Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O Caderno 2 e a inteligência do leitor

Francisco Moreno de Carvalho

 

Dia 6 de julho e uma matéria de capa no Caderno 2 do Estado de S.Paulo deixa qualquer um estarrecido. Um grupo de “pesquisadores” (entre eles, uma “paranormal”), unidos em torno de um tal de Projeto Tapajós – “Em busca da verdadeira pré-história do Brasil” quer provar, segundo a chamada da matéria, assinada por Júlio Gama, que “…povos inteligentes viveram no país há 6 mil anos”.

Que muita bobagem vai rolar por ocasião dos tais 500 anos do Descobrimento do Brasil, para os menos informados “500 anos de Brasil”, é certo. Que valeria a pena instituir um prêmio “besteirol 500” para as melhores pérolas da incultura local, valeria. Mas a referida matéria merece um prêmio especial, pelo conjunto de bobagens por linha quadrada (uma nova forma de medida que eu acabei de criar, escreve-se blq ou bl²).

Em primeiro lugar, a matéria é racista. Sim, racista. Nada parecido com aquele sujeito que saiu atirando em negros, judeus e asiáticos lá nos Estados Unidos, ou sequer parecido ao racismo daqueles rapazes que adoravam servir de atores ou figurantes nos filmes da Leny Rifenschtal. Mas aquele famoso e triste racismo brasileiro enrustido e mal-ordenado. Sim, querem provar que havia por aqui “povos inteligentes”.

Significado: índio não é inteligente!

Ou seja, os tais “pesquisadores”, o jornalista que foi fazer a matéria sobre eles e o jornal que deu a ela o destaque de matéria de primeira página concordam que inteligência não é uma característica nem dos índios brasileiros nem de seus ancestrais. Isto está escrito com todas as letras na matéria. Citando: “Ruínas, pinturas rupestres, gravuras esculpidas em pedras e inscrições rúnicas (…) levaram o grupo de pesquisadores a concluir que, antes da chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral, em abril de 1500, o Brasil foi habitado por povos inteligentes de cultura civilizada, não-indígena, nada primitivos.” (grifo meu). Ou seja, índio não é civilizado, é primitivo e não tem inteligência!

Confundir inteligência com diferentes estágios de desenvolvimento científico e tecnológico de diferentes culturas em locais e épocas distintos seria de um primarismo estúpido se a catalogação de grupos humanos como “não-inteligentes” não fosse cheia de conseqüências funestas. O pretenso “direito” ao extermínio dos não-portadores de inteligência é a mais conhecida. O direito dos “senhores” portadores da inteligência de governar a malta ignara dos que careceriam deste atributo, o mais difundido. Falar em grupo humano inteligente é pleonasmo, já que a inteligência é um atributo de nossa espécie, independentemente do desenvolvimento tecnológico que se alcance. Aborígenes caçadores da Austrália não são nem menos nem mais inteligentes do que finlandeses com PhD em informática.

O mais grave no projeto de pesquisa dos tais “pesquisadores”, financiados por duas empresas, Siemens e Bayer, que colaboraram ativamente com o esforço de guerra alemão na Segunda Guerra Mundial, empregando mão-de-obra escrava nos campos de concentração criados por aqueles que se consideravam filhos de uma cultura mais “inteligente” que as demais, é a idéia de provar a presença de europeus na América Pré-Colombiana. Para tanto vão procurar indícios de presença nórdica e céltica. Cometem, para tanto, verdadeiros atentados históricos. Povos europeus que viveram há mais de 6.000 anos, quando nem as civilizações mais antigas do planeta, como a sumeriana e a egípcia, existiam, teriam as condições técnicas para cruzarem o Atlântico. Os fenícios teriam aprendido a fazer seus barcos a partir do modelo dos armoricanos, povo céltico da região hoje francesa da Bretanha, que ao contrário dos fenícios jamais chegaram ao estágio urbano de organização social.

Fora isso, temos ainda uma “paranormal” responsável pela interpretação de pictogravuras e desenhos rupestres (a matéria não deixa claro se ela interpreta diretamente os sinais ou se conversa com os autores, falecidos há centenas ou milhares de anos). Há até um outro que procura raízes eslavas e germânicas na língua quéchua (que o jornalista Júlio Gama, talvez por pertencer à escola nova do jornalismo do press release, escreveu como se pronuncia, quétschua, e não da maneira consagrada em nosso idioma), quando todo lingüista sério sabe que não há parentesco possível entre os idiomas indo-europeus e os ameríndios, tampouco entre estes últimos e os semíticos, como tentam alguns caçadores de quimeras provar desde o século 17.

Quanto aos indícios da tal presença européia pré-colombiana, bem, muita tinta já se verteu sobre isso. Durante algum tempo, defendeu-se a tese da chegada de navegantes fenícios à região que hoje é o Brasil. Chegou-se a publicar uma inscrição, pretensamente fenícia, narrando as desventuras da tripulação e assinada pelo seu comandante, um certo Badezir, primogênito de Jetbaal. Só que os tempos são outros, o meso-oriente não é exatamente um bom lugar para se ter ancestrais, e nestes novos tempos de hegemonia branca e norte-européia (e de sua extensão além-mar, a norte-américa) há que se encontrar as novas “provas” dos navegantes europeus intrépidos que aportaram por estas plagas, sem contudo terem conseguido erigir aqui uma civilização digna de seu grau de “inteligência”. Isto porque, talvez, há 6.000 anos os povos que habitavam a Europa eram tão “primitivos” quanto os habitantes das Américas, e os vikings, bem, sabe como é, clima quente, endemias, só mesmo português podia ter topado uma parada dessas. Logo mais chegarão os apologistas dos “deuses astronautas” e seus discos voadores. Realmente, como papel não se revolta, tudo pode ser escrito e publicado.

Que empresas que não tenham melhor destino a dar a seus excedentes resolvam financiar um projeto sem pé nem cabeça, bem, são as regras do sistema capitalista que neobobos como nós temos que engolir. O que causa mesmo calafrios é que um caderno cultural de um dos mais prestigiosos veículos de comunicação em idioma português tenha aberto tanto espaço e dado tanto destaque a uma sandice racista desta natureza. O tamanho das páginas dos jornais diminuiu, mas isto não significa que a inteligência dos leitores tenha diminuído proporcionalmente e seja objeto de tamanho grau de desprezo.

 

Carlos Vogt

 

Os tempos andam mesmo bicudos.

Até as Forças Armadas entram em licença compulsória para economizar custeio: água, luz, telefone, papel, papel higiênico etc.. Foi o que aconteceu na Argentina, país vizinho e derrotado pelo Brasil, na Copa América (“É bom demais ganhar da Argentina”, triunfava Galvão Bueno, na Globo), em que, segundo a imprensa, mais de 40 mil soldados das três armas receberam férias coletivas, em julho, por falta de orçamento para mantê-los em atividade, ou nos quartéis, o que é paradoxal e dá no mesmo.

Bicos da globalização.

Parece que já não precisamos mais do papel de nossas armas protetoras. Já não nos tememos como antigamente, irmanados que estamos na sinuca global em que vamos sendo nivelados por baixo, confirmando tendências de consolidação de blocos regionais de economia, de unificação de moedas e de transnacionalização de limites e de identidades culturais. As nações, é claro, não existem, ou não existirão como antes, se o compasso da música continuar marcando o caminho de nossa igualdade, na pobreza.

Não que eu defenda estados militares. Longe de mim. Mas língua, pátria e nação sempre supuseram um exército, uma moeda e, hoje, mais do que nunca, ciência e tecnologia. Como tudo está virando de pernas para o ar (e nem é o mundo de cabeça para baixo, como queria para a ideologia o velho Marx), logo, logo, os estados nacionais serão lembranças e, quem sabe, nostalgia para os sentimentais – como a Brahma e a Antárctica que, fundidas, acabaram, na voz da imprensa, consagrando o saudoso Vicente Mateus, que filósofo já era, em profeta da globalização. “Agradecer a Antárctica pelas Brahmas enviadas” acabou – lanterna na popa – virando vaticínio dos destinos do capitalismo brasileiro no século 21 e, ipso facto, prova contundente do alinhamento de nossa economia com o mundo mundializado, com perdão da redundância e do “redondismo”. Para tanto, basta conferir a capa triunfal da revista Veja, de 7/7/99, que exibe como troféu uma garrafa híbrida e grávida dos novos tempos da história futura de nossa economia e da vida de nossas empresas.

Sem sabor

Mas nem só de cerveja e de soldados viveu a nossa mídia/imprensa nesses dias. A instalação da Ford em Camaçari, na Bahia, ocupou o plantão de nossas atenções mais profundas e mobilizou páginas e quadros nos jornais, nas revistas, na televisão, no rádio.

Ficamos hipnotizados à espera do gesto que passou, segundo a mídia/imprensa, a ser o divisor de águas dos governos de FHC. Ou vai ou racha, quer dizer, ou muda para continuar como está ou continua como está para não mudar. Ganha Fernando Henrique, ou vence ACM. O presidente desembainha a espada e corta o nó górdio do imobilismo do governo, mostra quem manda e manda ACM para casa, ou fica ele próprio na casa de mãe joana procurando o eixo perdido que o Suplicy pensou que tinha perdido e jamais encontrou. Os chineses nacionais, quer dizer, alguns políticos nordestinos que sempre foram explorados pelo sul e que fizeram com seu povo eleitor, segundo ACM em entrevista ao Estadão (12/7/99), a riqueza de São Paulo, levarão a bandeira da descentralização do desenvolvimento para as regiões mais pobres do país e aí plantarão definitivamente a semente do progresso globalizado? A Ford, que, na época de JK não queria implantar-se nos trópicos, alegando incompatibilidades técnicas e tecnológicas dos motores a explosão com a explosão do clima no Brasil, será essa mesma Ford o paladino da redenção do equilíbrio entre as históricas diferenças regionais no país? É essa a última e derradeira chance de Fernando Henrique Cardoso, como querem aliados e amigos, inimigos e desalinhados, virar a mesa e, num abre-te sésamo de vigor, decretar os novos tempos de fausto, glória e emprego da Novíssima República? Ou, depois de toda a expectativa alimentada pela imprensa/mídia, o presidente simplesmente será, singela e espetacularmente, igual a si mesmo e, num dar de ombros corriqueiro para o momento, que a voz da opinião nacional transformou num dia do fico, dirá para os que, bocas abertas e sedentas de mudanças radicais, esperam seu aceno de luta: “Nem Ford nem sai de China!?”

Só mesmo pedindo uma AmBev bem gelada, que isso, pelo menos por enquanto, ninguém sabe o sabor que tem.

 

Paulo Polzonoff Jr.

 

Uma frase bastante criticada de Paulo Francis dizia que subdesenvolvido não tem memória. No caso Ford isto se mostrou verdadeiro. A imprensa tudo disse e redisse e depois desdisse sobre o caso – esquecendo, porém, que o Brasil, num passado não tão remoto assim, negou qualquer incentivo à indústria automobilística, pelo menos para a nacional. Os números foram expostos em infográficos multicoloridos, tentando explicar as vantagens de se dar alguns bilhões de reais em incentivos à terceira maior indústria automobilística do mundo em troca de cinco mil empregos, enquanto articulistas pró e contra se digladiavam em torno da questão moral dos incentivos.

Ninguém, porém, tocou no nome do Sr. João Conrado do Amaral Gurgel. Este senhor foi o responsável pela maior empreitada automotiva de capital nacional. Engenheiro formado pela USP, na década de 60 Amaral Gurgel fabricava minicarros e karts para crianças. Com a proibição das importações de carros em 1976, ele vislumbrou a possibilidade de uma indústria de capital e tecnologia nacionais, a preços mais baixos do que os das multinacionais. Em 1981 inaugurou uma fábrica em Rio Claro, interior de São Paulo, e lançou o primeiro carro nacional: o X-12, um pequeno off road de chassi tubular reforçado com componentes de fibra de vidro. O carro só não era 100% tupiniquim porque usava motor Volkswagen. Foi também em 1981, época de Proálcool, que Gurgel lançou uma van elétrica, o Itaipu. O carro foi um fracasso de vendas porque tinha desempenho fraco (atingia no máximo 70 km/h) e o custo das baterias era muito alto. Mesmo assim, Gurgel não desistiu da idéia dos carros elétricos e desenvolveu vários protótipos, nenhum, porém, viável economicamente. Em 1986 a Gurgel lançou o Tocantins e o Carajás, ambos sucessos de vendas.

O maior feito de Gurgel, porém, foi o projeto Cena (Carro Econômico Nacional), desenvolvido entre 1984 e 1988. O carro deveria ser inteiramente nacional, de custo inferior a 3 mil dólares e de manutenção simples e barata. Em 1988, o BR-800 começou a ser produzido em série. Na época, o governo federal concedeu um belo incentivo à empreitada: 5% de IPI, contra 25% dos outros carros. O preço não foi o estimado, mas mesmo custando 7 mil dólares era 30% mais barato que os similares. Nos dois primeiros anos, todas as unidades do BR-800 foram destinadas a quem comprasse um lote de ações da Gurgel, o que encarecia o produto em mais de 100%. Mesmo custando cerca de 15 mil dólares, o carro foi um sucesso de vendas.

Em 1990, quando o BR-800 começava a ser vendido sem a vinculação dos lotes de ações da empresa, o governo puxou o tapete da aventura nacional. Com a isenção de IPI para carros com volume menor do que 1000 cm³ de cilindrada, a Fiat lançou o Uno Mille, que oferecia mais espaço e desempenho. Numa tentativa desesperada de retomar o projeto, a Gurgel lançou o BR-Supermini, mas já era tarde. Em 1992 a empresa entrou em concordata e em 1995, com uma dívida de 3 milhões de dólares, faliu.

Gurgel não conseguiu empréstimos do BNDES. Nenhum estado propôs pagar sua dívida nem financiar a construção de uma fábrica sua.

Subdesenvolvido talvez não tenha memória para não ter de sofrer de remorso.