Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O ensino e a realidade brasileira

CURSOS DE JORNALISMO

Marcos Cripa (*)

Estamos sempre a refletir sobre o ensino de jornalismo. A questionar se o ensinamento da sala de aula vai ter alguma utilidade prática no dia-a-dia da redação. Afinal, o trabalho acadêmico é relativamente distante do ofício jornalístico. A prática de exercícios nos laboratórios das faculdades não se comparam com a produção diária que é impregnada pela realidade. O timing, portanto, é outro.

Porém, nos cursos de jornalismo dispomos de uma fundamental vantagem em relação às redações: encontramos tempo para rever práticas, textos e conceitos. Podemos buscar novos caminhos e discutir à exaustão. Além disso, na Universidade as análises sobre a ética jornalística ganham contornos entusiásticos que nas redações são relegadas ao segundo plano.

Mas, mais do que pensar o fazer jornalístico, nos preocupa o contato que o alunado deve travar com a realidade social brasileira ainda quando ele está na faculdade. Para se ter idéia da importância desse tipo de produção, este ano, na PUC/SP, período da manhã, dentro da disciplina "Projetos Experimentais Impressos", estamos trabalhando, juntamente com o professor Valdir Mengardo, com seis projetos de livro-reportagem com tal característica. São eles: 1) A dura realidade da vida das detentas da Penitenciária Feminina do Estado de São Paulo; 2) O resgate da cultura cabocla em São Paulo; 3) Democratização das comunicações ? Rádio Favela Heliópolis; 4) Favela Funerária ? história de resistência; 5) Globalização da resistência ao neoliberalismo e 6) Terceira Idade ? uma nova visão do envelhecimento.

De acordo com os objetivos gerais expressos no Programa de Ensino desta disciplina, busca-se "proporcionar ao aluno o desenvolvimento de um projeto editorial, de forma a ser aplicado os variados conceitos e as variadas técnicas abordadas durante o curso". O trabalho impresso (jornal, revista, livro) pode ser realizado tanto individualmente quanto em grupo, que varia de três a cinco alunos. O conteúdo da disciplina contempla a elaboração de projeto editorial de relevante importância, levando em consideração a linguagem e o público alvo, além de prever todo o processo de produção: pré-pauta, pauta, identificação das fontes, distribuição das pautas, entrevistas e reportagens de campo, produção fotográfica, correção dos textos, texto final, edição gráfica, revisão, impressão e distribuição.

Um trabalho que requer dedicação dos professores/orientadores e do corpo discente envolvido na produção, e que cumpre o objetivo prioritário da produção de matérias jornalísticas. Mas reportagem os alunos já têm como prática desde o ingresso no curso de Jornalismo da PUC/SP, dentro das disciplinas "Introdução ao Jornalismo", "Técnicas de Reportagens", "Edição", "Preparação e Revisão de Originais", "Telecinejornalismo" e "Radiojornalismo". O que se busca com "Projetos Experimentais Impressos" é ir além da reportagem, utilizando a disciplina para colocar os alunos em contato com projetos que os levem a refletir sobre a sociedade brasileira de maneira ética e crítica. Ensinar não é apenas transmitir conhecimento. O ensino-aprendizagem exige consciência do inacabado, respeito à autonomia do ser do educando, bom senso, humildade, apreensão da realidade e convicção de que a mudança é possível, FREIRE (1996). Portanto, colocar os estudantes de jornalismo em contato com a realidade social brasileira é uma das maiores contribuições que podemos dar ao ensino deste ofício e à cidadania.

"Uma escola diferente"

Para Barbosa Lima Sobrinho, ex-presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a função da imprensa é extraordinária quando cumpre com os seus deveres, quando defende os interesses públicos e quando está ao lado das causas do povo, SOBRINHO (1994). Não se trata aqui de discutir jornalismo descompromissado Versus jornalismo socialmente engajado, conforme define Michael Kunczik no livro Conceitos de Jornalismo ? Norte e Sul, mas sim de enxergar o jornalista como mediador. Segundo Wolfgang Langenbucher (1974), a mediação em uma sociedade democrática é o principal papel do jornalista, e a tarefa dos jornalistas é facilitar a mútua comunicação entre os diferentes grupos da sociedade, in: KUNCZIK (1997). Mas como cumprir os seus deveres de intermediar e facilitar a comunicação sem conhecer a realidade social do país e do seu povo?

Nos últimos anos, ainda dentro da disciplina "Projetos Experimentais Impressos" da PUC/SP, muitos trabalhos foram desenvolvidos com esse propósito. Dentre eles, destacamos: Desemprego em retalhos (1996), Direitos humanos em retalhos (1996), Trabalho infantil e educação (1997), AIDS ? luta pela vida (1998), Educação no MST (1998), Oikoumêne ? agressão ao meio ambiente (2000) e Globalização ? caderno de entrevistas (2000). Foram também produzidos e publicados dois livros refletindo o fazer jornalístico: Manual do foca (1997) e No olho do furacão ? casos, histórias e bastidores do jornalismo (1999).

Beatriz Reis, formada em jornalismo pela PUC/SP, ex-editora e repórter do Jornal da Tarde e Veja online, faz a seguinte afirmativa sobre os trabalhos realizados dentro da disciplina "Projetos Experimentais Impressos":


"Fico muito orgulhosa quando lembro dos trabalhos que minha classe fez no último ano da faculdade. No primeiro semestre, produzimos um livro com histórias de pessoas que enfrentavam o drama de viver com o vírus da Aids. Adolescentes, mulheres e homens que figuram como números nas estatísticas ganharam nome e rosto. No segundo semestre, o tema era Educação no MST. Eu e uma então estudante de fotografia passamos um final de semana no acampamento de Iaras, interior de São Paulo. Tinham acabado de construir uma escola rural e chegamos a tempo para a inauguração. Almoçamos com os sem-terra, dormimos numa barraca de lona, conhecemos um pouco das dificuldades de quem luta por terra nesse país. Quanto mais o tempo passa, mais tenho certeza de quão importante essa experiência foi para mim. Me ajudou a crescer profissionalmente, sem dúvida, mas mais do que isso, me ensinou a olhar de uma maneira diferente para o outro, me fez uma pessoa melhor".


Na apresentação da revista Educação no MST, de 1998, o último parágrafo do texto diz o seguinte:


"Inicialmente, este era um projeto experimental de conclusão do curso de uma turma da faculdade de Jornalismo. O que aprendemos nas concentrações dos Sem-Terra, porém, são lições que consideramos por demais valorosas para serem guardadas dentro de um armazém de conhecimento como uma faculdade. São bons exemplos o grupo que se estruturou para ensinar as pessoas que dão tudo de si para aprender, como a jovem Bruna que pedala uma hora de bicicleta, diariamente, para ir à escola. Os lideres voltados para o povo, e este, para si mesmo. Como tem de ser".


Em correspondência à reitoria da Universidade, em agosto de 1998, Isabele Camini, do Setor de Educação do MST, manifestou-se da seguinte forma acerca da publicação feita pelos alunos da PUC/SP sobre a educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra:


"Os artigos são bons, falam da realidade pesquisada, trazem a análise e a crítica…Uma revista como esta não pode ficar fechada. Nem ficar só nos meios acadêmicos. Precisa ser lida e refletida pelos professores(as) do MST e por outros professores(as)…Nos anima em vermos a Universidade indo ao encontro da Educação do Campo e das organizações populares…São estas iniciativas que vem ajudar a Reforma Agrária a ser uma luta de todos e a mostrar que é possível fazer uma escola diferente, a Escola Itinerante, que acompanha a vida dos acampados e dos assentados".


Ética e ternura

Em 1996, para mostrar a trágica realidade brasileira em relação aos acidentes de trabalho, a então aluna de jornalismo Camila Garcia localizou e entrevistou vários mutilados para uma das matérias da revista Desemprego em retalhos. As histórias são chocantes.

No texto que recebeu "Vexame" como título, a aluna mostra que o Brasil é líder no ranking mundial de acidentes de trabalho. Mas mais do que um simples relato da situação, ela localizou pessoas para contarem seus dramas.

A legenda da foto de abertura da matéria dá o tom da reportagem produzida por Camila Garcia:


"Gilberto Marçal nunca tinha visto uma prensa. Para começar a trabalhar não recebeu treinamento nem material de segurança. Teve quatro dedos esmagados na mesma máquina onde, uma semana antes, um colega perdera o movimento de três dedos".


No livro Trabalho infantil e educação, editado no 1°
semestre de 1997, o então aluno Sérgio Pedroso retrata a trajetória das meninas prostitutas de Santos. Ele conta histórias tristes de crianças espancadas, violentadas, expulsas de casa. Meninas que vêem na prostituição o único meio de sobrevivência. No texto, o aluno fala do dia-a-dia e dos problemas das meninas, e contextualiza o aumento da prostituição infantil, notadamente no início da década de 80. Diz parte do texto:


"Um dos fatores que influenciaram o aumento da prostituição infantil em todo o País foi a queda no nível econômico a partir da década de 80. Nesse contexto, muitas das crianças começaram a ter obrigação de ajudar no sustento da casa e dos membros da família, sob pena de espancamento caso terminassem um dia sem conseguir dinheiro. Os maus tratos acabaram fazendo com que meninas abandonassem suas casas e, sem ter para onde ir, terminassem na rua envolvidas com drogas e meretrício".


Nos textos de AIDS ? luta pela vida, livro editado pelos alunos em 1998, encontramos pessoas que, apesar de viverem no limiar da morte, acreditavam na vida. Alguns, hoje, já estão mortos. Em cada perfil, uma mensagem de esperança. São os casos de Rodrigo, 6 anos; de Josefina, 29, infectada pelo marido; de Adriano, 20, que se descobriu soropositivo aos 16; de Clayton Floriano, hemofílico; de Marcelo, homossexual; e de Pedro, 28, recolhido no Hospital Central da Penitenciária do Estado, em São Paulo.

Trata-se de um trabalho jornalístico produzido com respeito, com ética e com ternura. Conforme afirma anteriormente Beatriz Reis, são adolescentes, mulheres e homens que figuram como números nas estatísticas, mas que neste trabalho ganharam nome e rosto.

Aceitação do novo

Procuramos cumprir a função social da Universidade, criando uma ponte entre a sociedade e a escola, tendo como principais colaboradores alunos/cidadãos. Diz Edgar Morin, em Ética, Cultura e Educação, que nos comunicamos para informar, para nos informarmos, para conhecer, para, eventualmente, nos conhecermos, para explicar, para nos explicarmos, para compreender e nos compreendermos, MORIN (2001).

Diz ainda Edgar Morin, em Educação e complexidade: Os sete saberes e outros ensaios, que sofremos de uma carência de compreensão. "Certamente é muito difícil compreender pessoas de culturas diferentes da nossa, embora alguns manuais possam nos auxiliar. É surpreendente que familiares, vizinhos, parentes, casais, pais e filhos não se compreendam entre si. Tem-se a impressão que a incompreensão se desenvolve com nosso individualismo, em vez dele nos ajudar a compreender a nós mesmos, como se o individualismo desenvolvesse uma espécie de auto-justificação egocêntrica permanente…" Morin (2002).

Os trabalhos desenvolvidos na disciplina "Projetos Experimentais Impressos" da PUC/SP buscam compreender o aspecto social da sociedade brasileira e lançar o olhar dos alunos sobre esta realidade. Vale lembrar a frase de Marcel Proust, que dizia: "Uma verdadeira viagem de descoberta não é a de pesquisar novos temas, mas de ter um novo olhar". E vale repetir Paulo Freire que dizia que não há docência sem discência. Por isso, temos de ter metodologia, pesquisa, criticidade, estética e ética, corporificação das palavras pelo exemplo, risco ? aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação, reflexão crítica sobre a prática, FREIRE (1996).

Daí nosso entusiasmo com o ensino de jornalismo.

(*) Jornalista e professor do Curso de Jornalismo da PUC/SP. Este texto foi produzido a partir de trabalho apresentado no 6°
Encontro de Professores de Jornalismo, em Natal, no primeiro semestre deste ano, que versava sobre "A realidade social brasileira expressa nas publicações da disciplina ?Projetos Experimentais Impressos? da PUC/SP".

Bibliografia

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Paz&Terra, 1996.

MORIN, Edgar. Educação e complexidade: Os sete saberes e outros ensaios. São Paulo, Cortez Editora, 2002.

MORIN, Edgar. Ética, cultura e educação. São Paulo, Cortez Editora, 2001

KUNCZIK, Michael. Conceitos de jornalismo ? Norte e Sul. São Paulo, Edusp, 1997.

SOBRINHO, Barbosa Lima. Revista Adusp, n? 1, dezembro de1994.

Referência

Projeto Pedagógico do Curso de Jornalismo da PUC/SP