Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O deletério efeito das leis que não pegam

Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz e Patricia André de Camargo Ferraz (*)

 

N

uma de suas edições dominicais do mês de abril de 1998, um jornal de São Paulo publicou matéria sobre fenômeno que os mais atentos já devem ter notado: o retorno de inúmeras espécies de aves à capital.

De fato, garças brancas podem ser avistadas com facilidade nos trechos urbanos dos rios Tietê e Pinheiros (o que fazem naqueles ambientes poluídos ainda permanece um mistério); periquitos verdes, em grupos, são mais facilmente ouvidos do que vistos nas copas também verdes das árvores! Voltam rolinhas, bem-te-vis, sabiás, sanhaços, chupins…

No interior do estado, igualmente, pode ser percebido o ressurgimento não apenas de aves (corujinhas, quero-queros, perdizes) como também de tatus, raposinhas e capivaras.

A caça se tornou rara depois que passou a ser sancionada com prisão, sem direito a fiança. As espingardas sumiram! O medo da punição, segundo a reportagem, vem fazendo com que grandes quantidades de animais silvestres sejam devolvidas todos os dias ao Ibama e aos zoológicos.

De volta às cidades, vemos com espanto como em pouco tempo o cinto de segurança deixou de ser enfeite nos automóveis para ser respeitado como equipamento obrigatório. Todos o usam efetivamente. Os condutores de táxis cobram esse uso de seus passageiros, assumindo o risco de desagradarem o cliente!

Não precisamos sair do interior desses automóveis para encontrar outro exemplo útil para o tema: finalmente, as regras de trânsito começam a merecer alguma consideração. A mudança é visível: o limite de velocidade é respeitado, muitos motoristas se apressam a deter a marcha do veículo tão logo o sinal fica amarelo, alguns chegam a observar a norma que os obriga a sinalizar as manobras de conversão ou, mesmo, de mudança de faixa!

Todos esses casos encerram a preciosa fórmula – sistematicamente ignorada por nossos legisladores – do sucesso de uma lei: 1o) deve ser substancialmente justa, razoável, e como tal percebida pela população; 2o) deve ser universal, ou seja, aplicada igualmente a todos os seus destinatários (sejam eles caçadores munidos de sofisticadas armas ou de simples estilingues; sejam motoristas de Mercedes ou de Brasílias amarelas…); 3o) deve ser acompanhada de sistemas eficientes de fiscalização e controle, que assegurem a imposição das sanções estabelecidas para o seu descumprimento.

Não nos animemos, porém.

Esses exemplos servem apenas para mostrar que um sistema jurídico melhor é possível.

O que dissemos parece óbvio mas infelizmente a regra, entre nós, é a da existência de leis fundamentais que, no dizer sempre perspicaz do povo, “não pegam”!

A própria Constituição Federal “não pegou” em aspectos fundamentais, como no tocante à necessária aplicação de percentuais mínimos dos orçamentos em educação. Antes de completar dez anos, já experimenta profundas mudanças em seu texto e espírito.

O sistema tributário é tão primitivo e injusto que no seio social há quase um consenso sobre ser “lícito” burlá-lo, como num gesto difusamente aceito de “legítima defesa” (estima-se ser maior o valor sonegado do que o arrecadado em impostos). As pessoas trocam entre si, de forma cúmplice, informações sobre como escapar do Fisco, umas ajudando as outras a reduzir o dinheiro público que deveria servir para a construção de escolas, hospitais ou estradas para todos!

As regras existentes sobre o modo de cumprimento das penas de prisão, muitas delas avançadas, dignas de países de “primeiro mundo”, contrastam hipocritamente com as horrendas condições reais do sistema carcerário.

Quantos problemas seriam preventivamente resolvidos se fossem cumpridas as regras do nosso avançado Estatuto da Criança e do Adolescente?

Quantas vidas e quanto dinheiro público seriam poupados se na prática observassem as empresas as normas de defesa da segurança e da saúde do trabalhador?

A edição irresponsável de leis, sem compromisso com a efetividade, não gera apenas efeitos perversos sobre a imagem do Poder Legislativo (sistematicamente negativa, em índices assustadores), ou, de forma concreta, sobre a qualidade de vida e o erário.

Há outra conseqüência, com certeza mais insidiosa e deletéria para a cidadania: o descrédito no sistema normativo como um todo, o enfraquecimento da idéia de que é necessário viver sob o império da lei – descrédito este que, inevitavelmente, induzirá comportamentos típicos da “lei da selva”, ou, como “rebatizada” entre nós, da “lei de Gérson”, da lei do mais forte, do mais esperto…

Nem se diga ser esse um traço cultural do brasileiro, o que seria uma terrível injustiça.

A grande maioria desejará sempre o conforto de viver sem a necessidade de brigar (muitas vezes no sentido físico da palavra) para assegurar seus direitos; preferirá sempre não conviver com a insuportável sensação de impunidade.

Em outras palavras, a maioria estaria disposta a permanecer pacientemente em seu lugar na pista, durante um congestionamento, não fosse o primeiro “espertinho” ingressar impunemente no acostamento e ganhar a frente de todos os demais!

A reversão desse pernicioso processo reclama, de início, atitude minimamente responsável do Executivo e do Legislativo, na edição e fiscalização das leis. Exige, ainda, atitude mais corajosa da OAB, do Ministério Público e do Judiciário, no apontar as falhas que levam à sistemática e estrutural inobservância de certas leis – com as quais, de resto, são obrigados a conviver diariamente. Exige, finalmente, maior interesse da imprensa sobre esse triste fenômeno, tão pernicioso para a tentativa de construção da cidadania.

(*) Procurador e promotora de Justiça em São Paulo e associados ao IEDC.

 



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