Wednesday, 17 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

O desserviço da imprensa

ORIENTE MÉDIO

Pedro Eduardo Portilho de Nader (*)

A imprensa brasileira em geral foi particularmente deficiente na cobertura dos acontecimentos em Israel nas duas últimas semanas ? a propósito, primeiro, da saída do Partido Trabalhista da coalizão que sustenta Ariel Sharon e, em conseqüência, da antecipação das eleições. Primeiro, a cobertura da política nacional ofuscou o noticiário internacional. O processo eleitoral e o subseqüente pós-eleitoral no Brasil ocuparam o principal espaço do noticiário. Como não havia "novidades" ? mortes, invasões de territórios, arbítrios, sangue, vítimas civis, atentados particularmente "relevantes", a imprensa brasileira preteriu a região do Oriente Médio em favor da "festa da democracia" brasileira e da votação que quase foi "a maior de toda a história da humanidade".

Mais importante: é fácil perceber como a imprensa, de modo geral, não sabe lidar com a saída dos trabalhistas da coalizão de poder israelense. A cobertura trata a questão em termos quase que estritamente factuais, não sabendo inserir o assunto no tema maior do conflito na região. Assim, o episódio é visto praticamente como normalidade numa democracia parlamentarista: em tal sociedade assim, desfazerem-se coalizões políticas e a antecipação das eleições são acontecimentos perfeitamente comuns ? tal como podemos ver, ao longo dos últimos anos, em diversas democracias parlamentaristas européias.

A questão central é precisamente que Israel não é uma democracia parlamentarista européia, pelo simples motivo de o país estar no Oriente Médio, ponto de inflexão de conflitos, disputas, debates, combates singulares e extraordinários. É impossível, ao tratar do abandono da coalizão por parte dos trabalhistas, deixar de considerar a história recente desses conflitos. Mesmo porque o motivo imediato do atrito do Partido Trabalhista com o Likud de Ariel Sharon está diretamente ligado ao conflito entre Israel e as populações palestinas: os trabalhistas queriam que parte importante do orçamento ? que o governo do Likud tem sistematicamente destinado às colônias israelenses de assentamento nos territórios palestinos e ao aumento do gasto militar ? fosse redirecionada para atender as demandas sociais em Israel. Toda a questão do conflito com a Palestina vem sendo agravada pela queda nos indicadores sociais israelenses.

Binômio determinante

Assim, cobrir satisfatoriamente a saída dos trabalhistas da coalizão de sustentação do governo de Sharon envolve outras questões, mais complexas. E importantíssimas, como a que se refere à própria participação, durante quase dois anos, dos trabalhistas na sustentação desse governo likudista, frontalmente militarista e belicoso.

As previsões sobre as eleições agora convocadas é que o Likud deve ampliar sua força, enquanto o Partido Trabalhista deve sair encolhido. Mais do que isso, considera-se possível que, no Likud, venceriam os favoráveis à radicalização do expansionismo israelense nos territórios árabes ? nova possível vitória de Netanyahu e enfraquecimento da posição do "moderado" Sharon no Likud. Esse estado de coisas é atribuído aos atentados terroristas, simplesmente: o desejo de segurança dos israelenses os levam a fortalecer eleitoralmente o Likud, em detrimento dos trabalhistas. Paradoxo dos trabalhistas ? inclusive de seus ministros no governo Sharon ?, que deram credibilidade às ações e aos pensamentos do governo do Likud.

Não se fala muito, por exemplo, das forças democráticas em Israel que, desde o início do governo, se posicionaram democrática e incisivamente contra as atitudes hostis e agressivas do governo likudiano nos territórios palestinos. Atitudes que implicaram inclusive um grave desrespeito ao direito internacional, como no começo deste ano. Não se fala muito, também, das forças democráticas nos territórios palestinos contrárias ao terrorismo. Tudo é visto como se a situação na região se resumisse ao conflito entre o governo likudiano (tratado como o governo israelense) e os fundamentalistas palestinos. Tudo porque as forças democráticas não aparecem nas cenas sangrentas do conflito com voz ativa.

A questão do Oriente Médio é majoritariamente tratada em termos do binômio governo likudiano/forças fundamentalistas palestinas. Os dois termos do binômio, numa "dialética" imprecisa, se fortalecem um ao outro numa espiral crescente ? inclusive, e sobretudo, de violência.

Imprecisões e confusões

Nada reforça mais as forças direitistas e ultra-direitistas em Israel do que os atentados dos terroristas palestinos ? daí justamente o fortalecimento do Likud e da ultra-direita em Israel visto nos últimos meses. Por sua vez, nada reforça mais o fundamentalismo palestino do que as ações likudianas abertamente hostis e belicosas ? daí a grande renovação e ampliação das forças terroristas, com o crescimento impressionante do número de jovens palestinos que aderem ao movimento terrorista, inclusive com a "novidade" das mulheres-bomba, tática inédita até recentemente e recebida como surpreendente.

Então, a relação de oposição entre os dois termos do binômio se constitui numa relação de mutualismo, em que um lado intolerante reforça o outro, que por sua vez retribui o favor. Os dois lados intolerantes se reforçam a si e um ao outro, sendo eficientes assim em obliterarem da história política os diferentes personagens democráticos. Enquanto continuar privilegiando o binômio Likud/terrorismo palestino ? e não substituí-lo pelo antagonismo entre sociedade aberta, de um lado, e inimigos da sociedade aberta, de outro ?, a imprensa continuará alimentando os interesses das forças antidemocráticas constitutivas daquele binômio. Na verdade, a imprensa reproduz os termos dessas forças antidemocráticas: parte da imprensa por ser adepta de um dos lados; parte dela por simpatizar com o outro lado; a maior parte da imprensa por desinteresse, incompetência, displicência ou ingenuidade.

Finalmente: a falta de uma cobertura esclarecedora contribui inadvertidamente para imprecisões e confusões. Desta maneira, pode-se entender como é possível que as críticas democráticas feitas por forças judaicas, fora e dentro de Israel, à política intolerante do governo likudiano possam ser tachadas de anti-judaicas.

(*) Historiador e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP