Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O guardião das liberdades ameaçadas

OMBUDSMAN NA MÍDIA

Nahum Sirotsky, de Israel (*)

Os israelenses vivem com olhos e ouvidos na mídia. Há noticiário nos meios eletrônicos a cada 30 minutos. A mídia impressa procura oferecer algo mais do que se ouve e vê à noite na televisão. O país é pequeno (do tamanho de Sergipe), cercado de vizinhos não muito amigáveis, convivendo com outros que não deixam passar um dia sem um atentado. Com seus 4,5 milhões de habitantes, o Estado judeu se fez uma potência. O consumo de noticias é insaciável. A mídia impressa tem respeitável circulação. Os programas da mídia eletrônica dedicados a política e relações com os vizinhos têm altas audiências.

Existe um Conselho de Observação da Mídia, privado, constituído pela própria mídia, com nomes respeitados e conceituados que têm força moral suficiente para condenar e ser obedecido. O Prêmio Sokolov, de excelência, é tanto um reconhecimento dos colegas como dos leitores pela qualidade e integridade dos premiados. A mídia nada perdoa. E há prêmio de 5 mil dólares, o Prêmio Abramowitz, concedido à qualidade e à coragem na crítica da mídia.

As simpatias da CNN

Pelo mundo cresce o número de veículos que indicam um indivíduo cuja função é a de criticá-los. No meio jornalístico são conhecidos como watchdogs, ou cães de guarda. São os ombudsmans, palavra em que se engasga na pronúncia e na escrita. Em Israel existe uma organização semelhante, incumbida de investigar e criticar o governo. Seu poder é moral. É dirigida por indivíduo de ilibada reputação, que anualmente publica um relatório que faz tremer a burocracia e os políticos. E sempre resulta em processos e denúncias, medidas concretas. Boa idéia. Os cães de guarda recebem reclamações diariamente contra veículos e profissionais. Conforme o que se declara, tanto pode resultar em multa como em fim de carreira.

Tenta-se. A democracia depende de uma Justiça honesta e de uma imprensa vigilante e corajosa. Quase todos os sistemas autoritários têm seus legislativos faz-de-conta. Sem mídia para denunciar desvios e Justiça incorruptível para garantir os direitos de todos não existem as liberdades. Mas não é tarefa fácil ser watchdog. Os proprietários da mídia admitem críticas até o ponto em que não prejudiquem seus negócios. Mas a crítica da mídia por gente dela mesma é apresentada como símbolo de integridade. O prêmio aos críticos acaba tendo o não-confessado objetivo de garantir a liberdade de quem faz a crítica, torná-lo imune para que possa falar sem receio, sem perder o emprego. O comitê do prêmio transformou-se num cão de guarda do profissional no qual ninguém toca quando se mantém íntegro.

Um dos vencedores do ano foi a escritora que reclamou, citando fatos, do facciosismo da cobertura do Haaretz, matutino de centro-esquerda, favorecendo os palestinos. Provou-se que tinha razão. Outro protesto foi de um crítico de mídia que atacou duramente o colega que faz o mesmo na televisão, provando que é parcial e escolhe suas vítimas antes de descobrir motivos para atacá-las. E acusa os colegas de calarem diante desta injustiça.

Tragicamente, pouco depois da crítica ao Haaretz, o casal que mereceu citação especial, sem prêmio monetário, recebeu telefonema em casa para correr ao hospital. Chegaram tarde. A filha e a avó haviam acabado de morrer num atentado terrorista. Chen e Lion Kenan foram procurados pela CNN, a quem concederam entrevista de 30 minutos. Foram cortados ao mínimo, enquanto a emissora concedia muito mais espaço à mãe do terrorista suicida. Seu protesto jogou outros contra a CNN , que acabou recuando de suas simpatias.

Peso em troca de talento

Israel tem programas semanais de televisão de crítica à mídia. E críticas em jornais. Nada de excepcional, porém mais do que a média no mundo. É pela televisão e rádio, acompanhando a sirene que toca por todos os cantos, que os israelenses são informados de que estão sendo atacados. Confiar na mídia é questão de vida ou morte. Mas a crítica ainda está longe de cumprir sua missão e de ser entendida pelos proprietários.

Os donos dos meios ainda cedem espaço a críticos como gesto de relações públicas. Não compreenderam a importância que pode ter o "cão de guarda" na relação da mídia com seus leitores e espectadores, no aprofundar a confiança do consumidor, na intimidade dele com seu veiculo preferido. E que a coluna ou o programa precisariam não sofrer censura alguma, principalmente na crítica ao trabalho da mídia na observação da vida do país. Não se trata de programas interativos. É a questão da inestimável participação do mais humilde dos leitores ou espectadores na feitura da mídia, no seu constante aprimoramento, no aperfeiçoamento da sociedade, na atribuição de função concreta às liberdades e no contato do cidadão com os governantes.

O ombudsman é uma invenção que pode salvar o mundo da ditadura da mídia e da propaganda. Merece os mais profissionais cuidados. As reclamações contra autoridades são a chance de o veículo investigar as denúncias, pressionar por soluções e anunciá-las. Serviço prestado, pois a mídia não existe apenas para noticiar o que acaba sendo apenas um fato virtual. Ela existe para servir, ser a voz dos que nela confiam. O meio pelo qual se contribui decisivamente para fazer do indivíduo um cidadão que nada deve temer quando defende direitos.

O ombudsman pode ser o que falta à mídia hoje: o canal pelo qual a mídia se informa de seus defeitos, livra-se de seus anacronismos, se compatibiliza e explica o mundo que está nascendo. E aos colegas, para recuperar a modéstia perdida, que faz com que se comportem, devido à carteirinha, como uma categoria profissional acima de todas. E as escolas, que supostamente ensinam Jornalismo, acordarem para o fato que diplomam técnicos depois de quatro anos, coisa que se pode aprender em poucos dias, quando deveriam ensinar a pensar, a apreender e compreender a época revolucionária que vivemos. Ajudar os indivíduos a se orientarem no que têm tantos aspectos de difícil compreensão. Salvá-los do overkill, a massa de informações a que são submetidos nas 24 horas do dia com o efeito de navegar sem bússola em mar tempestuoso.

Não vi mídia alguma descobrir o vasto potencial do instrumento para o qual dedicam de forma geral um espaçozinho: o ombudsman, se entendido, pode nos salvar do emburrecimento. No mínimo impediria que a mídia, afogada pelo dólar caro, continue a aplicar meios técnicos e papel desperdiçado enquanto elimina talentos para poupar dinheiro. Quem diz que jornal pesando quilo é melhor do que um de poucas folhas? Os açougueiros não os usam mais. É criatividade que anda faltando. Cortam os dedos e ficam com bijuterias. Que decadência!

(*) Correspondente da RBS e do portal iG <www.ig.com.br>