Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O contágio das fraudes

FANTÁSTICO

Muniz Sodré (*)

É muito provável que os milhões de telespectadores do Fantástico, da TV Globo, tenham ficado perfeitamente convencidos das fraudes supostamente praticadas pelo sensitivo mineiro Thomas Green Morton. O episódio é conhecido. Há meses, o programa televisivo exibia, nas noites de domingo, a quase-novela do desafio entre o milionário prestidigitador norte-americano James Randi e Thomas Green Morton: o mineiro receberia uma bolsa de 1 milhão de dólares se conseguisse provar que seus alegados fenômenos paranormais não são fraudulentos. Na expectativa do encontro final entre Randi e Morton, mágicos profissionais demonstravam os muitos modos de se produzir fraudes.

Apesar da abordagem sensacionalista, todo o episódio deixa transparecer questões jornalísticas importantes. Em primeiro lugar, vem a evidência da capacidade da mídia eletrônica de construir ou destruir com uma boa edição de imagens a reputação de um indivíduo. Em segundo, pode-se colocar a pergunta sobre que possibilidades tem um meio de comunicação apoiado no senso comum de lidar com fenômenos há muito tempo designados por Sigmund Freud como Unheimlich, algo como "inquietantemente estranhos".

É preciso frisar, antes de tudo, que o senso comum é algo muito valioso, enquanto estabilizador da consciência corriqueira e cotidiana no convívio social, e também que está sempre alerta para as mistificações freqüentes no terreno dos fenômenos reputados como estranhos. E é forçoso deixar claro que o senso comum é da ordem do verossímil e não do verdadeiro, como bem frisava Roland Barthes:


"O verossímil não corresponde necessariamente ao que foi (pois não pertence à história), nem ao que deve ser (pois não pertence à ciência), mas simplesmente àquilo que o público julga possível e que pode ser totalmente diferente do real histórico ou do possível científico".


O jornalismo, como bem sabemos, tem suas regras públicas de verossimilhança, pautadas por um consenso profissional sobre o escopo da objetividade dos fatos. Num livro de anos atrás sobre as relações das regras de credibilidade jornalística com os fenômenos ditos "paranormais", indicávamos:


"O choque do reputado inverossímil provoca reações adjetiva (?delirante?, ?inquietante? etc.) ou então envereda pelo ponto delicado da fraude. Esta, como se sabe, é comum no domínio dos fatos ditos paranormais, tanto mais quando se registra um público numeroso e ávido de contato com fenômenos que lhe permitam contornar as fronteiras do desconhecido" (cf. Jogos Extremos do Espírito, Editora Mauad, 1994).


A reação jornalística, entretanto, depende do quadro em que se registrem os fenômenos estranhos. Quadro (frame, na língua inglesa) é, na microssociologia de Erving Goffman, um…


"…dispositivo cognitivo e prático de organização da experiência social que nos permite compreender e participar daquilo que nos acontece. Um quadro estrutura não só a maneira pela qual definimos e interpretamos uma situação, mas também o modo como nos engajamos numa ação".


Frente a um quadro espírita, católico ou evangélico, e diante de fenômenos como espíritos elevados, milagres de santos ou incorporações do Espírito Santo, a posição jornalística não tem o mesmo ímpeto desmistificador revelado no âmbito de quadros socialmente não-hegemônicos.

Nessa margem de quadros institucionalmente desprotegidos, o senso comum desmistificador pode encarnar-se no mais sisudo jornalismo, assim como na frívola mídia de entretenimento. Em sua prática, o jornalista, um profissional da verossimilhança pública, quase que se obriga a desmistificar o estranho (isso transparece na sistematização de um mesmo viés aplicado aos fenômenos extraordinários), porque "não é a supra-realidade que interessa ao jornalismo, e sim a precisão verificável", como já acentuou um jornalista.

Obsedada pelo imperativo de verificação da verdade do mundo (quando de fato está no campo do verossímil), orientada para a pura credibilidade, a mídia suporta mal qualquer relação suspeita de imaginariedade, a não ser aquela por ela mesma produzida em suas esferas de entretenimento ? isto é, dramas, telenovelas, jogos etc.

Mas a História tem mostrado que, ao lado da fraude mistificatória, é possível existir também a desmistificação fraudulenta. São vários os exemplos históricos de profissionais desmistificadores de médiuns famosos que mais tarde confessaram ter trucado a suposta prova da fraude mediúnica, a serviço de interesses nem sempre muito claros. Houdini, o famoso ilusionista e adversário exaltado de paranormais, foi um deles.

O que o programa televisivo Fantástico deixou de informar é que existe há muito tempo uma espécie de guerrilha particular de algumas figuras importantes da grande ciência contra a parapsicologia e seus objetos teóricos. São exemplos Archibald Wheeler, grande especialista em gravitação; Isaac Asimov, químico notável e escritor de ficção científica, e Carl Sagan, astrofísico de renome mundial. Pois bem, estes mesmos três foram sócios do mágico James Randi numa publicação (Skeptical Inquirer) destinada a denegar os chamados fenômenos paranormais.

São mais ou menos obscuras as causas do interesse desse esforço desmistificatório. Pode ser que esteja aí em jogo a causa de um tipo de verdade científica, muito amarrada à Física clássica e ainda aversa às "novidades" dos microcosmos, onde um número cada vez maior de partículas elementares da matéria realizam "aberrações" do senso comum, como a bilocação e o salto sem trajetória de um ponto para outro. Mas pode ser também que as causas sejam mais mesquinhas.

Em meio a esse cardume de peixes graúdos, tentou movimentar-se o mineiro Thomas. Trata-se de um indivíduo simples, movido por senso comum, mas de fato um estranho atrator de fenômenos intrigantes. Arrancado de seu contexto, isto é, do quadro local e perceptivo (os riachos, os minerais, os raios do interior de Minas) onde normalmente desenvolve as suas atividades, arrisca-se a façanhas para manter a onipotência de uma identidade e vê esmaecer-se o vigor de sua fala. O Fantástico, como Houdini, o expôs cruelmente. Mas não informou realmente o telespectador sobre a inquietante estranheza do real.

(*) Jornalista, escritor e professor-titular da UFRJ