Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O fato é velho, a vaia é nova

FÓRMULA 1

Victor Gentilli

Quem teve a oportunidade de acompanhar ao vivo as transmissões do Grande Prêmio da Áustria de Fórmula 1 pela TV Globo viu, desde um pouco antes das últimas paradas nos boxes, que a transmissão deixara de contar com uma única visão sobre a corrida. O narrador Cléber Andrade já duvidava que a Ferrari fosse capaz de dar ordens a Rubens Barrichello para que trocasse de posições com seu companheiro de equipe; o comentarista ? o Reginaldo Leme de sempre ? se prevenia: "Nnão digo nada", afirmava.

Leme, que acompanha Fórmula 1 praticamente desde que Emerson Fittipaldi começou a correr e a vencer (Emerson venceu sua quarta corrida e isto continua sendo um recorde imbatível do nosso primeiro campeão), conhece o automobilismo e sabe que o jogo de equipe existe desde que existem corridas. Houve até, no século passado, um tempo em que um corredor (ainda não havia a expressão piloto) era chamado de "coelho". Sua função era puxar a corrida além do limite do carro para atrair o concorrente e forçá-lo a quebrar. Tarefa cumprida, se porventura o automóvel agüentasse, era a vez de dar o lugar ao corredor destinado a ganhar.

Não há novidade alguma nisso. E quando a imprensa se surpreende é porque este caso passou dos limites. A vantagem do líder Schumacher sobre Juan Pablo Montoya é bastante folgada no campeonato mundial e, no GP da Áustria, Barrichello dominou todos os treinos, ocupou a primeira posição na largada e liderou de ponta aos… últimos metros. Barrichello havia renovado naqueles dias seu contrato com a Ferrari por mais dois anos. E este 2002 foi o melhor ano do piloto brasileiro. Das outras cinco corridas além da Áustria, Barrichello chegou em segundo lugar numa delas, com Schumacher em primeiro, e em todas as outras saiu, por acidente ou por falha mecânica, quando ocupava a primeira posição.

Boa parte do que afirmo neste comentário foi dito quando o mesmo Barrichello cedeu seu lugar ao mesmo Schumacher no mesmo GP da Áustria, no ano passado. A diferença é que ambos não estavam dividindo os primeiros lugares, mas Barrichello cedeu seu segundo lugar a Schumacher que ocupava a terceira posição.

Nos dias seguintes, os jornais afirmavam que houve indignação em todo o mundo. Houve alguma indignação, mas nenhuma na Itália. Os jornais italianos certamente deram ao fato o destaque do noticiário, o que não podia ser diferente. Mas indignação na imprensa italiana não houve. E nisso Reginaldo Leme errou, pois garantiu que ocorreria.

Se o fato é velho, a vaia da torcida é nova. Também nova, e decorrência evidente da vaia, o fato de o vencedor ceder o primeiro lugar no pódio, o troféu e o lugar na mesa da entrevista coletiva ao segundo colocado. Evidente que tudo isso não podia deixar de produzir estranhamento e, portanto, merecer destaque nos noticiários em todo o Brasil e no mundo.

Afinal, se a situação de troca de posições é normal, esta não o foi, pelo já aqui explicitado. E, certamente, o mais simbólico desta corrida, que os jornais até trataram com certa ironia criativa, foi Rubens Barrichello, no alto do pódio, carregando o troféu de vencedor, ouvindo o hino…. da Alemanha. Mas é isso mesmo: afinal, foi o alemão quem levou os 10 pontos.

Alguns jornais destacaram, em pé de página par, que o processo de obtenção da cidadania italiana de Rubens Barrichello será acelerado, pressionado pela Ferrari. Talvez a situação mude quando o piloto brasileiro também for italiano de papel passado.

Mas como estamos tratando de imprensa e não de corridas, forçoso lembrar que tal fato já ocorreu umas três ou quatro vezes, beneficiando Ayrton Senna, na McLaren. Aliás, Senna admirava o piloto Gerhard Berger, por sinal austríaco, pois este sempre atendia aos pedidos da equipe de trocar de posições com ele quando isso era possível e ajudava no campeonato.

Senna chegou a fazer o inverso, dando uma vitória a Berger, numa das vezes em que conquistou o campeonato por antecipação.

Os jornais que lembraram destes fatos agora o fizeram com o máximo de discrição.