Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O homem que calculava e o homem que calcula

LEITURAS DA VEJA

Deonísio da Silva

O nome do livro: O homem que calculava, de Malba Tahan. Como dividir 35 camelos entre três herdeiros? Malba Tahan e Bertrand Russel estão entre os que mostraram as armadilhas dos números. E os EUA contrataram romancistas como consultores de guerra. Primeiro, no Afeganistão. E agora, no Iraque.

Pois é por aquelas bandas que se passam as histórias de O Homem que Calculava. No capítulo III, o sábio Beremiz encontra três árabes furiosos, praguejando uns contra os outros, mesmo sendo irmãos. Tudo porque o pai lhes deixou herança de 35 camelos, determinando assim a divisão: a metade para o mais velho, um terço para o filho do meio, um nono para o caçula. Ora, a metade de 35 é 17,5; um terço é 11,6; um nono é 3,8. Nenhum deles aceita a divisão: "não pode ser", "isto é um roubo", "não aceito".

Beremiz acrescenta o camelo do amigo com quem viaja para facilitar a divisão. Com 36, a divisão é exata. O primeiro filho fica com 18 camelos; o segundo, com 12; o terceiro, com 4. Os três ficam satisfeitos porque a partilha foi arredondada para cima, favorecendo a cada um deles. Beremiz, ao despedir-se, conclui:


"Dos 36 camelos sobram, portanto dois. Um pertence ao bagdali, meu amigo e companheiro, outro toca por direito a mim, por ter resolvido, a contento de todos, o complicado problema da herança".


Sugiro ao leitor que refaça a conta, mudando de 35 para 17 camelos. O leitor acrescente o seu. Serão 18. Na conta com 17, o primeiro filho fica com 8,5 camelos; o segundo, com 5,66; o terceiro, com 1,88. Na conta com 18, o filho mais velho fica com 9 camelos; o segundo, com 6; o terceiro, com 2. E sobra o camelo de quem resolveu o problema.

Qual a boa?

O autor de O homem que calculava é Malba Tahan, pseudônimo do escritor brasileiro Júlio César de Melo e Sousa, falecido em 1974, aos 79 anos. O livro, atualmente editado pela Record, está em 38? edição. E ainda dizem que livro não vende. Se não vendesse, o Brasil não teria cerca de 1.200 editoras e o segundo mercado editorial das Américas, à frente do Canadá e do México, perdendo apenas para os EUA, o maior do mundo.

Já o filósofo, lógico e matemático inglês Betrand Russel ? que, aliás, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1950 ? dá outros exemplos de que não apenas os números enganam, mas também a lógica. Eis alguns exemplos: um barbeiro bem barbeado diz que em sua cidade só barbeia os homens que não fazem a própria barba. Então, quem corta a barba do barbeiro?

Muito antes dele, ainda no século 7 a.C., o cretense Epimênides disse que "os cretenses sempre mentem". Se ele disse a verdade, sua afirmação é falsa; se ele mentiu, a frase é verdadeira. E o paradoxo não tem fim.

Os cretenses ficaram com fama de cretinos por força de confusão de traduções. Mas esta é outra história. Concluamos com o famoso humorista gaúcho Aparício Torelly, o Barão de Itararé, falecido em 1971, aos 76 anos, que registrou em seu Almanhaque (agosto de 1955):


"Este mês, em dia que não conseguimos confirmar, no ano 453 a.C. (antes de Cristo) verificou-se terrível encontro entre os aguerridos exércitos da Beócia e de Creta. Segundo relatam as crônicas, venceram os cretinos, que até agora se encontram no governo".


Os números podem enganar-nos. As ponderações que o empresário Antônio Ermírio de Moraes fez esta semana nas páginas amarelas da Veja (n? 1.827, 5/11/03) são muito pertinentes, mas deixam uma pergunta sem resposta. Fica sem reposta porque não é feita. Não é feita porque sua resposta é incômoda.

Criticando o programa Fome Zero, ele diz: "O governo deveria estar lançando o Programa Desemprego Zero. É disso que o Brasil precisa". Ponto para o dr. Antônio Ermírio. Mas o que fazer com quem está desempregado passando fome? O empresário declara que ajudar esses milhões de brasileiros é assistencialismo, que ele não aprova o programa Fome Zero, que "a idéia é péssima". Qual é a boa ou a ótima? "Pobre não quer esmola. Quer emprego."

Sábias palavras

Aplicado tão rígido e ortodoxo critério na Idade Média, quando ordens religiosas dedicaram-se ao assistencialismo salvando a vida de milhares de pessoas, não teríamos tido lugar para os grandes exemplos de caridade que então foram praticados. É evidente que é melhor ter um emprego, ter rendimentos, não precisar recorrer à ajuda de ninguém e, sobretudo, evitar a esmola, que é, além de tudo, humilhante para quem a recebe. E quase sempre também para quem a dá. Com efeito, como suportar que justamente no Brasil haja gente passando fome?

Ocorre, porém, que o programa Fome Zero é emergencial. Diante das enormes carências que afligem tantos brasileiros, o mais urgente é dar-lhes um prato de comida. A pessoa de bem faz isso há dezenas de séculos com o mendigo que bate à porta pedindo comida. Conventos e igrejas notabilizaram-se ao longo da História por fazer isso e em seguida convidar os mendigos a tratar do jardim, ajudar nas lides da casa que generosamente os acolheu.

Ora, o governo está fazendo isso de forma organizada. Está errando? Certamente. Que a imprensa aponte os erros e os corrija. Mas fica no ar a estupefação: veio de um empresário que prima pelo discernimento na diagnose dos problemas brasileiros a crítica vazia. Sim, acabemos com o Fome Zero. E com os famintos, o que fazemos? Ah, eles devem aguardar o próximo programa, o Programa Desemprego Zero.

Uma coisa é faturar 12,6 bilhões de reais ao ano. Outra, bem diferente, é não ter alguns trocados para comprar um litro de leite para o filho que chora de fome.

O dr. Antônio Ermírio é um homem que sabe calcular. Mas os cálculos sociais semelham ser ainda mais complexos do que aqueles do homem que calculava. Às vezes, sobram camelos. Mas quase sempre falta água. E, principalmente, faltam comida e instrução.

De todo modo, a entrevista que deu à revista Veja desta semana vale a pena ser lida. Feita a ressalva da pesada crítica ao Fome Zero, dr. Antônio Ermírio tem sábias palavras, como os dardos com que alveja a burocracia estatal. Daí, sim, inteiramente de acordo com o empresário. No Brasil, o Estado, sempre que se mete na vida do povo, mais atrapalha do que ajuda. Aliás, ajuda mesmo em quê?

Mas precisamos calcular diferente. E com urgência!