Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O falso pluralismo

MÍDIA & DEMOCRACIA

Gilson Caroni Filho (*)

Uma imprensa livre e plural é apontada como premissa para a existência e a consolidação do regime democrático. Soa como evidência de que atingimos tal estágio, ou dele muito perto estamos, a existência de empresas jornalísticas que, malgrado sua inserção em negócios privados de grande monta, mantêm em seu corpo de redatores e/ou articulistas verdadeiros críticos tanto de suas linhas editoriais quanto dos interesses econômico-políticos que representam ou aos quais se associaram como projeto de poder.

Como negar à Folha de S.Paulo, que abre espaço ao fogo cerrado de um Janio de Freitas, o título de veículo democrático? Ainda mais se percebemos que em todas as editorias o fenômeno se repete no amplo leque ideológico de colaboradores, culminando, aos domingos, com o suplemento Mais!, no qual pontificam Robert Kurz e Jürgen Habermas, entre tantos outros nomes de peso do campo intelectual. Como ignorar a representatividade ampla existente num jornal como O Globo se, lado a lado, estão Leandro Konder, Olavo Carvalho e Luis Fernando Verissimo? Como negar ao Jornal do Brasil a justeza do equilíbrio democrático se, na sua página de Opinião, há oferta generosa de espaço tanto a um Emir Sader quanto a um Jarbas Passarinho?

De falsas evidências e boas intenções o inferno está cheio. E o campo democrático, cada vez mais desértico. A seguir, algumas considerações que, não sendo novidades, são lembretes.

De há muito o pólo hegemônico da mídia se deslocou para a televisão. E, como veremos abaixo, isso permite uma relativa flexibilização no jornalismo impresso.

Impresso e disfuncional

Não só do Estado como de outras esferas foi subtraído o espaço de articulação do bloco histórico contemporâneo. Da antiga esfera pública burguesa (paradoxo formal desde a origem) restou um cenário esmaecido em que ficaram sepultadas estratégias e táticas reformistas e/ou revolucionárias. O capitalismo em rede requer de seus adversários uma reflexão menos apressada que não seja tão rapidamente desmentida pelos fatos. Do "fim do imperialismo" não se fala mais desde o atentado às torres do World Trade Center. Da "nova economia" que transformava em anátemas eternos todas as teorizações do valor-trabalho poucos ainda se lembram. A recessão americana retirou da ribalta os "promissores gênios do Vale do Silício", e o socorro proverbial foi fornecido por um keynesianismo de guerra. A bordo de um F-16 e com um Estado redefinido (porém jamais prescindível), o capitalismo reencontra sua materialidade, para desencanto dos discípulos de Hayek e das outrora risonhas editorias de Economia. Volta o triste incômodo de se constatar que o desejado fim do campo político está longe de se materializar. O que mudou substancialmente foi sua dinâmica de reprodução e os dispositivos de legitimação.

O redesenho da institucionalidade burguesa não foi feito sem uma mudança significativa no campo midiático. Às necessidades de maior velocidade na reprodução e circulação do capital tornava-se imperiosa uma opinião meramente aclamativa como sucedânea da reflexão política. Forjá-la nos marcos do Estado de Direito e do simulacro de democracia representativa exigia deslocamento de aparelhos e alterações de estrutura discursiva. A informação veloz impede a formulação da recepção crítica e, oculta, como têm enfatizado artigos publicados nas três últimas edições deste Observatório, o caráter processual do que está sendo apresentado sob o invólucro do meramente episódico.

Para tal empreitada a mídia impressa se tornara disfuncional. Quer pela disponibilidade temporal requerida para leitura, quer pelos riscos que um texto escrito, mesmo despido de conteúdo substantivo, sempre pode suscitar se partilhado com interlocutores críticos. Internalizada como "segunda natureza", a rapidez e a descontextualização exigiria um veículo em que o campo comunicativo precedesse a própria ação comunicativa e anulasse os elementos impeditivos da positivação da ordem.

Práxis autoritária

Estava aberto o campo para o domínio televisivo. Sem qualquer empecilho de natureza operacional, a práxis jornalística seria subsumida pela implacabilidade da lei do valor. E esta última não comporta digressões românticas de resistência de espadachim. Como enfatiza o filósofo alemão Jürgen Habermas em obra ímpar sobre o papel da mídia na nova estruturação política burguesa:


Com isso, a base originária das instituições jornalístico-publicitárias é exatamente invertida nesses seus setores mais avançados: de acordo com o modelo liberal de esfera pública, as instituições do público intelectualizado estavam, assim, garantidas frente a ataques do poder público por estarem nas mãos de pessoas privadas. Na medida em que elas passam a se comercializar e a se concentrar no aspecto econômico, técnico e organizatório, elas se cristalizam nos últimos cem anos em complexos com grande poder social, de tal modo que exatamente a sua permanência em mãos privadas é que ameaçou por várias vezes as funções críticas do jornalismo. Em comparação com a imprensa da era liberal, os meios de comunicação de massa alcançaram, por um lado, uma extensão e uma eficácia incomparavelmente superiores e, com isso, a esfera pública se expandiu. Por outro lado, também foram cada vez mais desalojados dessa esfera e reinseridos na esfera, outrora privada, do intercâmbio de mercadorias. Quanto maior se tornou a sua eficácia jornalístico-publicitária, tanto mais vulneráveis se tornaram à pressão de determinados interesses privados. (Habermas, Mudança estrutural da esfera pública, pág. 221)


Esse ponto nos parece central. A imprensa como empreendimento empresarial bem-sucedido longe está de ser pilar da democracia. Pode-se transformar no seu maior obstáculo. Como é possível observar na substituição do sempre politizador debate político pela assepsia acrítica do marketing indiferenciador de diferenças programáticas e ideológicas. Ou no fazer político substituído por uma adesão a modelos comportamentais que transfiguram o cidadão-artífice num pachorrento consumidor de novidades antigas. Da "Constituição-Cidadã" aos direitos previstos no Procon pós-republicano é apenas um pulo. Lamentavelmente para trás. Mas com grande aporte publicitário. A receita de grandes anunciantes supostamente neutralizaria maiores pressões oriundas dos setores públicos, mas desloca o poder de fogo para as forças de mercado.

Não reconhecer este ponto ? como é comum a vários profissionais de mídia ? é confundir mudança de cativeiro com obtenção de liberdade.


Enquanto antigamente a imprensa só podia intermediar e reforçar o raciocínio das pessoas privadas reunidas em um público, este passa agora, pelo contrário, a ser cunhado pelos meios de comunicação de massa. (Idem, pág. 222)


Portanto, longe estamos de pluralismos e democracias que se consolidam. A práxis midiática é autoritária como exigência de corporação que pretende otimizar seu lucro. O jornal que "não dá pra não ler", ainda mais se anabolizado por fitas de vídeo, o outro que há alguns anos era "tão bom quanto as verdades" que dizia, e aquele que promete que, na sua leitura, o "consumidor saberá muito mais ainda" jogam o mesmo jogo e, em questões centrais, não se diferenciam editorialmente. Julgar que na grande imprensa há um veículo à esquerda dos demais é leitura quixotesca dos belos moinhos da propaganda bem-feita. Embalados pelo marketing, tal como a ação política legitimada institucionalmente, são pedagógicos de como a lei do valor subsume os demais campos, embora não elimine de todos a sua autonomia relativa.

Binômio indissociável

Alguns motivos explicam a falsa aparência de veículos que comportam atores que se contrapõem a seus interesses imediatos. O mais importante é a redução do jornal impresso como formador de opinião. Seu esvaziamento histórico é o que, paradoxalmente, permite a existência da crítica no seu interior. O setor que conta (TV) tem estrutura razoavelmente fechada e niveladora. Malgrado suas motivações, a ação dos articulistas citados no início deste artigo pode servir de legitimação à aparência crítica que qualquer mídia solicita.

Estaríamos no meio de um círculo sem saída? Seriam inócuas, por legitimar o campo midiático falsamente plural, as intervenções dos colaboradores oriundos de uma esquerda crítica e democrática? Longe disso, são excelentes formas de atuação contra-hegemônicas. Mas, se quisermos ultrapassar os umbrais da ingenuidade, deveremos perceber que inexiste imprensa plural e democracia efetiva nos marcos de uma sociabilidade ditada pela lógica do capital. Buscar espaços efetivamente alternativos, como é o caso deste Observatório e outras mídias de caráter comunitário ou sindical, e pleitear a reinvenção de uma esfera efetivamente pública são ações que embrionariamente começam a se esboçar no cenário contemporâneo. Ainda que molecularmente, o primado da razão meramente instrumental começa a ser questionado como obstáculo à emancipação plena do homem.

Filha dileta da modernidade, a imprensa, redefinida em suas premissas empresariais, é peça importante na sociedade civil e nas novas formas de luta que nela são travadas. Sua relação com os demais campos não se limita a uma estreita causalidade. Interage por ação recíproca, modificando uns aos outros. Imprensa plural e sociedade efetivamente democráticas não são uma feliz coincidência, mas um binômio indissociável.

(*) Professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro

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