Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O exemplo de Claudio Abramo

PÚBLICO vs. PRIVADO

Silvio Diogo Lourenço dos Santos

Um conflito que paira sobre o jornalismo é o fato de que as instituições que produzem as notícias são, a um só tempo, órgãos públicos (pelo próprio caráter da informação, que é pública) e empresas privadas que buscam o lucro. Pelo menos esta é a situação de jornais, revistas, redes de televisão e emissoras de rádio estabelecidas em países capitalistas.

Por um lado, as empresas jornalísticas têm de seguir um certo "compromisso social" próprio do jornalismo, isto é, precisam apurar com responsabilidade os fatos, não emitir opinião em matérias que se pretendem "objetivas", tratar com isenção os políticos, evitar com esforço cuidadoso as notícias com ar de propaganda etc. Esse compromisso, ainda que difícil de ser mensurado e apesar de pouco respeitado, norteia o trabalho do jornalista e serve como parâmetro do bom exercício da profissão. Quase nenhum jornalista assume que é "pouco ético" ou que apurou mal quando escreveu determinada matéria, ainda que o tenha feito descaradamente.

Mas grandes jornais também são grandes empresas, têm um produto a vender. Como qualquer companhia que deseja lucrar, investem pesado em estratégias de marketing para captar leitores-consumidores e fazem uso da arma da propaganda para passar uma boa imagem do "produto" ? que neste caso não é um sabonete ou uma pasta de dente, mas um programa de TV ou uma revista semanal.

Este conflito (empresa vs. princípios) é sentido por todos que trabalham nas redações, desde os altos editores até os jovens iniciantes que tomam o primeiro contato com o jornalismo. No caso de um jovem jornalista que começa a trabalhar assim que sai da faculdade ? ou mesmo antes, ainda no curso de Jornalismo ?, o embate se manifesta claramente. Na faculdade, o aspirante a repórter aprende as qualidades do bom jornalista e toma para si a missão de se guiar pelos bons exemplos e pelos princípios éticos da profissão. No entanto, quando toma a decisão de entrar na vida de uma redação percebe que muito do que aprendeu na faculdade não passa de situações e conceitos abstratos que, na prática, se dão muito toscamente.

Redações de Mauricinhos

É nesse momento que vem a revelação de que parte do conteúdo de grandes jornais, revistas, noticiários da TV é produzida de forma muito amadora, com pouca apuração, pouco conhecimento do repórter sobre o assunto, pouco cuidado na escolha das palavras e no trato com o texto. O historiador da USP Nicolau Sevcenko, que pretendia levar seus alunos para conhecer uma redação, disse ironicamente: "Quero que eles saibam como se faz a salsicha." A comparação feliz de Sevcenko, ainda que pouco nobre para os jornalistas, faz sentido. Por fora, tanto o jornal quanto a salsicha são apresentáveis, mas, como ensina a fala popular, "não queira saber como foi feito".

Se o primeiro contato do futuro jornalista com o ambiente das redações soa traumático, já a convivência diária com a produção das notícias leva-o muitas vezes a incorporar as normas da prática profissional e a assumir a maneira de se fazer jornalismo das grandes redações. E aqui não se trata apenas de uma questão de princípios. A atividade de jornalista, além de ser uma escolha de vida, é também uma profissão. Ainda que o jornalista mantenha uma série de valores e ainda que esses valores representem a base de sua atividade, não se deve esquecer que as pessoas precisam (e desejam) ganhar dinheiro, necessidade que varia de pessoa para pessoa e que geralmente cresce na mesma proporção que a idade e o tempo de profissão. Geralmente, são os jovens jornalistas os grandes defensores dos princípios da profissão, são eles que se levantam criticamente toda vez que percebem um desmando da imprensa, são eles que atacam a uniformização das notícias imposta pelos manuais de redação, são eles, sobretudo, que desejam arduamente "mudar o mundo" com a voz que o jornalismo lhes assegura.

Todo esse ímpeto nem sempre dura muito tempo. Um belo dia, parece que todos esses valores já não fazem tanto sentido assim, soam como ilusão. É aí que se forma o corpo de jornalistas das grandes redações, grupo que passa a lidar com a atividade profissional em concordância com as normas da chefia das redações. Para o professor de Jornalismo da ECA-USP Bernardo Kucinski, era exatamente esse tipo de acordo tácito que dominava os grandes jornais durante a campanha presidencial de 1998, quando a maioria dos veículos se voltou, com parcialidade, contra o candidato Luís Inácio Lula da Silva. Diz Kucinski sobre o período: "Juntou a fome com a vontade de comer. As chefias eram neoliberais, e aconteceu de nessa época os jovens também serem neoliberais, principalmente os jovens jornalistas. Eles acreditavam nessas idéias, não era preciso que a cúpula os obrigasse a fazer as matérias de determinada maneira, pois eles faziam porque acreditavam. Esses jornalistas mauricinhos e patricinhas acreditavam que o desprezo pelo PT e pelo Lula era uma espécie de demonstração de modernidade. Isso foi uma característica daquela campanha."

Tensa situação

Claudio Abramo, uma das grandes figuras da história da imprensa brasileira, defensor do comunismo e reconhecido como um dos pilares da ética no jornalismo e nas redações, chefiou dois dos maiores jornais do país, a Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. As duas faces de Abramo ? de um lado, os princípios e, de outro, o contato íntimo com as grandes redações ? são uma excelente mostra desse conflito que está presente em cada jornalista. O caso de Abramo é emblemático: de um lado, sua "ética do marceneiro" serviu de modelo às escolas de Jornalismo; de outro, seu trabalho frente à Folha contribuiu fortemente para a reestruturação da empresa tanto do ponto de vista editorial como do ponto de vista financeiro, remodelamento arquitetado no Projeto Folha.

E Claudio Abramo, ainda que assumisse muito bem o posto de chefe da empresa, era crítico severo da postura de jornalistas que se rendiam ao modelo homogêneo das redações: "Uma grande tragédia do jornalismo brasileiro é o papel extremamente grave que desempenham alguns jornalistas irresponsáveis, em nome de uma independência ilusória, que eles não têm. Esses jornalistas pesam muito porque veiculam coisas sem verificar, mentem, fazem afirmações absolutamente gratuitas. Eles são responsáveis pela falsificação da realidade, colaboram com isso. São como as novelas de TV, que harmonizam todos os conflitos. Estabelece-se uma corrente de cumplicidade que não pode mais ser interrompida, o que é extremamente perigoso para o público. Por causa do exemplo desses jornalistas, o jornalismo virou um exercício de ataques gratuitos: o que mais se vê é alguém atacar o outro sem explicar por quê."

Esse tipo de atitude a que Claudio Abramo se refere (e refere-se negativamente) é uma marca dos jornais constituídos como empresas. O jornal-produto é um dos aspectos da realidade da indústria cultural, espécie de capitalismo aplicado à publicidade, ao cinema, à música e ao jornalismo. Gisela Taschner, estudiosa do assunto, escreve: "A indústria cultural é vista como resultante e instrumento de um processo pelo qual a lógica da produção capitalista, originalmente sediada na área da chamada produção material, vai se expandindo e, ao fazer isso, subordina tendencialmente todas as dimensões da vida social. A indústria cultural se integra à reprodução capitalista não só como um novo campo de investimentos, nem só como auxiliar de rotação de outros capitais (por meios da publicidade que a financia), mas também ajudando a tecer o véu, com as mensagens que veicula (e as que omite), mediante seu sistema onipresente."

O exame crítico de Gisela sobre a indústria cultural deixa entrever um dos pontos cruciais da questão: a realidade do jornalismo não pode ser separada da realidade das empresas que o acomodam. Tal situação, extremamente danosa na visão de uns e perfeitamente natural para outros, é, antes de tudo, um fato a se constatar. Quem exerce a atividade ao mesmo tempo intelectual, ética e literária que o jornalismo reúne também monta um produto, serve a uma empresa, está inserido em um sistema de produção. O caso de Claudio Abramo oferece uma mostra de que os princípios da empresa e os princípios do jornalismo vivem uma situação extremamente tensa que nem sempre pode ser amenizada.

(*) Aluno de jornalismo da ECA-USP