Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O colapso pelas lentes do jornalismo

CRISE ARGENTINA

Ivo Lucchesi (*)

Eis que a face trágica do tango dolarizado ficou exposta na pista de dança latino-americana, sob o som orquestrado pela razão perversa da Nova Ordem Mundial. Por sua vez, FMI, BID e Banco Mundial, responsáveis pela "partitura falimentar", assistem de camarote ao drama que eles, diligentemente, conceberam e executaram ? ou, pelo menos, assinaram. Tudo foi cumprido, passo a passo, até o clímax da catástrofe. Com ela, parece rejubilar-se uma platéia sedenta de sangue a correr nervosamente para o Coliseu da fome, a fim de não perder nenhum instante de agonia de uma sociedade imolada.

O teatro do horror

Apagam-se as luzes, abrem-se as cortinas. Todos em sôfrega expectativa. De um lado, diretor, produtor, elenco; de outro, olhares atentos da platéia midiática, num encontro perfeito entre o sadismo econômico-financeiro e o masoquismo cultural. A mídia oficial, não menos sequiosa, está pronta para a mais completa cobertura sobre os destinos de um corpo societário entregue à mais absoluta indiferença dos poderosos. A população argentina, na verdade, é transformada num navio-fantasma a sobreviver desesperadamente como náufragos do Titanic neoliberal. A esse quadro de flagelo somam-se pitadas da pífia política latino-americana, envolta em renúncias, posses, promessas, desmentidos.

Dezenas de matérias, com suporte de centenas de imagens, lembram os conflitos de rua em Seattle, Davos, Gênova. Tudo parece estar registrado e em tempo real. Só não puseram a mão na ferida verdadeira, afora esparsos artigos aqui e ali, diluídos ante a avalanche dramática gerada pelo cotidiano de vidas errantes.

À margem da verdade

Uma população inteira (ou sua maior parte) se viu traída pela inexpressiva classe de protopolíticos, enquanto é atraída para o abismo, sem mínima oportunidade de defesa. Assalariados e desempregados se tornaram reféns de um crime perfeito, como classificaria Jean Baudrillard. Apenas a vítima existe, acompanhada de "narrativas" que dão conta do martírio vivido. Saques, panelaço, quebra-quebra montam o cenário da violência ilimitada, enquanto a rede bancária dita as normas quanto ao que o "governo" pode ou não pode fazer e a "grade midiática" repassa a leitores e telespectadores textos oficiais liberados.

Pelo tratamento destinado à maioria das matérias, fica a impressão de que a crise da Argentina parece haver-se originado por conta de uma semana nefasta, quando, na verdade, é oriunda de um processo tanático construído ao longo de década e meia. Aí a conversa é outra. Dessa outra, a mídia oficial não quer saber, ou não tem competência para fazer-lhe frente. Com indisfarçado e pueril savoir-faire, noticia os mais recentes e impactantes acontecimentos, realimentando a espiral do drama e ocultando os artífices da trama. A mídia se alimenta da excitação diária. Para isso, silencia e sepulta a reflexão sistêmica e histórica. Ora, bem sabemos que o estado de excitação é incompatível com a serenidade exigida pela reflexão.

A ingenuidade conivente

A mídia, deusa da objetividade e rainha da informação, jamais se deu conta de que Menem, Collor, Fujimori, entre outros, são variações de uma mesma matriz: a tanatocracia. O assassinato do filho de Menem foi exposto pela dor da mãe, logo transformada em "louca traída". O escândalo a envolver o "príncipe das Alagoas" adveio da ira de um irmão também traído. As falcatruas do nipo-peruano ganharam manchete quando o "homenzinho", como todo ditador doméstico, começou a contrariar interesses internacionais (a exemplo do que, em fins dos anos 50, representara a figura de Fulgêncio Batista, em Cuba).

Em nenhum momento suspeitou-se de que os "ilustres desconhecidos", alçados pelo marketing midiático e pela incultura generalizada da massa votante (com ou sem fraude) ao cargo máximo de suas respectivas nações, estavam sendo financiados pela mesma ordem do capital, cujo interesse único é assegurar para si fartos montantes oriundos de dívidas historicamente manipuladas. Agora, essa mesma ordem lança ao sofrido e enganado cidadão argentino o aceno de um famoso musical: "Não chore por mim, Argentina!".

O Brasil, vaticínio à parte, está na fila… Ao seu redor, em efeito dominó, forja-se o cinturão da agonia, já integrado por México, Argentina, Paraguai, Bolívia, Colômbia e Venezuela. Estará a mídia (impressa e eletrônica) contabilizando o caminhar desse processo? Por outra, qual deverá ser o futuro do Mercosul, ante a progressiva escalada do flagelo das economias que o integram? Fará tal quadro parte de uma estratégia comandada por quem tem interesse em acolher tais "mercados", sob o gerenciamento austero da ALCA? Bem, caros jornalistas de plantão, até quando vamos brincar de "informar"? Haveremos também nós de pagar, além do infinitamente pago, por conta de um "jornalismo neutro", em nome do profissionalismo sério?

A missão ética do jornalista não pode abdicar da função essencial que lhe cabe desenvolver, principalmente numa sociedade na qual a mediania de sua população não detém a instrumentalização mais sofisticada para o exercício da autonomia crítica, ou será também que a maior parte de jornalistas não a tem? Aí, o problema é ainda mais grave…

Quem paga a conta?

A crise argentina veio à tona, embora os periódicos alardeassem que os "governos", ao longo do tempo, haviam cumprido todas as metas orientadas pelo FMI. Se o dever de casa foi bem-feito, como a economia argentina perdeu o controle sobre seus próprios rumos? Nesse caso, que penalidades e/ou responsabilidades recaem sobre o FMI? Não se vê a mídia oficial tematizar tais questões. Por quê? Ou tais indagações não procedem? Tudo não passa de mera paranóia? Onde estavam os colunistas responsáveis pela cobertura dos assuntos econômicos e que blablablá diariamente era falado ou escrito, capaz de ocultar tamanha gravidade? Enfim, é indispensável que da crise argentina se extraia uma lição não apenas de princípios econômicos mas, principalmente, aquela atinente à responsabilidade no exercício de uma profissão tão bela. Todavia, essa beleza depende do quanto à profissão se empresta de esforço crítico-pensante, sob pena de transformar-se na muleta dos poderosos.

(*) Professor de Teoria da Comunicação, ensaísta, mestre em Literatura Comparada e doutorando em Teoria Literária pela UFRJ. Participante do programa Letras & Mídias, exibido mensalmente pela UTV.