Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O Globo

CENSURA TOGADA

"A volta da censura", Editorial, copyright O Globo, 2/6/02

"A imprensa brasileira está novamente sob censura prévia. Em pleno Estado de direito, com as instituições republicanas em funcionamento, por pelo menos quatro vezes em quase um ano veículos de circulação nacional foram cassados no direito constitucional de livremente informar. O primeiro da série de atentados contra a liberdade de imprensa ocorreu em julho do ano passado com O GLOBO e outros veículos das Organizações Globo (jornal ?Extra?, revista ?Época?, TV Globo e rádios CBN e Globo). O tema vetado pela censura prévia envolve o pré-candidato a presidente pelo PSB, Anthony Garotinho, numa tentativa de suborno de um fiscal da Receita. O ex-governador do Rio aparece, em algumas gravações, tratando do assunto.

No centro do escândalo está um antigo correligionário, auto-declarado financiador e amigo de Garotinho, posteriormente convertido em adversário – e responsável pelas gravações. O empreiteiro Guilherme Freire pode provar os bons tempos vividos em Campos com Garotinho até que desavenças naturais nesse tipo de relacionamento pessoal, político, eleitoral e financeiro separaram os dois e levaram Freire – por precaução, diz ele – a grampear o ex-amigo. Depois de ter acesso às fitas, O GLOBO, por praticar jornalismo sério e profissional, investigou o conteúdo do material durante 40 dias antes de publicar a primeira reportagem. Convencido da veracidade das provas, o jornal começou a informar seus leitores. Não pôde prosseguir. Anthony Garotinho obteve liminar de um juiz de primeira instância contra a publicação das reportagens, sob o argumento de que era vítima de um adversário pessoal e político, o qual valia-se de gravações ilegais para atingi-lo por meio da imprensa. Acatada a tese, O GLOBO foi censurado e até hoje está impedido de publicar o conteúdo das fitas, à espera do julgamento do mérito.

Há uma diferença entre a censura togada e a ação das tesouras e das famigeradas canetas pilot, manejadas, em um primeiro momento, por oficiais do Exército e, depois, por agentes do departamento de censura da Polícia Federal, durante parte da ditadura militar (1964-1985). E a diferença é indiscutível: hoje, o veto à publicação da notícia reveste-se de legalidade. Esta, portanto, é uma censura mais grave que a do passado. Aquela, sabíamos passageira; o regime não seria eterno. Esta, sibilina, transveste-se de legalidade por brotar da pena do juiz. Aquela, arbitrária, sustentada por um ato de exceção (AI-5). A de hoje, legal. Mas tanto uma quanto a outra resultam no mesmo dano social: a desinformação do cidadão.

A censura ao GLOBO não foi um caso isolado. Há poucos dias, liminar idêntica também impediu a revista ?Carta capital? de exercer o direito constitucional de livre informação e manifestação. O tema era o mesmo: aquelas fitas e o polêmico e turbulento relacionamento entre Garotinho e o empreiteiro. Mais uma vez a imprensa foi impedida de cumprir sua missão. Novamente a sociedade teve suprimido o direito constitucional de informar-se.

Os ataques à liberdade de imprensa são vários. Um dos mais recentes alvejou a revista ?Época?, por causa de reportagens sólidas sobre calotes dados na praça pela Igreja Renascer. A Justiça negou o pedido de recolhimento da publicação. Mas determinou a retirada de outdoors em São Paulo, usados para divulgar o conteúdo da revista. Ou seja, divulgar a informação pode; anunciar, não. Ainda em São Paulo, uma desembargadora, num show de corporativismo, proibiu a divulgação de qualquer informação sobre um processo administrativo em andamento contra um colega, o juiz trabalhista Renato Mehana Khamis. Na prática, chamou a atenção para o que poderia passar despercebido da imprensa. Na essência, mais um ato de censura, que não pode ser confundido com a usual e legítima decretação de sigilo de Justiça sobre processos em tramitação.

Este não é um manifesto corporativista, favorável ao vale-tudo jornalístico. É inadmissível a existência de qualquer instituição, cidadão ou poder da República à margem da lei — inatingível, imune e impune. A imprensa quer informar com liberdade e ser responsabilizada pelos erros que cometer. Inaceitável é a censura prévia. Aqui, como nos países civilizados, a livre expressão e o direito à privacidade convivem lado a lado na Constituição. Quem pratica jornalismo com seriedade sabe quando um direito se sobrepõe ao outro. E tem absoluta consciência que tem de pagar por erros que cometer. Mas não aceita a censura prévia. Na ditadura militar dos generais a censura se paramentou de verde-oliva. Queremos que o negro da toga continue a ser símbolo da seriedade do Poder Judiciário. E não das trevas."

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"Censura de Garotinho tem 2 pesos e 2 medidas", copyright O Globo, 1/6/02

"O ex-governador Anthony Garotinho, pré-candidato do PSB a presidente da República, usa dois pesos e duas medidas para censurar a publicação de gravações que o comprometem. Ele autorizou a revista ?IstoÉ? deste fim de semana a publicar apenas dois diálogos de um conjunto de fitas gravadas em poder do ex-colaborador e empresário Guilherme Freire. Desde junho do ano passado, porém, Garotinho censura, na Justiça, a publicação pelo GLOBO de conversas suas e de assessores que reforçariam a denúncia de que teria subornado um fiscal da Receita Federal para conseguir autorizações para o sorteio de sete carros em seus programas de rádio e TV em 1995.

Garotinho alegou, em entrevista à revista, que estava autorizando a divulgação dos dois diálogos para não ser visto como censor. Há duas semanas, porém, ele novamente recorrera à Justiça para proibir a revista ?Carta Capital? de publicar uma entrevista com Guilherme Freire.

A assessoria de Garotinho diz que ele teve conhecimento prévio dos trechos que a revista publicaria. Perguntada pelo GLOBO se a decisão de liberar a divulgação de conversas do ex-governador era extensiva ao jornal, a assessoria disse que o pré-candidato só examinaria o pedido se tivesse previamente acesso ao material a ser publicado. Desde o ano passado, porém, Garotinho tem conhecimento do teor das gravações a que O GLOBO teve acesso, já que constam do processo na Justiça.

Além disso, a série de reportagens publicadas pelo GLOBO já deixava claro o conteúdo das fitas, embora sem publicar as transcrições das conversas. As reportagens mostraram que Garotinho maquiou o contrato social de sua empresa, a Garotinho Editora e Gráfica, para justificar patrimônio e obter a autorização para os sorteios. Na mesma série, o fiscal da Receita Federal Marcos Azevedo admitiu ter recebido uma proposta de vantagem financeira para liberar os sorteios.

As denúncias envolveram também o conselheiro do Tribunal de Contas do Estado Jonas Lopes de Carvalho, a primeira-dama Rosinha Matheus e o ex-contador de Garotinho Waldemar Linhares Duarte. Com base nas denúncias, a Receita abriu uma investigação e, este ano, multou Jonas e Rosinha em R$ 200 mil.

Garotinho nunca mostrou nome de vencedores

Na ocasião, a ex-produtora do programa Valéria de Freitas declarou que Garotinho simulou a realização do sorteio do último carro e da casa. O ex-governador negou a denúncia, prometeu apresentar os ganhadores, mas até hoje os nomes não foram revelados.

Num dos diálogos divulgados esta semana pela ?IstoÉ?, Garotinho conversa com o ex-contador Waldemar Linhares, encarregado das negociações com o fiscal. Sem fazer referência direta ao suborno, Garotinho orienta o contador a esperar que Marcos Azevedo apresentasse sua proposta. Pede ainda que Waldemar lembrasse, para sensibilizar o fiscal, que ele distribuía cadeira de rodas para pessoas pobres."

 

"Brasil sofre restrições à livre informação", copyright Folha de S. Paulo, 1/6/02

"As elevadas indenizações arbitradas em ações de indenização por dano moral movidas contra jornalistas e órgãos de comunicação -e casos recentes de ?censura judicial?- colocam o Brasil entre os países da América Latina com restrições à livre informação.

Essa avaliação foi feita pelos participantes do seminário ?Meios de comunicação e sistemas de Justiça na América Latina?, realizado entre os dias 21 e 23 de maio, em Quito, no Equador.

O encontro foi promovido pela Fundação Konrad Adenauer, com apoio da Universidade Católica do Equador, e reuniu jornalistas, advogados, juristas e acadêmicos de sete países da região.

A partir do relato dos expositores de cada país -que identificaram os obstáculos para a imprensa e sugeriram formas de superar essas barreiras- foi redigido documento com propostas para melhorar a cobertura jornalística sobre as questões do Judiciário.

Segundo consenso do seminário, o maior desafio para operadores de Justiça e jornalistas é encontrar o equilíbrio entre a garantia da livre informação e a inviolabilidade dos direitos individuais.

No caso brasileiro, foi enfatizado que ?o risco para a imprensa são decisões que, a título de preservar a privacidade, limitam o direito de informação, estimulam a censura prévia e a chamada ?indústria? das indenizações?.

Como exemplo de censura prévia, os organizadores do encontro receberam exemplar da revista ?Carta Capital? que relatou a proibição judicial de publicar reportagem sobre gravações com eventuais acusações contra o pré-candidato à Presidência da República Anthony Garotinho (PSB).

Foram citados, também, casos de indenizações milionárias fixadas por juízes em ações movidas por membros do Judiciário contra órgãos de comunicação.

Entre as deficiências da imprensa, foram destacadas a falta de preparo dos jornalistas para cobrir essa área específica, casos de prejulgamento pela mídia, a incompatibilidade entre o tempo do processo e os prazos das publicações, além de critérios de edição que confundem o interesse público com o ?interesse do público?.

Foi registrada a tendência de aumento no número de ações de indenização por danos morais, a subjetividade desses julgamentos e o arbítrio dos juízes no estabelecimento de indenizações, fatos que inibem, principalmente, órgãos de comunicação no interior.

Nos últimos nove anos, enquanto aumentou quatro vezes o número de processos no STJ (Superior Tribunal de Justiça), as ações de indenização por danos morais aumentaram 50 vezes.

Segundo o ?Consultor Jurídico?, publicação especializada, calcula-se que as quatro maiores empresas jornalísticas no Brasil têm contra si 1.237 ações indenizatórias por dano moral. Muitas decisões ultrapassam os limites de prazo e de valores fixados pela Lei de Imprensa de 1967.

Em relação às condições de acesso a informações do Judiciário, a situação brasileira é considerada mais avançada. Os jornalistas encontram na internet decisões judiciais de vários tribunais e muitas cortes dispõem de assessorias que facilitam as consultas.

Há países onde prevalece o segredo total, inclusive de processos que não estão sob sigilo de Justiça, e funcionários do Judiciário ?vendem? informações à imprensa. (O jornalista FREDERICO VASCONCELOS, da Reportagem Local, representou o Brasil no seminário de Quito e viajou a convite da Fundação Konrad Adenauer)"