Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O eterno poder dos livros

ARMAZÉM LITERÁRIO

Autores, idéias e tudo o que cabe num livro

LEITURAS

Márcia Abreu é professora de Literatura Brasileira no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), vice-presidente da Associação de Leitura do Brasil e pesquisadora do Projeto Memória de Leitura, coordenado pela professora Marisa Lajolo. Neste projeto, Márcia desenvolve pesquisas sobre história da leitura no Brasil, examinando a circulação de textos poéticos e ficcionais no Rio de Janeiro no período colonial. É responsável também pela vertente "Leituras Populares", que se dedica ao estudo de publicações pouco prestigiadas nos meios eruditos, mas de grande penetração social – como, por exemplo, os folhetos de cordel nordestino ou os romances vendidos em bancas de jornais.

A professora também coordena a coleção "Histórias de Leituras", publicada pela Editora Mercado de Letras em parceria com a Associação de Leitura do Brasil, e é membro do Conselho Editorial da revista Leitura: teoria & prática. Bianualmente, organiza o Congresso de Leitura do Brasil, em colaboração com o Prof. Dr. Luiz Percival Leme Britto, e é autora de vários livros e artigos sobre o tema.

No segundo semestre de 2000, Márcia Abreu publicou Leitura, História e História da Leitura (Campinas, Mercado Aberto, 2000). A respeito desre livro, respondeu a perguntas formuladas por
Alberto Dines
, do Observatório da Imprensa, reproduzidas na entrevista a seguir:

Em Leitura, História e História da Leitura, a bibliografia sobre a história da leitura no Brasil ocupa 11 páginas. Você destacaria alguma obra ou autor que tenham exercido influência especial?

Márcia Abreu – No cenário internacional, acredito que os trabalhos de Roger Chartier e de Robert Darton tenham sido fundamentais para a constituição da área de pesquisa e para colocá-la na "ordem do dia" das Ciências Humanas. Algumas décadas atrás, a leitura poderia interessar subsidiariamente alguns pesquisadores, mas não se constituía como área de pesquisa. Basta pensar em excelentes trabalhos como O diabo na livraria do cônego, de Eduardo Freiro, ou como Los livros del conquistador, de Irving Leonard, que eram "peixe fora d’água" até recentemente. Ambos foram escritos na década de 40, quando uma pesquisa centrada na leitura não era lá muito ortodoxa.

No Brasil, penso que as figuras centrais são Marisa Lajolo e Regina Zilberman, pioneiras na realização de pesquisas sobre a história da leitura no Brasil. Seus trabalhos têm ainda mais interesse pela amplitude das categorias com que operam. Em vez centrar seu olhar em autores consagrados e leitores eruditos, trazem para a cena mulheres, pobres e crianças.

A história da leitura (ou a história da cultura) já consegue atrair o interesse do público não especializado?

M.A. – Acredito que a história cultural consiga. As pessoas têm curiosidade em saber como se vivia no passado. A história convencional – feita de heróis e datas – não pode atender a essa curiosidade, mas obras como História da vida privada atingem um público amplo. O público não especializado migra de uma área para outra em ondas de interesse. A coqueluche já foi a física cósmica, a psicanálise etc.; agora parece ser a vez da história. É só lembrar de livros como os de Eduardo Bueno (de história do Brasil), que são verdadeiros best sellers. A história da leitura não atinge públicos tão diversificados, mas atrai o interesse de especialistas de diversas áreas: historiadores (claro!), literatos, pedagogos, antropólogos, bibliotecários, professores de vários níveis de ensino.

A biblioteca no Brasil consegue ser um fator de estímulo ao hábito de leitura ou é apenas um acervo de livros para consulta?

M.A. – Tudo depende da constituição do acervo e da regulamentação da biblioteca. Se o acervo for diversificado, a biblioteca pode se constituir num centro de interesse da população. Uma pesquisa realizada em uma biblioteca de uma pequena cidade do interior de São Paulo mostrou que o impresso mais procurado eram os livros da coleção Sabrina [de romances populares vendidos em banca de jornal]. Além desses, as pessoas buscavam os best sellers anunciados em listas de livros mais vendidos. Uma biblioteca que discrimina esse tipo de obra presta um desserviço aos leitores. Há bibliotecas que proíbem a leitura de histórias em quadrinhos, por exemplo. A biblioteca não pode ser um espaço de censura e sim um local de possibilidades. Outro problema é o reduzido número de bibliotecas públicas. Quem é que vai pegar três ônibus para ir à biblioteca retirar um livro? Seria preciso expandir a rede e diversificar os acervos para que as bibliotecas fossem um espaço democrático de leitura.

Como vê a megalivraria em confronto com a livraria tradicional, "de câmera"?

M.A. – Elas atingem públicos distintos e acredito que haja espaço para os dois modelos. Na livraria tradicional é possível estabelecer um contato mais pessoal entre livreiro e cliente – muito embora a idéia da livraria como espaço de sociabilidade letrada esteja cada vez mais distante. As megalivrarias mostram uma coisa interessante: que o brasileiro não é tão desinteressado por livros como se supõe. Ao menos os brasileiros de classe média. Em um shopping center não se vê uma tal quantidade de gente em outro tipo de loja.

Na Europa e nos Estados Unidos as megalivrarias põem em risco a sobrevivência das pequenas por causa das promoções, da publicidade agressiva etc. Mens@gem para você, por exemplo, é um filme que explora essa temática, com evidente simpatia pelas livrarias tradicionais. Mas no Brasil a rede de livrarias é tão pequena que há espaço para todo mundo.

E o papel do sebo ou alfarrabista?

M.A. – Eles também atingem públicos diferenciados: os colecionadores – que têm demandas muito específicas e estão dispostos a gastar – e os "leigos" – que buscam um livro barato. Foi publicado recentemente um livro muito interessante sobre os sebos de Belo Horizonte, chamado Cartografia sentimental de sebos e livros, de Márcia Cristina Delgado. Precisaríamos fazer mais pesquisas como essa. Tenho curiosidade, por exemplo, sobre as bancas de livros de segunda mão estabelecidas no centro da cidade [de São Paulo] e que trocam livros, com o acréscimo de um mínimo de dinheiro. Pocket books circulam em grandes quantidades ali. Se considerássemos essas formas alternativas de comercialização de impressos talvez se alterasse a idéia de que somos um povo desinteressado por livros. Outro ramo de comércio sobre o qual não há pesquisas (ao menos que eu conheça) e que põe em circulação grande quantidade de livros é o dos ambulantes. Eles espalham-se por todo o país e chegam em lugares em que nunca se estabeleceu uma livraria.

A comemoração dos 500 anos do Descobrimento deixou alguma marca na relação do brasileiro médio com o livro ?

M.A. – Não conheço nenhuma pesquisa a respeito, mas é possível imaginar que o clima das comemorações tenha despertado interesse por obras de história e por relatos do passado. Pelo menos é o que se depreende da grande quantidade de re-lançamentos de livros de viajantes, de reproduções de pinturas e aquarelas do período colonial. Houve também uma explosão de publicações na área de história, especialmente de história da cidade do Rio de Janeiro – sede do Império no começo do século XIX e capital do Brasil até 1960.

É interessante pensar que as comemorações repetiram, talvez sem pensar, um modo de olhar para o país que se arrasta desde o período colonial. Muito se falou sobre os índios, circularam muitas imagens da exuberante natureza local, mas pouco se discutiu sobre as condições de implantação da cultura letrada. Continuamos a representar o Brasil como lugar de natureza privilegiada (e, por alguma distorção, os índios fazem parte da natureza e não da cultura) e de falta de cultura.

E a internet, já tem algum peso no panorama da leitura?

M.A. – Imagino que sim pela quantidade de texto que disponibiliza, mas para responder teria de chutar…

Num passado não muito distante, a estante de livros era exibida com um certo orgulho, fator de status cultural e portanto social. Hoje a estante estaria sendo substituída pelos equipamentos eletrônicos como o DVD e o home theater?

M.A. – Acho que não se trata de substituição, mas de acréscimo. Uma pessoa "bem posta na vida" tem de ter seu home theater e seu DVD, mas não pode prescindir dos livros na constituição de sua auto-imagem. Basta dar uma olhada em revistas de decoração destinadas às camadas médias e altas. Sempre há uma mesinha com livros de arte, sempre há uma estante com livros. Outro lugar interessante para perscrutar a auto-imagem da classe média é a revista Caras, onde há uma seção destinada a mostrar a casa de gente rica e/ou famosa. Em todas as casas há livros e, em ao menos uma das fotos, um dos integrantes da família aparece com um livro nas mãos. Se as pessoas lêem ou não é outra história, mas elas precisam do livro para composição da imagem de pessoa interessante e bem-sucedida.

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