Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O fundo e a forma

GERAÇÃO MTV

Samir Thomaz (*)

Não faz muito tempo, o apresentador Marcos Mion, ainda na MTV, em meio à esbórnia que era seu programa Piores clipes, referiu-se de modo pejorativo e deselegante a um dos grandes atores do Cinema Novo, Paulo César Pereio. Na semana seguinte, por acaso, presenciei o exato instante em que ele leu a carta de uma telespectadora revoltada com a forma como havia tratado o ator, uma semana antes. "Ih", zombou Mion, "a mina deve ser sobrinha do tiozinho, aí", e fez um de seus volteios característicos, coadjuvado pelo impagável Cidão. Perplexo, demorei a perceber a heresia. O "tiozinho", no caso, era o próprio Pereio, ator em Os fuzis, Toda nudez será castigada, Iracema, uma transa amazônica, Tudo bem e Eu te amo, só para ficar em alguns filmes.

Na mesma semana, mais uma vez por acaso, pois tenho uma filha adolescente e em casa a tevê de ordinário vive sintonizada na MTV, passava o esfuziante Quiz MTV. Lá estava uma das VJs da casa, Marina Person, filha do cineasta Luiz Sérgio Person, diretor de pelo menos dois momentos superlativos do cinema brasileiro, O caso dos irmãos Naves e São Paulo S/A. A pergunta era sobre Moreira da Silva, o criador do samba de breque. A bela morena fez caras e bocas, deu pulinhos de aflição, virou os olhos à espera de que os céus a ajudassem, arrepanhou os cabelos, recebeu o apoio da galera, mas acabou confessando sem essa nem mais aquela que não conhecia o Kid Morengueira.

Massa sem história

Gosto do Marcos Mion. Acho que ele tem o melhor timing hoje da TV brasileira, é arrojado, criativo, inteligente, sem contar que ainda é incrivelmente jovem e, pelo que sei, tem repertório cultural que não se encontra na esquina. E gosto também da Marina Person, como de resto nutro simpatia por todas aquelas carinhas simpáticas, tagarelas e pretensamente modernas que aparecem na tela da MTV. Se isso ainda não fosse motivo, o fato de minha filha viver sintonizada nessa emissora já o seria de sobra, afinal, a gente acaba curtindo muita coisa por amor aos filhos. E, no meu caso, nem seria preciso me esforçar muito, pois minha geração é muito próxima da dela.

Essa falta de respeito por quem fez história, no entanto, essa iconoclastia às cegas, sem saber de quem se fala nem a quem se destrói, isso me incomoda demais. Essas duas imagens televisivas ficaram retidas na minha memória e acabaram forjando em mim como que o emblema da geração de jovens que hoje está aí: semi-analfabeta, inculta, individualista, afásica. É claro que toda unanimidade é burra e eu não vou cometer aqui o pecado imperdoável da generalização. Convivo com garotos e garotas inteligentíssimos, antenados, articulados, sensíveis e generosos a um só tempo, o que me leva às vezes a ficar espantado com o grau de maturidade que já têm sendo tão jovens. E é claro, também, que considero as graves e enormes lacunas que a precária educação brasileira deixa aqui, ali e acolá. Porém, em última análise, o Marcos Mion e a Marina Person não são jovens quaisquer. Fazem parte de uma camada que recebeu no mínimo educação de classe média, trabalham numa emissora formadora de opinião. Suas palavras e atitudes adquirem um peso extraordinário no universo adolescente.

Obviamente que não se trata aqui de crucificá-los. Eles só entraram na história para ilustrar o cenário, uma vez que foram pegos em momentos infelizes a que todos estamos sujeitos, em maior ou menor grau. Tampouco procurou-se incorrer em qualquer espécie de arcaísmo ideológico, defendendo a tradição em detrimento da dialética que move o mundo. A idéia passa a léguas de tais pressupostos.

Ao fim e ao cabo, o que fica no ar é um grande ponto de interrogação: o que esperar de uma geração que tem forma mas não tem fundo? Num mundo em que a informação é cada vez mais primordial, em que os átomos foram superados pelos bits, para onde caminha essa massa sem consciência da própria história?

(*) Estudante de Jornalismo, 38 anos, editor-assistente na Editora Ática e autor dos livros Meu caro H (Ática, 2001) e Carpe Diem (Atual, 2000), entre outros