Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O homem invisível

MÍDIA & ATEÍSMO

Daniel Sottomaior (*)


"Nós, a Ku Klux Klan, reverentemente reconhecemos a majestade e supremacia de Jesus Cristo e reconhecemos sua bondade e divina providência. Erguemos nossos rostos para Deus nosso pai, reconhecendo que este país foi fundado como uma nação Branca sob seus propósitos tais como revelados na Sagrada Escritura." Credo dos Cavaleiros da Ku Klux Klan do Texas (texasknights.com)


Distorcer a percepção humana é tarefa das mais simples. Toda criança que aprende mágica percebe isso bastante cedo, porque a maior parte dos truques se baseia em um único princípio, que é o da violação de hipóteses ocultas.

Quando um inocente membro da platéia escolhe uma carta de baralho e depois descobre que o mágico sabia de antemão que carta seria escolhida, a aparência é de que alguma lei natural foi violada. Como pode o impossível ter acontecido? A resposta é simples: em primeiro lugar, não há nada de impossível em se adivinhar uma carta de baralho. É somente pouco provável. E o impossível é muito diferente do improvável. Afinal, o impossível simplesmente não acontece. Já o improvável não só acontece como pode se tornar freqüente em determinadas circunstâncias.

Mas como o mágico parece acertar todas as vezes, contrariando a lei das probabilidades? Vez após vez, a experiência que temos do mundo nos diz claramente que quando cortamos um monte de baralho nossa escolha é livre. Por isso acabamos admitindo, sem nos dar conta, que a escolha sempre é livre. Para o truque acontecer, basta mudar isso. A mágica se cria quando subvertemos essa hipótese sem o conhecimento da platéia. O truque acontece realmente na interpretação do espectador, e não na manga do mágico.

Essa técnica é tremendamente eficaz porque toma partido das deficiências da cognição humana para permitir que alguém minta dizendo somente a verdade. Somos tão afeitos às nossas idéias preconcebidas sobre o mundo que raríssimas vezes admitimos questioná-las. A ilusão da mágica permanece, por mais que se pense sobre ela, porque o sujeito que procura o truque fora de si mesmo nunca irá encontrá-lo. O mágico garante a integridade do seu segredo escondendo-o onde temos certeza de que ele não está ? o que, aliás, ele também faz com pombos e coelhos. É o golpe perfeito porque conta com a colaboração involuntária da vítima, como qualquer conto do vigário.

As hipóteses ocultas fazem vítimas em todas as atividades humanas: quem acha que astrologia funciona porque seu mapa astral "acertou" supõe que nenhum outro mapa astral "acertaria" igualmente; quem afirma que um medicamento é eficaz por ter-se sentido melhor depois de experimentá-lo assume que efeito placebo ou remissões espontâneas não ocorreram ou não existem; quando o homem chega tarde em casa dizendo "trabalhei até agora", a esposa assume que ele trabalhou desde cedo; o comprador que se satisfaz com um grande desconto assume que a regra são descontos menores.

Causa e efeito

Em novembro, a Folha de S.Paulo noticiou a criação do movimento bright nos Estados Unidos. Bright é uma nova denominação para todos aqueles que possuem uma visão racional e naturalista do mundo, o que inclui as pessoas sem religião e, naturalmente, ateus e agnósticos. A iniciativa é uma resposta à crescente negação do pensamento científico e ao avanço da religião, especialmente em assuntos de estado. Talvez o jornal esteja à frente de seus pares simplesmente por publicar a matéria, já que muitos meios de comunicação, como o Estado de S.Paulo, preferiram ignorar solenemente o assunto. Mas parece que a decisão foi um tanto relutante, pois o próprio texto admite estar cinco meses atrasado em relação ao evento que relata.

Também é notável na matéria a ausência de qualquer consulta a fontes locais. Mas não é por falta de conexão do tema com a realidade nacional. O Brasil possui 7,4% de pessoas sem religião, pouco menos do que os 9,3% norte-americanos. Aqui também os descrentes estão organizados e têm reclamações idênticas às de seus colegas setentrionais, talvez até com mais razão. No quesito separação igreja-estado, por exemplo, é verdade que tanto lá como cá temos mensagens religiosas no dinheiro e que a maioria religiosa rejeita amplamente, inclusive pelo voto, declarações de ateísmo.

No entanto, nosso artigo constitucional que estabelece a separação entre religião e governo não tem efeito algum porque faz uma ressalva quanto a colaborações "de interesse público". Na prática, essa redação destrói o princípio que deveria sustentar e legaliza as dezenas de milhões de reais que o governo despeja nas igrejas já universalmente isentas de impostos, assim como os crucifixos onipresentes nos recintos públicos do executivo, legislativo e judiciário de todos os níveis do país. Isso faria corar até o mais agressivo dos fundamentalistas norte-americanos e dá motivação extra para os brights no país. Mas para a matéria, eles não existem.

A maior parte das pessoas acha fácil distinguir um santo de um monstro através de suas declarações. Veja se você também consegue:


"O povo diz com simplicidade e muito acerto: ?A causa da violência é a falta de religião?. A carência de valores religiosos, espirituais e morais na sociedade, nas famílias e na vida individual contribui muitíssimo para a violência." (12/11)

"Os interesses da Igreja certamente coincidem com os nossos em nossa luta contra os sintomas de degeneração no mundo de hoje, em nossa luta contra o movimento ateu, contra a criminalidade". (26/8)


As afirmações parecem muito semelhantes, e à primeira vista poderiam ter sido feitas pela mesma pessoa.

O homem que se colocou ao lado dos interesses da igreja talvez tenha sido mais moderado, pois apesar de colocar o ateísmo ao lado da criminalidade, não fez nenhuma associação explícita de causa e efeito. Ele também disse:


"Estamos convencidos de que o povo precisa e pede esta fé.
Assim, assumimos a luta contra o movimento ateu, e não somente com
algumas declarações teóricas: nós o extinguimos."
(24/10).


Adivinhou? As duas últimas afirmações foram feitas em
Berlim por Adolf Hitler, respectivamente em 1934 e 1933. A primeira foi feita
pelocardeal-arcebispo metropolitano de São Paulo, d. Cláudio Hummes,
e seus bispos auxiliares, este ano.

Supremacia religiosa

O que muita gente pode ter interpretado como diagnóstico de problemas sociais é na verdade uma acusação direta a um grupo específico de pessoas. "Falta de religião" não é uma daquelas entidades que possui existência etérea e abstrata, mas uma característica que só se materializa plenamente nas pessoas que não têm religião, aqueles 7,4% de brasileiros. Portanto, é impossível atribuir a violência à falta de religião sem apontar os sem-religião como criminosos, e presumivelmente as pessoas não muito religiosas como autoras de delitos menores.

Poucos dias depois da matéria dos brights na Folha, os cardeais assinaram uma nota pastoral sobre a violência urbana que seria lida em todas as igrejas de São Paulo no fim de semana seguinte. Segundo eles, "outras causas [da violência] são a superlotação carcerária, o tráfico e o consumo da droga, o desespero por não ter trabalho e ser obrigado a viver na miséria, o alcoolismo".

Vale a pena repetir: a primeira causa palpável da violência de que os nobres religiosos se lembraram foi "a falta de religião", enquanto o tráfico e problemas sociais vieram depois, agrupados em "outras causas". Se ao menos os dados apoiassem essa afirmação cristã, só restaria aos sem-religião aceitar com vergonha a denúncia. Mas não é o caso.

No entanto, nenhuma organização secularista foi consultada. Nenhum indivíduo foi ouvido. Os números da maciça adesão religiosa da população carcerária também não foram levantados. As baixas taxas de criminalidade de países altamente secularizados ou populações sabidamente céticas, como os cientistas da Academia Nacional de Ciências dos EUA, também não foram lembradas. Os cardeais, no entanto, não deixam a realidade atrapalhar suas opiniões. A imprensa também não.

Passou despercebido ainda o fato de que d. Hummes está ligado a movimentos de direitos humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no entanto, começa afirmando que "o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo." Foram diversos os artigos violados de uma vez só com a singela declaração. Os sem-religião foram acusados não só de imorais, como também de criminosos, deitando por terra a presunção de inocência (art. 11o), a preservação contra ataques à honra e à reputação (art. 12o) e o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões (art. 19o).

Quando a Declaração afirma que os direitos e liberdades que proclama valem para "todos os seres humanos" sem distinção de religião, o cardeal certamente lê que as pessoas sem religião não estão incluídas. Talvez acostumada com as interpretações literais de seu livro sagrado, a igreja parece entender que "liberdade de crença" evidentemente não inclui a liberdade para não crer. A julgar pelo seu silêncio, a imprensa parece concordar.

Em outras épocas, a deterioração social já foi atribuída aos negros, aos homossexuais, aos judeus e a todos os demais não-cristãos ? em todas as vezes, por iniciativa ou ao menos com entusiástico apoio da igreja. Essa herança nos acompanha até hoje, em grande parte ainda devido às instituições religiosas. Como os cristãos da Ku Klux Klan assumiram a tarefa de atacar judeus e negros, resta ao Vaticano continuar depreciando nominalmente, e com todas as letras, homossexuais e descrentes.

A Klan ao menos se baseia nas estatísticas (corretas) que mostram altos índices de criminalidade entre negros para tirar suas conclusões (erradas) de que os negros são criminosos por natureza. A igreja católica já não tem esses pudores e inventa de uma vez os dados sobre os sem-religião. Depois da supremacia branca, que venha a supremacia religiosa.

"Vício radical"

Sim, sim, vão longe os tempos da Inquisição e das Cruzadas com seus horrores, e acusar a Igreja Católica por eles já é démodé. Ela já perdoou Galileu e aceitou descobertas científicas muito mais recentes, como a evolução das espécies e até o Big Bang, que tem menos de um século! Mas não se deve esperar demais de uma instituição que impede a liberdade reprodutiva de bilhões de pessoas em todo mundo e é transmissora ativa de uma letal desinformação científica sobre a importância de preservativos no combate à Aids.

Da imprensa, por outro lado, pode-se esperar mais.

Pode-se esperar, por exemplo, que ela aponte que as posturas adotadas pela igreja e seus representantes é incompatível com sua suposta defesa dos direitos humanos. Suposta, sim, porque a defesa seletiva de direitos dos humanos iguais a nós responde por nomes como racismo, preconceito e discriminação.

Os nazistas e os defensores da segregação racial também pregavam direitos humanos, mas só para grupos nos quais, coincidentemente, eles estavam incluídos: homens bem brancos e cristãos. Eles também conquistavam poder e dinheiro à custa da adesão pública a suas causas e da depreciação daqueles que combatiam. Também se declaravam superiores. Agora, uns são apenas "cristãos" ou "religiosos" e os demais são criminosos, mas isso muda alguma coisa?

Os líderes nazistas, como de resto grande parte da população alemã, eram pios cristãos, e herdaram seu anti-semitismo da igreja. Seus argumentos contra ateísmo e judaísmo eram os mesmos: ódio, preconceito e desinformação. A postura dos cardeais, que sem constrangimento algum apontam os sem-religião na raiz do desarranjo social, não é diferente.

A identificação maniqueísta de inimigos da ordem social faz parte de um velho e conhecidíssimo repertório de manobras de manipulação da opinião pública, mas parece não existir um único jornalista que se lembre disso. Aristóteles já havia notado que "as pessoas ficam menos preocupadas com comportamento ilegal de líderes que eles consideram pios e tementes aos deuses. Além disso, é mais difícil que se levantem contra ele, acreditando que os deuses estão do seu lado."

É praxe na mídia colher declarações das pessoas afetadas pelos eventos e declarações que fazem o noticiário. No jargão jornalístico, isso se chama "repercutir". Quando surgem novos tratamentos de saúde, médicos e pacientes são entrevistados. Qualquer que seja o tema, autoridades e especialistas são chamados para dar sua opinião. O procedimento é ainda mais importante quando está em jogo uma acusação grave. Se até os acusados de cometer um único crime são consultados, com muito mais razão deveriam se ouvir os grandes responsáveis pela violência urbana no país, e provavelmente no mundo!

Mas não foi isso que aconteceu. Quando os insultados são ateus, o interesse jornalístico em consultar a parte atingida misteriosamente desaparece. E esse não foi um incidente isolado. Durante a última campanha eleitoral que perdeu, o evangélico Anthony Garotinho afirmou que "as pessoas que não têm Deus no coração acabam se tornando violentas, acabam cometendo toda sorte de crimes". Nenhum dos acusados foi procurado pela imprensa. No atual mandato de suas esposa, foi instituído o ensino confessional em escolas públicas, contrariando a constituição e a Lei de Diretrizes e Bases da educação, e foi criada uma lei com o propósito específico de demitir os professores de religião que porventura tivessem perdido a fé. Mais uma vez, nenhuma organização secularista foi ouvida.

Às vezes a própria mídia toma para si a acusação, como foi o caso da Folha. Em seu especial sobre religiões de 2001, ainda online, ela canta loas a meia dúzia de religiões, incluindo aquelas que promovem o consumo de psicotrópicos, mas o texto sobre ateísmo foi escrito por um católico do século 19 que descreve a posição como "vício radical do coração e do espírito humano". Parece que consultar um descrente ou os bons textos de referência da área também estava fora de questão.

Suprema arrogância

Quem acha que a sociedade não tolera mais a discriminação e o preconceito e que nossos jornalistas são atentos defensores da igualdade democrática está evidentemente enganado. É bem verdade que se ampliaram bastante os grupos que merecem direitos e consideração pública, desde a época em que eram somente clérigos e nobres por direito divino. Mas como em qualquer outra época, continua havendo uma casta de pessoas socialmente reprováveis cujo aviltamento parece natural a todos.

Felizmente já existem promotorias e delegacias dedicadas a problemas de gênero e de raça. Incidentes particulares e localizados, como frases infelizes de um gerente ou piadas de mau gosto dentro de um elevador chegam aos jornais e aos tribunais. Mas declarações públicas, claras e repetidas de importantes autoridades dizendo que ateus são violentos e criminosos só encontram um profundo silêncio aprovador. Por que é que a mesma declaração, se dirigida a negros, nordestino ou judeus geraria comoção nacional ? mas se dirigida a ateus, não?

É muito difícil que um ateu não se sinta como um negro em pleno apartheid. Em entrevistas de emprego perguntam aos candidatos sua religião da mesma maneira que já se perscrutaram narizes e sobrenomes em busca de antepassados indesejáveis. Grande parte dos brights que conheço prefere dizer-se religiosa com medo de perder o emprego, oportunidades comerciais ou sociais. Eles sofrem humilhação pública e são ignorados em seus apelos. Os paralelos com os tempos de discriminação oficial são assustadoramente claros e perturbadores. Com a diferença de que não há o mais leve esboço de reação em setores da imprensa ou do judiciário. A mensagem da mídia e do ministério público é a de que tudo isso é perfeitamente normal.

Não sei se existe uma política interna clara nos meios de comunicação que justifique e conecte todos esses eventos. Como a Folha se recusa a tirar o artigo ofensivo do ar, e nenhum órgão de imprensa comenta os episódios ou pergunta a opinião dos afetados, só nos resta especular.

Seja qual for a causa, em todos os casos o tratamento dispensado aos sem-religião foi o mesmo. Quando uma matéria sobre brights é publicada e nenhum bright brasileiro é consultado, conclui-se, sem ser necessário afirmá-lo, que eles não existem ou que seu depoimento não é pertinente. Quando um grupo é insultado e ninguém se lembra de perguntar sua opinião sobre isso, o leitor é levado a pensar, sem que isso precise ser dito, que não houve ofensa. Talvez o suposto insulto seja somente uma merecida caracterização ou não haja ninguém no país que pudesse sentir-se atingido. Essas são as hipóteses ocultas que a mídia adota fazendo vista grossa ao tamanho da comunidade descrente no país e às afrontas que ela recebe continuamente. Quem ligar a televisão à tarde poderá escutar todos os dias que autores de crimes hediondos "não têm Deus no coração".

É claro que as pessoas com afiliação religiosa são maioria na população, mas um brasileiro em cada treze não possui religião, o que não é pouco. Essa proporção é 73 vezes maior que a de indivíduos que se declaram judeus, por exemplo. Apesar de pequena, a comunidade judaica do país felizmente recebe toda a atenção quando é atacada. A opinião dos seus líderes é notícia certa. Portanto, tamanho também não é o problema. Só é possível explicar o tratamento diferenciado que os sem-religião recebem através do preconceito e do desprezo, que só às vezes se fazem explícitos.

É preciso ignorar propositadamente os brights do país para deixar de notar que o seu principal domínio virtual recebeu somente este ano, pelos critérios mais conservadores, 1,2 milhões de visualizações de página. Para efeitos de comparação, o tráfego gerado pela poderosa Conferência Nacional dos Bispos do Brasil chegou somente à metade disso.

Desprezando os brights, a imprensa se presta à demonização do secularismo proposta pelos santos religiosos. Ignorando propositadamente o ateísmo brasileiro, ela contribui com a manutenção de um preconceito odiento que prefere traficantes cristãos e muçulmanos derrubando edifícios às hostes de infiéis que levam vida morais e d&atatilde;o contribuições significativas para a sociedade.

Em sua suprema vaidade e arrogância, alguns religiosos não gostam de ser lembrados do fato de que não possuem monopólio da moral e nunca geraram a elite do comportamento ético humano. Esse é um direito deles. O que não se pode tolerar é que a imprensa e o ministério público sejam coniventes com suas mentiras e tentem fazer de conta que existe preconceito civilizado. Já que o direito divino não proíbe esse tipo imoralidade, que seja ao menos em respeito aos direitos humanos e às leis do país.

(*) Engenheiro, membro da Sociedade da Terra Redonda <http://www.str.com.br>