Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O direito ao conhecimento público

DIPLOMA EM XEQUE

Elias Machado (*)

Uma vez mais se questiona uma legislação que muito tem contribuído para que nosso país seja um dos mais avançados do campo no mundo: a exigência do pré-requisito do diploma de curso universitário para a obtenção do registro profissional e para o exercício da profissão de jornalista. Desta feita, pela inusitada decisão de uma juíza paulista que aproveitou o exercício interino do cargo para sair do anonimato direto para as páginas da imprensa nacional.

A relevância do jornalismo para o desenvolvimento de uma esfera publica democrática nas sociedades complexas impõe uma discussão da medida desprovida de qualquer arroubo corporativista. O foco central do debate deve ser o exame minucioso das características do conhecimento jornalístico, das funções do jornalismo na sociedade e da natureza do trabalho dos jornalistas, os verdadeiros motivos para que o exercício do jornalismo dependa de uma formação especifica.

Com quatro séculos de experiência às costas, o jornalismo nasce como uma conseqüência de sucessivas revoluções tecnológicas, da redução do analfabetismo, da expansão do capitalismo em todo o planeta e da pressão dos movimentos sociais pela democratização da sociedade e do conhecimento. Ao menos até a metade do século XIX, uma atividade de cunho artesanal e que dependia da vontade de editores idealistas ou do suporte de partidos políticos; nas sociedades contemporâneas, o jornalismo, na forma de modernas corporações empresariais, assume um caráter de mediação entre os diversos sistemas sociais.

A criação das escolas de jornalismo, em vez de um ato insano de burocratas interessados em limitar a sagrada liberdade de expressão de todo indivíduo, adveio do próprio reconhecimento de empresários, como Joseph Pulitzer, por exemplo, fundador da célebre Escola de Columbia, em Nova York, no começo do século passado, de que o aumento da complexidade do trabalho jornalístico pressupunha uma preparação adequada dos futuros profissionais.

O desconhecimento da especificidade da função social do jornalismo impede a elucidação da natureza do jornalismo como modalidade de compreensão da realidade orientada por uma produção industrial, que considera determinados saberes epistemológicos e critérios profissionais dados numa certa cultura. O equívoco da critica ao diploma consiste em que toma a liberdade de expressão individual como parâmetro universal para todos os tipos de discursos sociais, confundindo produtos publicados na imprensa, rádio, TV e nas redes digitais com as manifestações típicas de conversas entre amigos ou intervenções políticas no espaço publico.

Como prática social especializada, o exercício do jornalismo pressupõe a obtenção do diploma universitário, porque o bom nível jornalístico das publicações, dos programas de rádio e TV ou das páginas nas redes depende do domínio de conceitos elementares sobre categorias como notícia, reportagem, editorial, e ética, entre muitos outros, e de técnicas de apuração, diagramação e edição.

Comparação excludente

O ataque sistemático à necessidade da qualificação prévia para os profissionais do jornalismo insiste em fazer vistas grossas a um modelo que tem dado certo. A tradição de mais de 50 anos no ensino de jornalismo, um tempo considerável considerando a juventude do campo, permitiu um certa dignidade aos profissionais ? até os anos 50 era comum que o jornalista recebesse dinheiro das fontes como complemento salarial ? e que nosso país tenha conseguido democratizar muito as condições de representação do mundo presente na cobertura diária dos diversos meios.

A naturalização de desigualdades atrozes mal serve para esconder que o tipo de tratamento dado pela imprensa aos movimentos sociais como o MST, por exemplo, ? a própria revolta da categoria contra o partidarismo das publicações e os espaços destinados às ocupações de terra em um país de latifúndios são ilustrativos ? dificilmente teria guarida em uma indústria jornalística menos profissional, em que a contratação dos trabalhadores estivesse atrelada as relações pessoais ou a proximidade política com os donos do negócio.

A implantação neste ano de cursos de formação de jornalistas em nível universitário em países como a Itália, que conhecedora profunda das desvantagens de um modelo que deixa a critério do mercado a seleção dos profissionais, resolveu adotar ainda que com atraso um sistema de formação especializada, revela o acerto da legislação brasileira que reserva o exercício do jornalismo exclusivamente aos profissionais habilitados.

A diferenciação fictícia entre profissões clássicas como Medicina ou Direito, únicas detentoras de um direito natural resultante do domínio de um saber específico, e áreas menos nobres como o Jornalismo ou as Letras, vinculadas ao talento individual, sequer merecedoras do status de profissão, realça, no melhor dos casos, uma miopia sobre o processo histórico de consolidação das profissões. O uso do menos aconselhável dos métodos ? a comparação excludente ? possibilita que se coloque como modelo do que seja uma profissão o conjunto de cânones que sustenta uma parcela restrita de áreas. Com o predomínio do raciocínio falacioso desaparece o objeto central da discussão: o caráter singular do conhecimento jornalístico ? e a decifração da função que cabe ao jornalismo e aos jornalistas no mundo atual, que deveria nortear todo o processo de discussão se perde na vala comum dos chavões, a democratização dos sistemas de produção da notícia sai do horizonte visível e a garantia do direito do cidadão ao conhecimento das ações ocorridas na esfera pública se torna uma delirante utopia.

(*) Doutor em jornalismo pela Universidade Autônoma de Barcelona e professor na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia.

    
    
                     

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