Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O contra-autoritarismo da mídia

ARGENTINA

Jorge Marcelo Burnik, de Misiones (*)

Como a continuidade de uma tragédia moderna, concomitantemente marcada por velhos e sempiternos problemas, o povo e a mídia redescobrem quão multicromática pode ser a interpretação da crise que nos define.

Na passada semana, a mobilização social argentina foi manchete da mídia dentro e fora do país, com a morte de dois manifestantes na marcha convocada pelos autodenominados "piqueteiros", quando a polícia e outras forças reprimiram indiscriminadamente. Um fato este até ali de gravidade "quase habitual" exercida pelas forças públicas do país. O que iniciou o alvoroço foi o cotejo entre a explicação oficial e o "testemunho" da mídia.

A indignação coletiva veio com o contraste entre as declarações do delegado que chefiava a policia de Buenos Aires, Alfredo Franchiotti (principal suspeito de ter fuzilado literalmente um dos manifestantes) e as imagens captadas pela mídia. Da perspectiva policial, as explicações surgidas em improvisadas coletivas, nas quais o delegado declarou não ter entrado na estação na qual foram mortos Kosteki e Santillán (piqueteiros), contrapuseram-se às imagens mostradas pela mídia e ao próprio discurso do delegado ao ilustrar, na mesma coletiva, alguns segundos depois, que "ele mesmo ajudou a tirar pessoas feridas da estação de trem" (onde supostamente nunca entrou).

O Caso Cabezas

O que delatou o abuso policial, desta vez, foram as câmeras que, pelo vídeo e as fotografias, apresentavam a seqüência da violência, aplicada como regra na práxis oficial. A maioria ? senão todos ? dos canais de TV mostrava a coletiva em que o delegado falava a respeito de sua atuação e de seus subalternos, que se contradisseram abertamente diante das imagens publicadas no dia seguinte em toda a imprensa. A autópsia de Dario Santillán, uma das vítimas, revelou que o jovem foi atingido por um tiro de escopeta nas costas, e sua morte foi causada pelos múltiplos ferimentos dos projéteis de arma de fogo.

Ademais, e segundo o registro das câmeras, o manifestante morreu por tentar prestar socorro a um colega (Kosteki, morto também). No primeiro momento a posição do governo foi de minimizar a importância do fato, com a versão de um justiçamento entre manifestantes, "quando um piqueteiro teria matado outro". Logo depois da publicação das imagens na imprensa e da aparição de diversas testemunhas da violência policial naquele nefasto dia, a posição do governo mudou, e até Duhalde acabou falando em "cacería" (carnificina).

Mas as análises foram além do fato de violência que pode, despercebidamente, parecer isolado, pois, como lembrou o jornalista Martín Granovsky (Página 12 de 30/6/02), "também Duhalde viu-se envolvido em situações difíceis em sua passagem pelo governo de Buenos Aires, quando foi assassinado o fotógrafo José Luis Cabezas (em Pinamar, em 25/1/97, no caso Yabrán, similar ao de PC Farias). Ficou então comprovado que foram policiais os cúmplices na morte do fotojornalista.

Nos acontecimentos da Estação Avellaneda, logo depois da comprovação da inverossimilhança das afirmações do delegado, Duhalde falou de “atroz cacería”, em referência à atitude dos policiais na contenção social. O atual governador de Buenos Aires (Felipe Solá) saiu à cata da mídia para expor que "alguns piqueteiros, os mais duros, falam já de uma etapa de pré-revolução". O fato inquestionável é que aconteceu uma fratura do pacto secreto entre políticos e polícia, pois os primeiros estabeleceram um distanciamento de uma polícia hoje redescoberta como violenta, mas que durante anos foi útil ferramenta para o Executivo.

"Hoje, e graças à mídia, o povo não caiu na armadilha da voz oficial" (Adrián Paenza, programa Periodistas, America TV). Aliás, é verdadeiro mérito midiático a condenação social da ameaça de consagrar a morte como resposta à manifestações do povo, num país que se diz democrático.

Abusos em foco

A Justiça, ante o óbvio, ordenou o afastamento e a detenção do delegado Franchiotti e a remoção de quatro policiais. Alguns jornais tentaram suavizar a repressão de quarta-feira 26/6: matéria de Fernando Laborda no La Nación de quinta-feira apresentou interpretação mística, segundo a qual a polícia não é assassina, e sim vítima da situação vivida. Como resposta a esta matéria, Martín Granovsky criticou no Página 12 do dia 30 a análise do colega, sob o título "Franchiotti, La Nación y Duhalde". Em vários programas de análise surgiu a indagação: quantos Franchiottis ainda controlam um poder policial viciado em atitudes do período ditatorial argentino? Cabe destacar que o delegado acusado já era policial durante esse escuro tempo da história.

Outro escândalo que bate à porta da mídia é a atuação dos prefectureanos (força federal) num cenário estadual, reprimindo com a polícia (estadual). No programa de Nelson Castro, o subsecretário de Segurança, Carlos María Vilas, qualificou a incursão desta força como uma "indisciplina. E as perguntas que cabem então são: será que tanta indisciplina assim é casual? Será que a descontrolada polícia, misturada com uma justiça desnorteada num país faminto, não poderia dar em mais desequilíbrio? Aliás, a cada dia o setor político se distancia mais do "pára-raios" que durante anos usou para não ser afetado pelos escândalos. Será que este isolamento não significará uma precipitação mais rápida da atual administração? Ou, como pergunta Daniel Tognietti em Punto doc: "É a repressão seguida de morte uma mensagem do governo de que estamos frente a uma nova maneira de controle social?" <www.puntodoc.com>

O valor das imagens neste caso foi vertebral no esclarecimento do que, para alguns, foi uma chacina que tende a evitar que o governo atual acabe seus dias como o anterior. Caberia a pergunta de Nelson Castro (TN, <www.tn24horas.com>, 28/6), quando questiona: "Se durante o governo de De la Rúa as pessoas tomaram as ruas para se manifestar a respeito do que não aceitavam, por que não haveriam de fazê-lo atualmente, tendo em vista que a situação de todos e especialmente dos piqueteiros (desempregados e subempregados, em sua maioria) é pior do que a de seis meses atrás?".

Muitas coisas estão sendo reconsideradas, atualmente, no papel das fragmentadas instituições. E a mídia, com suas câmeras, tem começado a julgar alguns abusos. Para muitos é discutível que seja assim. Contudo, as alternativas não são muitas com o atual sistema judiciário, manchado de contradições e subjetivismos ideológicos.

(*) Jornalista graduado na Universidade Nacional de Misiones, Argentina