidimos aproveitar para, mais uma vez, provocar debate e levantar a questão da qualidade da imprensa, das pessoas e dos círculos que detêm a hegemonia econômica e política nesta cidade.

Podemos dizer que o NB acabou porque Campos não quis o NB. Como disse Alberto Dines, o papel do jornal é se fazer necessário, e o NB não pareceu necessário às pessoas de Campos – com boas e solidárias exceções. Colunas sociais estão mais ao gosto de uma elite que condena a cidade a uma mediocridade angustiante, a um provincianismo coronelesco que envergonha e causa asco àqueles que verdadeiramente gostam da cidade.

E o povo? Bom, para chegar ao povo é preciso ter um nível de sofisticação de mídia que não caberia nos parcos orçamentos do jornal. Infelizmente, ganhar a preferência da população, a ponto de se transformar em um fenômeno, demanda cumprir um receituário que inclui sorteios de panelas, raspadinhas, noticiário policial, intimidade de artistas e matérias leves ao estilo televisivo. Claro que o orçamento pífio não seria o único impeditivo: por princípio editorial o NB não seguiria uma cartilha destas.

Ainda assim, apesar de não ter experimentado excessiva popularidade, o NB passou por experiências comunitárias marcantes, que muito honram a sua história. Além do fato de ter sido o primeiro jornal de bairro em Campos, o NB soube respeitar, resgatar e registrar aspectos da cultura popular que passam muito longe das páginas dos jornais diários do município.

Com a linguagem própria do NB também foi possível tratar com seriedade e honestidade os dramas sofridos pela população e cobrar soluções do poder público. A diferença esteve no estímulo à participação cidadã nas questões que envolvem a coletividade. Para o NB, associações de moradores, cooperativas, ou a palavra de uma dona de casa, foram mais importantes do que entrevistas de gabinetes.

Mas, ostensivamente doutrinada por uma linguagem jornalística que privilegia o entretenimento e a aquiescência, a população não chega a dispor de meios que lhe permitam compreender com nitidez a diferença entre uma publicação e outra. Na comparação, estávamos em desvantagem porque na primeira fase éramos em formato tablóide e em preto e branco, e, depois, mesmo standard, continuamos a não contar com boas e chamativas fotos coloridas na capa. O conteúdo e a proposta editorial, nesta relação, acabam importando pouco. Somente os fisgados pela chama da transformação, que ainda mantêm a capacidade de se indignar com a desigualdade social brasileira e entendem que parte da sua comunidade a possibilidade de mudar a realidade, compreenderam e apoiaram o NB. Estes viram no jornal a semente da contestação, do rompimento com um esquema de parceria entre poder político, imprensa e poder econômico.

Nem seria necessário dizer que um jornal assim incomoda. E o NB incomodou. Desde que nasceu, colocou a nu a forma de se fazer jornalismo em Campos e mostrou que a população não tem vez nas redações. O leitor é um acessório e a notícia uma possibilidade de fazer receita para as empresas jornalísticas.

O número irrisório de jornais locais vendidos nas bancas – perdendo feio para jornais nacionais e, claro, para O Dia – mostra como a população de Campos não tem vínculo de respeitabilidade com a imprensa do município. E, registre-se, este vínculo já existiu, como atestam jornalistas que pegaram auges de jornais como A Notícia e Monitor Campista.

A qualidade dos jornais no município é sofrível. E as razões para este descalabro já foram várias vezes tratadas pelos editoriais do NB, com ênfase para a falta de respeito aos jornalistas, baixos salários e a crença de que para ter receita publicitária basta ser lido por meia dúzia de sobrenomes, não é preciso conquistar a população.

É importante notar que o NB esteve muito longe de ter a qualidade esperada pelos próprios idealizadores do projeto e, ainda, não seria nenhuma novidade editorial em uma outra cidade onde regras básicas de um bom jornalismo fossem respeitadas. Mas, dadas as condições descritas acima sobre o que se pratica no município, o NB acabou se tornando revolucionário. E revolucionário por coisas simples como ouvir com honestidade sempre os vários lados envolvidos em uma questão, não ter a famosa lista negra – de nomes que não podem ser citados pelo jornal, ou seja, seus inimigos –, não ter preconceitos, abrir espaço para a crítica sem censura de um ombudsman, não entrar em conchavos, não misturar publicidade com jornalismo, só permitir que jornalistas (diplomados, com o perdão da redundância) escrevessem matérias para o jornal, ter uma pauta orientada pela defesa da cidadania, observar com rigor ético o seu produto jornalístico, entre outras ações consideradas básicas.

Mas tudo isso é estranho ao mercado publicitário, onde vale a máxima de que “se você não pode com o sistema, junte-se a ele”. Ética já não é palavra das mais citadas nas relações que envolvem grandes negócios. E publicidade é um grande negócio, por onde circula muito dinheiro e, portanto, muito poder. Numa cidade como Campos, deter potencial de investimento em mídia é ter poder, mandar nos jornais e ter peso nas decisões políticas. Portanto, investir em publicidade não é apenas uma estratégia para ampliar vendas, mas, a critério do cliente, pode ser um gesto político.

Uma publicação como o NB não interessa a esta roda. Não fala a mesma língua do mundo dos negócios. Não se submete a este mundo. Ao operar por uma lógica diferente, puramente jornalística, o jornal não pôde disputar em condição de igualdade a sua fatia neste bolo, pelo simples motivo de que não aceitava as suas regras. Por isso estamos aqui nesta edição de despedidas.

O curioso é que esta incompatibilidade do discurso do NB com os potenciais anunciantes não se restringiu aos clientes típicos do mercado, mas até a instituições que, por definição, deveriam se mais abertas a projetos como o do jornal. Chamou atenção, por exemplo – e foi determinante na decisão de fechar o jornal –, o completo desinteresse das universidades, faculdades, escolas secundárias, livrarias e editoras na última tentativa do NB em ser palatável a algum setor econômico (portanto, despertar investimentos publicitários) e, ao mesmo tempo, oferecer um produto de qualidade aos leitores, que foi o caderno Ler.

Todas as universidades, faculdades, escolas secundárias, livrarias e editoras presentes na cidade foram convidadas a serem parceiras publicitárias no caderno Ler, o único da história do jornalismo local que abriu espaço para a produção de artigos com tons acadêmicos e de debate, reunindo jornalistas e professores universitários na discussão de temas da atualidade, e nenhuma aceitou. Falta de verba para publicidade ou falta de interesse de que um espaço como este se consolidasse na imprensa? Para que fotos de seus diretores apareçam nas colunas sociais ou suas marcas sejam publicadas nos folhetins da society nunca falta dinheiro, mas, paradoxalmente, para divulgar o hábito da leitura e a oxigenação das idéias, nada.

Instituições que deveriam estar em um patamar acima da mediocridade geral do anunciante na cidade acabam por se nivelar por baixo quando ganha prioridade a vaidade dos que estão nos seus comandos, em detrimento da instituição em si e da produção do conhecimento.

Ainda assim, a história do NB é uma trajetória de vitórias. Se, por um lado, o bloqueio se fez e a incompatibilidade chegou ao ponto de não mais podermos circular, por outro, em muitas vezes foi possível estabelecer um relacionamento em outras bases, honestas, transparentes, como convém a empresas e instituições que se respeitam e respeitam ao público. Não seria justo omitir, por exemplo, que durante o tempo em que o NB esteve de pé centenas de anunciantes figuraram em suas páginas sem que nenhum deles tivesse do jornal algo além do próprio espaço pelo qual estava pagando. É motivo de muito orgulho para o NB o fato incontestável de que nunca, em suas 21 edições, houve sequer uma matéria que tivesse sido publicada “a pedido” ou “encomendada” por algum anunciante. E eles souberam respeitar isso, inclusive a Prefeitura de Campos – seguramente uma das maiores responsáveis pelas receitas dos jornais locais e que, como já se tornou histórico, manobra este potencial no controle do noticiário. O NB se fez respeitar.

Nas relações comerciais da empresa Nosso Bairro Editores Associados Ltda., que edita o NB, nunca houve um negócio que não pudesse ser contado em todos os seus detalhes e valores aos leitores do jornal, o que comumente não se aplica às empresas jornalísticas – tomadas que são de negócios escusos e interesses inconfessáveis.

A esta etapa da leitura, há quem possa estar se perguntando: de que adianta toda esta lisura se, agora, o jornal está morrendo? Não é preferível fazer concessões a inviabilizar o negócio? A resposta já antecipávamos nas edições de fevereiro de 98, quando o editorial afirmava que este tipo de opção poderia ser ingênuo, “mas para nós da equipe NB não vale a pena se não for assim. O que queremos é apresentar uma alternativa, não nos omitir”.

E é justamente o mérito de não ter se omitido, de ter se apresentado como alternativa, o que ficará da história do NB. Pelo menos por alguns meses esta cidade teve uma experiência jornalística que em nada parecia com as demais. Pelo menos por alguns meses esta cidade teve uma publicação que em nenhum momento abriu mão de existir com ética e decência.

Agora fica a sensação de que o que foi feito pelo NB nunca se perderá. Estará para sempre nos corações e mentes dos que, em algum momento, estiveram juntos nesta trajetória. Estará na lembrança de leitores como Jair Gonçalves, de Goitacazes, que fez questão de ser o primeiro a fazer uma assinatura na nova fase do jornal, ou de Ubirajara Silva, do Parque São Benedito, campeão de cartas ao NB e crítico atento de seu conteúdo, de Rosane Barcelos, do Parque Rosário, que confiou ao jornal a intimidade das suas poesias, e tantos outros que certamente sentem, como nós, a morte do NB equivaler à perda de um parente, um amigo, ou, como o jornal sempre disse ser, um vizinho chegado.

Estará marcada na história de cada um dos que participaram, pelo menos em algum momento, da deliciosa aventura que foi fazer o NB.

Morremos com a dignidade dos que não vivem a qualquer preço. Preferimos honrar a história de Campos com um exemplo de seriedade a existir na vala comum dos que a aviltam. Se tivermos impelido você, que leu este texto até aqui, a refletir sobre a imprensa local, já teremos cumprido o nosso papel – do qual teremos, para sempre, muito orgulho.

(*) Jornalista, editor do Nosso Bairro