Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O horror sagrado da ambivalência

NOTÍCIA & AMBIGUIDADE

Claudio Julio Tognolli (*)

Na edição da semana passada deste Observatório, Alberto Dines vindicava reflexões sobre a reportagem de Veja, a tratar de Luiz Inácio Lula da Silva [veja remissão abaixo]. E Dines abordou um tema raramente discutido na mídia: o da ambivalência ou ambigüidade do signo.

O arcano levantado por Dines, e como ele mesmo solicita ao pedir explicações aos "exegetas", requer um mergulho nas vulgatas críticas. Tantas, tamanhas e vastas operações sobre a ambivalência são tratadas em duas obras, Modernidade e ambivalência, de Zygmunt Bauman (Zahar, 1999) e Totem e tabu, de Sigmund Freud.

Antes de enfiar por elas, falemos de mídia: qual é a mensagem ambivalente que nos deixou por exemplo a filmagem das atrocidades da Favela Naval, cujo footage o câmera amador de alcunha "Pica-Pau" vendeu às TVs Globo e Bandeirantes? Quais mensagens nos deixam o denuncismo em geral? Mensagem um: nossos repórteres estão aqui para denunciar a atrocidades da Polícia Militar (caso Naval), e de quem quer que seja, contra o homem de bem. Mensagem dois: "Abra os olhos, capturamos essas imagens, e só essas. Mas tais desmandos podem acontecer com você a qualquer momento." É o "efeito vodca Orloff" ligado ao anacoluto ? em que as vítimas, ululantemente, dizem-nos nas entrelegendas do vídeo "eu poderia ser você amanhã, ou hoje mesmo".

Vejamos o sucesso do programa Realidade, da TV Bandeirantes ? aquelas cenas gravadas, na sua maioria nos EUA, em que "gente de bem" era colhida, de inopino, pela fúria da natureza ou o diabolo ex machina da fatalidade nua e crua. Vejamos The Most Amazing Videos, do canal a cabo AXN. Por detrás da curiosidade mórbida do telespectador, repousa o tabu do que não pode ser compreendido. Os sobreviventes (vencedores) viram estrelas dos 15 minutos de fama: foram até a morada da morte. Sobreviveram para contar seus relatos. Outros, nem tanto, mesmo com o aparato high tech da milícia ianque: a morte dribla até a tecnologia de ponta. É a mesma cantilena dos personagens de Hipertensão, da TV Globo: estivemos no dilatado reino de horror dos animais rastejantes, os devoramos. Descemos à tumbas mercuriais. E devoramos também o cronômetro, antes que ele nos devorasse.

A ambivalência ou horror ao sagrado, como notará Freud, trabalha sob o signo do tabu, do proibido. É por isso que ela tanto atrai: as suas sentenças são ladinas, laterais, oblíquas e enviesadas. Nesse sentido, a reportagem de Veja, a que se referiu Alberto Dines, trata o candidato Luiz Inácio Lula da Silva, nas entrelinhas, com o estatuto merecido pelos tabus. Para Freud, não resta dúvida: a ambivalência é da linhagem do tabu.

Zygmunt Bauman, que parece desconhecer Freud, assim descreve a coisa: "A ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria, é uma desordem específica da linguagem, uma falha da função nomeadora (segregadora) que a linguagem deve sempre desempenhar. O principal sintoma de desordem é o agudo desconforto que sentimos quando somos incapazes de ler adequadamente a situação e optar entre ações alternativas." (p. 9)

"A situação torna-se ambivalente quando instrumentos lingüísticos de estruturação se mostram inadequados; ou a situação não pertence a qualquer das classes lingüisticamente discriminadas ou recai em várias classes ao mesmo tempo. A função nomeadora/classificadora da linguagem tem, de modo ostensivo, a prevenção da ambivalência com seu propósito. O desempenho é medido pela clareza das divisões entre classes, pela precisão de suas fronteiras definidoras e a exatidão com que os objetos podem ser separados em classes. E no entanto a aplicação de tais critérios e a própria atividade cujo progresso devem monitorar são as fontes últimas de ambivalência e as razões pelas quais é improvável que a ambivalência jamais se extinga realmente, sejam quais forem a quantidade e o ardor do esforço estruturação/desordenação." (p. 10)

Desejo oculto e insatisfeito

Em Bauman, o reinado da ambivalência é o da confusão: "Os poderes é que são fragmentários; o mundo, teimosamente, não o é. As pessoas permanecem multifuncionais e as palavras, polissêmicas. Ou melhor, as pessoas tornam-se multifuncionais por causa da fragmentação das funções; as palavras tornam-se polissêmicas por causa da fragmentação dos significados. A opacidade surge na outra ponta da batalha pela transparência. A confusão nasce da luta pela clareza. A contingência é descoberta no ponto em que muitos trabalhos fragmentários de determinação se encontram, se chocam e se emaranham." (p. 21)

Noutra angulação, père Freud trata da ambivalência, de início, falando do "horror sagrado", que ela infunde ? no capítulo "O tabu e a ambivalência dos sentimentos" (p. 385), constante de Totem e tabu: "Tabu é uma palavra polinésica, cuja tradução nos é difícil, por isso que não possuímos mais a noção correspondente. Essa noção fora ainda familiar aos romanos, cujo sacer equivalia ao tabu dos polinésios; também o agos dos gregos e o kodauch dos hebreus deviam ter o mesmo sentido que o tabu dos polinésios e outras expressões análogas usadas por diversos povos da América, África (Madagascar) e da Ásia Setentrional e Central. Para nós, apresenta o tabu duas significações opostas: a do sagrado ou consagrado e a do lúgubre, perigoso, proibido ou impuro. O contrário de tabu entre os polinésios é noa, quer dizer ordinário, acessível a todos. O conceito de tabu contém, pois, uma idéia de reserva; e, de fato, manifesta-se ele, essencialmente, em proibições e restrições. A nossa locução ?horror sagrado? apresentaria muitas vezes um sentido coincidente com o de tabu."

Em Freud, o medo elementar do impossível, digamos, também passa pela ambivalência, por ele sempre grafada, nos originais, em caixa-alta (p. 385): "O caráter principal da constelação psicológica assim fixada reside naquilo que poderíamos chamar de atitude ambivalente do indivíduo em face do objeto ou melhor dito em face ao ato a este referente. Experimenta o doente constantemente realizar o ato ? o de tocar ? mas retém-no sempre o horror que lhe inspira. Essa oposição das duas correntes não é facilmente compreensível pois ? por assim dizer ? a localização das mesmas na vida psíquica é de maneira tal que nunca se defrontam as duas correntes. A proibição torna-se claramente consciente, o prazer persistente do contato é inconsciente, o indivíduo o desconhece em absoluto. Se não existisse essa circunstância psicológica, não poderia a ambivalência manter-se durante tanto tempo nem produzir as manifestações a que acabamos de nos referir. Na história clínica do caso, assinalamos como fator decisivo a proibição imposta ao indivíduo, durante a sua infância mais precoce; ulteriormente, com o progresso da idade, cabe esse papel ao mecanismo do recalcamento. Em conseqüência desse recalcamento, que está ligado a um processo de esquecimento ? amnésia ? permanece ignorado o motivo da proibição que se tornou consciente, e todas as tentativas de decompô-lo intelectualmente vêm a fracassar, pois lhes falta um ponto de apoio em que basear-se. A proibição deve a sua energia ? o seu caráter compulsivo ? precisamente a sua relação com a parte contrária inconsciente, ao desejo oculto e insatisfeito, quer dizer uma necessidade interior que se furta ao exame do consciente…"

O porquê da vaguidão

Nessa visão freudiana, Jorge Luis Borges seria um errático ao ter afirmado no seu conto "O outro" (in: O livro de areia, 1975, p. 11) que "o sobrenatural, se ocorre duas vezes, deixa de ser aterrador". Em Freud o sobrenatural, o inaudito, são convites à atração, e que esta tenha um bis. É nesse sentido que o caráter ladino das notícias ambivalentes nos atrai. Vejamos (p. 400): "A vontade impulsiva desloca-se constantemente para escapar à interdição que sobre ela pesa e intenta encontrar substitutos para o proibido: objetos e atos substitutivos. Por isso, a proibição varia e recai, sucessivamente, sobre os novos alvos escolhidos pelo desejo proibido. A cada novo ataque da libido recalcada, responde a proibição com um outro reforço. A inibição recíproca das duas forças em luta cria a necessidade de uma derivação, de uma diminuição da tensão existente, necessidade essa na qual devemos encontrar o motivo dos atos compulsivos… é regra da neurose que tais ações compulsivas se ponham cada vez mais a serviço do impulso, aproximando-se, assim, paulatinamente, do ato primitivo proibido."

Se crermos sincera essa conjetura, a ambivalência da notícia não é uma tarefa das mais insignificantes. Seria um convite à violação (p. 401): "Mas da persistência do tabu podemos deduzir que a primitiva tendência a realizar os atos proibidos ainda perdura entre os povos do tabu. Assim, pois, esses povos adotaram para a s suas interdições-tabus uma atitude ambivalente; no seu inconsciente, nada mais desejariam do que a violação, mas, ao mesmo tempo, sentem medo dela; têm-lhe medo precisamente porque poderiam realizá-la; e o medo é mais forte do que o prazer." (p. 401)

Quem sabe imerecidamente, a ambivalência da notícia exerce sobre nós a soberba que é o convite aos nossos tempos imemoriais, ao que Freud nota (p. 401):

"Essa faculdade de transferência do tabu se reproduz na neurose, pela tendência comprovada do impulso inconsciente a deslocar-se continuamente sobre novos objetos, utilizando a via da associação de idéias. Atenderemos assim a que à perigosa força máfiga do ?mana? correspondem duas distintas faculdades mais reais: a de recordar ao homem os seus desejos proibidos e a outra, aparentemente mais importante, de impeli-lo a satisfazer o desejo, violando a proibição."

Eis o arcano freudiano sobre o porquê da vaguidão da notícia tanto nos atrair: o horror sagrado infundido em nós.

(*) Repórter especial da Rádio Jovem Pan e professor das Fiam (SP) e da ECA-USP

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