Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O frenesi da cura do câncer

Paulo Lotufo, de Boston

 

O

recente frenesi provocado pela possível cura do câncer pode ser entendido dentro da seguinte seqüência de eventos.

1. O New York Times publica matéria assinada pela jornalista Gina Kolata na dobra superior da primeira com uma página interna bem ilustrada. Isto foi na edição dominical de 3 de maio. Trata-se das drogas angiostatina e endostatina, que foram testada com sucesso em camundongos no laboratório do Children’s Hospital de Boston, associado à Harvard Medical School. O pesquisador principal, Judah Folkman, é apresentado com um gênio não reconhecido. Uma boa reportagem, só que adequada ao caderno ScienceTimes, às terças-feiras.

2. Na primeira página, James Watson (descobridor do DNA juntamente com Crick, mas com uma trajetória considerada polêmica, para alguns pares) afirma que a droga estaria disponível no mercado num prazo inferior a dois anos.

3. As TVs entraram em frenesi, as ações da empresa Entremed subiram e, dois jornalistas (uma, a autora da reportagem, o outro da revista Newsday) receberam propostas milionárias para escrever livros sobre Judah Folkman.

4. Os concorrentes, principalmente o Boston Globe, acusam o New York Times de ter criado alarme para um assunto que não era tão novidade como apregoado. O NYT afirma que se por um lado cria-se falsas esperanças, por outro permite ao publico conhecimento da produção científica.

5. Neste ínterim, James Watson nega ter dado qualquer prazo. A repórter confirma a informação inicial.

6. Quando o assunto já estava relativamente calmo, as três principais revistas semanais americanas – Times, U.S. News & World Report e Newsweek – dão matéria de capa. Veja e Isto É fazem o mesmo, mas The Economist, a que possui a equipe de ciências mais rigorosa, nega-se a publicar o fato.

7. Conseqüências da reportagem, além do aumento das ações, da proposta milionária para um livro, foram as milhares de chamadas a médicos, em todo o mundo, de pacientes com câncer acreditando que uma nova era estava muito próxima.

8. A imprensa diária brasileira não fez feio. O Globo publicou uma entrevista com um pesquisador do INCA (duas vezes), o JB foi seco e direto ao assunto, a Folha (que adora tititi) foi séria, noticiou sem ampliar o fato entrevistando pesquisadores. Agora, o Estadão confundiu o Tietê com os canais de Estocolmo e sapecou um Nobel a Folkmann, entrevistou médicos não-pesquisadores ou alheios à área. Uma diferença da imprensa brasileira em relação à americana é o gosto pelo adjetivo antes a apresentação do médico por parte dos nossos jornalistas.

Minhas interpretações.

1. A terapêutica apresentada é experimental, ainda muito longe da realidade, porém New York Times e detentor de Prêmio Nobel são instituições gold-standard.

Não se pode duvidar deles, deve-se obediência cega. Quem iniciou o curso médico nos anos 70 pode-se lembrar do BCG-intradérmico, do interferon, das interleucinas… hoje terapêuticas restritas ou fracassos totais.

2. A matéria, como atualização médica, era inepta. Centralizava tudo nos trabalhos de um indivíduo, enquanto há outros grupos mais avançados (fato que as revistas semanais destacaram) e, o principal fato na questão câncer, não são as drogas ou novas terapêuticas, mas o fato de que pela primeira vez detectou-se uma diminuição nos casos novos de câncer. Ou seja, a prevenção está funcionando, ao menos nos Estados Unidos, independente de qualquer medicamento.

3. A preocupação da imprensa em criar falsas esperanças foi tênue, restringindo-se aos concorrentes do NYT. Curiosamente, o Evening News da NBC foi bastante cético com o fato. Há uma questão ética que deverá ser discutida no futuro. O Código de Ética Médico brasileiro veda aos médicos divulgar terapêutica não comprovada cientificamente, e médicos já foram punidos (vide quelação para doenças arteriais).

4.A imprensa deve avaliar o seu comportamento na divulgação de dados parciais como os referentes à angiostatina. A partir de agora, deverá se responsabilizar por denunciar todos os charlatães e médicos sem escrúpulos (na Itália, há um medico aposentado fazendo barbaridades na quimioterapia, aqui nos EUA há um cidadão que diz curar a distrofia muscular progressiva e um juiz federal brasileiro obrigou o SUS a pagar o tratamento e a viagem a uma infeliz família de Santa Catarina) que passem a comercializar drogas do tipo angiostatina. Afinal, a imprensa, e não a pesquisa cientifica, é que está validando estas drogas.

 

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