Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O ano em que mídia ficou pelada

Alberto Dines

 

Foram poucas as situações, tanto no plano nacional como internacional, em que a mídia, ela própria, não foi notícia. Esteve em questão não apenas a informação trazida pela mídia mas a maneira de informar empregada pela mídia. A mídia foi agente e objeto, observadora e observada. Tentou ser poder e acabou flagrada pelos contra-poderes.

Em agosto de 1997, com a morte da Princesa Diana, a mídia foi sentada no banco dos réus. Pediu desculpas, choramingou, escapou. Este 98 mal havia começado (fim de janeiro) e estourou o caso Clinton-Lewinsky. Agoraficou. Desde os primeiros momentos o comportamento da mídia, foi colocado sob suspeita e convertido em notícia. Este OBSERVATÓRIO batizou o caso como “Midiagate”; meses depois, o novo xodó da crítica da mídia americana, Brill’s Content, ungiu-o como “Pressgate”. Em novembro, o comportamento da mídia no escândalo foi capa do semanário New York Magazine (23/11/98). Sintomático o lide da matéria: “Em que ponto concordam Clinton, Gingrich [republicano, ex-presidente da Câmara] e a opinião pública? Que a imprensa tem parte da culpa na grande confusão.”

A recentíssima aprovação do impedimento de Clinton pela Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados indica que o caso vai varar o ano. E a mídia vai junto.

Nas primeiras horas do “Midiagate” apareceu a surpreendente confissão do profissional de fofocas na Internet, Mat Drudge (que o tornou público). “Sou repórter, não sou jornalista”. Com isso previu e deu o mote para o transgênico “showlismo”, a abominável combinação de jornalismo com espetáculo que vai marcar as próximas décadas. Simultaneamente, mas em direção oposta, o comando da Newsweek anunciava que não publicaria a história envolvendo o presidente e a estagiária porque não dispunha de elementos suficientes para comprová-la. “…Antes de colocar o seu nome [de Monica] em letra de forma pela primeira vez e divulgar uma história que inevitavelmente mudará sua vida para sempre, os Editores sentem que necessitam de tempo para saber mais sobre ela, assim como os motivos dos outros personagens envolvidos…”

Dias depois, apesar desses escrúpulos, o nome da estagiária substituiria o da princesa Diana como ícone mediático mundial. A série de reportagens do New York Times sobre o desempenho da mídia em fevereiro é antológica não apenas pelo fato em si mas porque servem para avaliar a exaltação sensacionalista e denuncista adotada em outros episódios e paragens:

“…Pode-se divulgar informações ainda não comprovadas na suposição de que o público tomará conhecimento delas de qualquer forma ?…” (questão proposta por Tom Rosenstiel, diretor do Projeto de Excelência em Jornalismo, Universidade de Columbia) (Ver edição do OBSERVATÓRIO de 5/2/98 com a transcrição integral das matérias, em inglês e português.)

A cobertura da crise financeira internacional foi alarmista e insensata. Cada manchete agourenta confirmava-se obrigatoriamente pelo efeito psicológico que produzia. Se um jornal ou telejornal diz que você é a bola da vez, você será fatalmente a bola da vez. Nesse episódio escancararam-se as aberrações do nosso “jornalismo declaratório”, onde as opiniões de operadores de negócios, portanto interessados em influenciar o rumo das transações, foram magnificadas como manifestações de uma estranha entidade chamada Mercado. Autoridades e jornalistas responsáveis pela primeira vez comentaram o desempenho da mídia nesta matéria. (Ver edições de 5 de setembro e 20 de setembro.)

A “Farra da Copa” foi o nome que adotamos para designar a cobertura do Mundial de Futebol na França: extensa, saturada, trivial e desvirtuada. Quando chegou a hora de cobrir o episódio mais importante da competição – a convulsão de Ronaldinho horas antes do início da final – não havia um único jornalista, entre o meio milhar que lá se encontrava, com a intuição e o senso de responsabilidade para deslocar-se até a concentração e apenas farejar o que lá poderia estar ocorrendo. Abancaram-se todos no estádio para ver o jogo decisivo. A maior e mais dispendiosa cobertura internacional do jornalismo brasileiro foi um dos maiores fiascos da história do jornalismo brasileiro. Mostrou que o jornalismo esportivo (como o político, econômico, policial e de cidade), só sabe reproduzir o flagrante e produzir a declaração. (Ver edições de 5 e 20 de julho.)

Ano complicado para Veja, e não apenas porque passou a contar com um competidor de peso (Época, das Organizações Roberto Marinho) mas porque tropeçou nas próprias pernas ao aderir de corpo e alma ao vale-tudo. A obtenção irregular da confissão do “Maníaco do Parque” (antecipação de poucas horas apenas) foi assunto relevante do próprio noticiário de jornais, rádios e TVs. Chegou a produzir sindicância da OAB – caso inédito. A façanha seguinte, fotomontagem da cara de Clinton e do maníaco, arrogante e de mau-gosto, entrou para os anais da auto-avacalhação. Justamente quando a revista completava 30 anos de idade. (Ver edições de 20 de agosto e 5 de setembro.)

Ano pior para o telejornalismo da TV-Globo. Se em 1997 algumas de suas matérias ganharam as primeiras páginas dos jornais de todo o mundo (caso do trabalho de um cineasta-amador registrando as violências policiais na Favela Naval, Diadema, SP, e algumas matérias investigativas de grande classe), neste 1998 a CGJ (Central Globo de Jornalismo) foi malhada extensivamente pela mídia. Os 10 minutos no Jornal Nacional dedicados ao Show da Xuxa -Sacha ganharam a primeira página dos jornais e renderam longas polêmicas com visível desgaste para emissora. A pseudo-reportagem com o mesmo “Maníaco do Parque” mostrada no Fantástico, co-produção da CGJ e CGP (Central Globo de Produções que cuida de novelas) provocou uma grave crise interna cujos resultados ainda não apareceram. O desgaste da platinada foi ainda maior. (Ver edições de 5 de agosto e 5 de dezembro.)

Confirmaram-se as advertências que este Observatório vem fazendo desde a sua fundação, em 1996: a participação de empresas jornalísticas no processo de privatização das teles seria desastroso sob o ponto de vista institucional – conflito de interesses – e financeiro – dificuldades de caixa. Acertamos nos dois casos, infelizmente. A Folha teve o bom senso de pular fora da concorrência logo depois do primeiro leilão, o JB não tinha recursos, a Abril preferiu brigar no campo da TV por assinatura mas as Organizações Globo, RBS e Grupo Estado entraram de corpo e alma. Saíram esfoladas. Atoladas em dificuldades financeiras. Para a mídia brasileira, 1998 foi o “annus horribilis” em matéria econômica, o ano da verdade. As empresas balançaram, algumas fecharam, mas o que ruiu foi o modelo de jornalismo marqueteiro, e trivial implantado imediatamente após o fim do regime militar. Os promotores deste modelo foram os consultores da Universidade de Navarra que agiram de Norte a Sul. (Ver edições de 5 de agosto e 5 de outubro. )

A cobertura eleitoral praticamente centrada nas prévias eleitorais – fenômeno que este observatório designou em 1997 de “Pesquisite” – provocou aberrações e distorções gravíssimas. A principal: a hegemonia dos marqueteiros, que, por sua vez, só trabalham com pesquisas. A principal vítima foi o processo democrático. Desapareceu a reportagem política e o confronto de idéias. Os debates finais pela TV foram mera exibição de truques e truculências. Os candidatos ao pleito presidencial foram aquinhoados com espaços proporcionais às preferências demonstradas nas prévias. Em alguns veículos os resultados das sondagens para governador passavam a ser colados junto aos nomes do candidato até a próxima sondagem. Concebidas como flagrantes momentâneos, as pesquisas converteram-se assim em sentenças definitivas. Esta utilização abusiva das prévias, inclusive nos últimos momentos antes dos dois turnos, produziu um fato inédito: a convocação de uma CPI para examinar os auto-intitulados “Institutos”. A mídia habilmente tirou o corpo e pulou fora do banco dos réus. Ficaram as empresas de opinião pública que, na verdade, trabalhavam para os veículos de comunicação. Esta é uma CPI que jamais será instalada e, se for, ficará na superfície. (Ver edições de 5 de outubro e 20 de outubro.)

No ano em que se relembram os 30 anos da promulgação do AI-5 com a instalação formal de um sistema de censura prévia (13/12/98) e também os 20 anos da sua auto-extinção (31/12/78), dois grandes jornalões paulistas e a maior revista semanal de informações (também editada em S. Paulo) demonstraram sem constrangimento e pudor que o livre fluxo da informação e opinião é ilusório. A Folha vetou um artigo deste Observador na véspera do 2º turno sob a alegação de que infringia o apartidarismo do jornal. Também não forneceu o artigo para os demais jornais-assinantes da coluna. Alguns chiaram, o caso acabou vindo a público. Já o Estadão suprimiu um artigo do escritor João Ubaldo Ribeiro onde fazia severas – mas respeitosas – críticas ao presidente da República. O caso também veio a público e o Estadão acabou publicando o texto na semana seguinte com explicações de ordem “técnica”. Veja afastou o seu colunista de TV, Eugênio Bucci, porque achou que este não a defendeu num programa de TV onde se discutia aquela capa da revista com a confissão do “Maníaco do Parque”. Escancarou-se o grande faz-de-conta: Fingimos Que Somos Livres E Os Veículos Fingem Que São Imparciais. (Ver edições de 5 de setembro e 5 de novembro.)

A tentativa de produzir um grande escândalo político acabou atingindo em cheio os veículos que afoitamente, sem os devidos cuidados, o produziram. Na realidade foi uma guerra entre três revistas de informação para tentar conquistar credibilidade, a que os diários apenas acompanharam. A falsificação do papelucho de Cayman que tentava atingir a honorabilidade do presidente, dois ministros e um governador, assim como a divulgação parcial das conversas gravadas clandestinamente entre o Ministro das Comunicações e o presidente do BNDES funcionou como um bumerangue: a imprensa foi novamente atingida. No primeiro caso porque divulgou amplamente o teor de papéis falsos sem verificar sua autenticidade e apresentou as vítimas de uma chantagem como culpados de graves infrações. No segundo, porque invadiu a privacidade de alguns cidadãos e, sob o pretexto da defesa do interesse público, retirou as fitas do sigilo judicial, editando e tirando do contexto o que fora gravado. A publicação das íntegras teria resolvido a questão. Quase não houve investigação: os dois “documentos” (papéis e fitas) chegaram aos jornalistas através de grupos de interesses – de oposição e de dentro do governo. (Ver edição de 20 de novembro.)

O Sistema Mediático começou a ser desnudado pelo próprio Sistema: neste ano, quatro filmes sobre a mídia, produzidos pelos grandes impérios de comunicação americanos, foram mostrados ao público brasileiro. Trouxeram para o grande público, com os paradigmas de linguagem do próprio Sistema, as brechas e disfunções no jornalismo e na mídia contemporânea.

Este Observatório ofereceu neste ano decisiva contribuição para levar a amplos setores da cidadania o debate sobre a imprensa. Estimulamos a criação de uma atitude participativa dentro da sociedade, até então passiva diante da mídia. Quando completamos dois anos de edições regulares on-line e dez edições impressas, chegamos à televisão (TVE e TV Cultura) com um programa semanal com reportagens, debates, depoimentos. Caso raro nos anais do media-criticism, mas também da própria mídia: um veículo criado na Internet converte-se num veículo da rede aberta, de massas (o contrário é a regra). As três versões do Observatório da Imprensa, embora com linguagens específicas de cada meio, ajudaram a criar uma consciência de que a mídia precisa ser observada e, a partir desta observação, obrigada a requalificar-se para cumprir com os seus compromissos legais. Ajudamos a provar que a auto-regulamentação do mercados é uma balela.

Balanço do Balanço: a mídia não se contenta com o papel constitucional de prestadora de um serviço público. Quer ser poder, ferrou-se. Louca para mostrar que o rei está nu, a mídia ficou pelada.

 

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Observatório, 1998, edições de

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20 de outubro

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20 de novembro