Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O fantástico show da morte

AUTÓPSIA NA TV

Antônio Brasil (*)

Arte, educação ou puro sensacionalismo? Confesso que ainda não sei. Fui pego meio de surpresa. Sinceramente, achava que já havia visto tudo na TV. Primeiro, pensei que era alguma comédia de humor negro, meio de mau gosto, tão típica da TV inglesa. Alguma mistura de Monty Python com Casseta e Planeta. Mas estava sendo transmitido pelo Channel 4, um canal cult da TV inglesa, na quarta-feira (20/11), horário nobre, após as 19h. O programa era ao vivo, produzido num estúdio meio improvisado com cenário simples, luzes fortes e diversas câmeras circulando freneticamente, buscando sempre os melhores detalhes.

Na platéia, cerca de 400 pessoas estavam sentadas numa arquibancada e ouviam atentamente um médico com forte sotaque alemão que tornava a cena inevitavelmente cômica. Ele vestia um imaculado guarda-pó e estava cercado por vários assistentes, pronto para a ação. O médico se movimentava com desenvoltura pelo palco e anunciava que dentro de alguns instantes todos testemunhariam um momento histórico na TV mundial. Para aumentar ainda mais o drama, insistia em dizer várias vezes, num tom meio preocupado, que a Inglaterra era um país democrático e que ele não seria preso (sic). Fiquei ainda mais surpreso e curioso. Pausa para os comerciais.

O programa volta ao ar. No fundo do palco, meio indiferente a tudo, a estrela do espetáculo. Deitado numa mesa de metal, meio coberto por um lençol, o corpo muito pálido de um velho alemão de 72 anos. Anônimo, solitário e abandonado pela família, ele teria morrido pouco antes. Não sem autorizar por escrito o polêmico Dr. Gunther Von Hagens a realizar a primeira autópsia pública transmitida ao vivo pela TV. Como quase todos os mortais, o velho alemão teria decidido ainda em vida se tornar uma estrela da TV, nem que fosse depois de morto. Os mistérios da TV. E eu mal sabia que estava prestes a assistir a um dos mais polêmicos programas já produzidos pela TV britânica. Luzes, câmeras, autópsia na TV: o fantástico show da morte!

Vale-tudo

Continuava não acreditando. Só poderia ser alguma brincadeira. Ninguém permitiria uma coisa dessas, nem mesmo num país tão "estranho" como a Inglaterra. Mas, de repente, o médico começa a retalhar cuidadosamente o corpo do velho alemão. Haja estômago! As pessoas na platéia, apesar de terem disputado avidamente os ingressos e pago uma grana para participar do programa, escondem os olhos e fazem caretas. Outros simplesmente… adoram. O mestre de cerimônias, o Dr. Hagens, começa a retirar diversos órgãos internos do morto como um mágico costuma tirar coelhos de uma cartola. Mas não era nenhum Circo do Carequinha da velha TV Tupi ou qualquer coisa parecida. A TV, sem dúvida, mudou muito!

Continuava não acreditando. Qual seria a próxima surpresa daquele espetáculo macabro na TV? Dr. Hagens e seu convidado, o morto, reinavam absolutos no palco. Tenho que reconhecer que o médico alemão é um verdadeiro showman! Faria o maior sucesso na TV brasileira. As câmeras ágeis mostravam tudo em detalhes a uma platéia cada vez mais curiosa e atenta. "Senhoras e senhores, aqui está o coração do morto." Aplausos! Com um bisturi em close up, fazia incisões e explicava que aquele pobre homem provavelmente teria sido um alcoólatra e fumava muito. A platéia em tom de exclamação reage: "Oh!!!" Seu coração estava claramente dilatado pelo esforço extra para sobreviver e não teria resistido a tantos anos de excessos. Vejam! Mais aplausos. Muito instrutivo. Afinal, TV também é informação e educação. Insistia na importância daquela autópsia para entendermos melhor como funciona o nosso corpo e para evitarmos o medo da morte.

"Temos que desmistificar a prática e a profissão médica. Todos têm o direito de saber como vivemos e como morremos", prosseguia o médico alemão em tom messiânico. Cada vez mais surpreso, apesar das cenas macabras eu não ousava desligar ou mudar de canal. Sensacionalismo? Pode ser. Mas tudo parecia ao mesmo tempo sério e surreal. Não podia ser verdade!

No dia seguinte, a confirmação. Os jornais ingleses destacavam nas primeiras páginas: "Show da Morte. Autópsia pública ao vivo pela TV". Apesar das leis inglesas proibirem autópsias públicas desde 1830, os advogados do Dr. Von Hagens teriam conseguido encontrar uma alternativa legal. Nem mesmo a presença de policiais na platéia intimidou os produtores do programa. A autópsia do morto, ao vivo pela TV, foi um sucesso. O Channel 4, canal privado comercial voltado para temas artísticos, educacionais e muitas vezes polêmicos tinha obtido audiência recorde para o horário: 1,4 milhão de pessoas assistiram ao programa. Ponto para a nova TV vale-tudo.

E se a moda pega?

Como sempre, nem todos gostaram do que viram. Muitos reclamaram mas outros até pediram reprise. Em todo lugar há gente que adora ver filmes e programas de TV com muita desgraça, como o Cidade de Deus ou o Ratinho. E depois reclama.

A controvérsia estava estabelecida. Do jeito que a TV gosta. Muitos telespectadores escreveram dizendo que se sentiram enojados com as imagens da autópsia, apesar dos muitos avisos transmitidos pelo Channel 4 durante toda a programação. Pelo jeito, os executivos da emissora alcançaram seus objetivos. Muita gente não resistiu à curiosidade de ver a autópsia ao vivo e o programa teve repercussão internacional. Muitos telespectadores consideraram o programa um desrespeito com o morto e com o público. TV não respeita nada mesmo, mas todo mundo assiste. Pelo menos para poder falar mal. E como falaram! O assunto se tornou tema recorrente na imprensa e nas conversas dos britânicos. O programa ultrapassou as fronteiras e foi matéria no New York Times. Muito sucesso e obviamente muito dinheiro.

Outros telespectadores, em apoio ao Dr. Hagens, diziam que ele contribuía para quebrar mais um velho preconceito. Declaravam que é preciso encarar a morte de forma mais natural. A TV, com programas como o do Dr. Von Hagens, estaria prestando uma grande contribuição para o conhecimento do nosso próprio corpo. Muitos médicos não concordam com seu modus operandi. Mas também acreditam que é necessário abrir a discussão de forma menos hipócrita sobre um dos nossos últimos tabus: a morte.

Também não é a primeira vez que o médico alemão se envolve numa polêmica. Sua exibição de obras de arte feitas com cadáveres verdadeiros em posições estranhas e inusitadas é enorme sucesso de público e de crítica numa galeria de arte no East End, em Londres.

Pelo jeito, após o enorme sucesso da onda de reality shows, a televisão avança sobre seus próprios limites e consegue novamente se superar. Continuo em dúvida sobre os propósitos de programas desse gênero. Sensacionalismo, informação ou educação? Ainda estou muito chocado para ter alguma certeza. O patologista alemão declara que a autopsia pela TV foi tratada de uma forma "educativa e equilibrada". O sensacionalismo parece ter ficado por conta da imprensa. O publico não poderia ter se comportado melhor. Todos com muito respeito, apesar de um pequeno deslize: um dos câmeras teria limpado sua lente com o lençol que cobria o cadáver. Um horror, segundo alguns críticos.

De minha parte, continuo mais interessado nos mistérios da TV do que nos mistérios da morte. Mas também confesso que estou cada vez mais preocupado com as próximas "surpresas" que uma TV aberta sempre em busca de audiência a qualquer custo certamente ainda nos reserva. E se a moda pega no Brasil? Melhor nem pensar.

(*) Jornalista, coordenador do Laboratório de TV, professor de Telejornalismo da Uerj e doutorando em Ciência da Informação pelo convênio IBICT/UFRJ